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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

TEMÁTICOS

 

Os paradoxos da Psicanálise

 

Las paradojas del psicoanálisis

 

The paradoxes of Psychoanalysis

 

 

Susana Muszkat1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho reflete acerca do paradoxo existente na Psicanálise onde, se por um lado tornou-se patrimônio cultural do ocidente, por outro, parece viver um distanciamento em relação ao mundo contemporâneo e outras teorias do conhecimento. O trabalho avalia a institucionalização da psicanálise e os efeitos disso neste centenário da IPA.

Palavras-chave: Psicanálise; instituição psicanalítica; formação psicanalítica; IPA; IPSO; paradoxo.


RESUMEN

El trabalho hace una reflexión sobre la paradoja existente en el psicoanálisis donde, si por un lado se transformó en patrimonio cultural del occidente, por otro, parece vivir un distanciamento en relación al mundo contemporaneo y otras teorías del conocimiento. El trabajo evalua la institucionalización del psicoanálisis y los efectos de eso en este centenario de la IPA.

Palabras clave: Institución psicoanalítica; identidad; resistencia; oposición individuo/grupo; entrenamiento psicoanalítico.


ABSTRACT

This paper reflects on the existing paradox of Psychoanalysis. If on the one hand it has become a cultural heritage to the western world, on the other, it seems to be distancing itself from contemporary world and other theories of knowledge. The paper proposes a critical assessment of the institutionalization of psychoanalysis and the effects of such process as we celebrate 100 years of the IPA.

Keywords: Psychoanalysis; psychoanalytic institution; psychoanalytic training; IPA; IPSO; paradox.


 

 

Antes de mais nada, quero agradecer ao convite que me foi feito pela Revista Brasileira de Psicanálise, para escrever um artigo para o número comemorativo dos 100 anos da fundação da IPA. É para mim um prazer e uma honra.

O convite a mim dirigido evidencia a RBP, na gestão editorial de Leopold N osek, como um órgão plural e democrático, interessado na diversidade de vozes que compõem o grande guarda-chuva que é a IPA.

Explico: Ao longo de quatro anos, presidi a Organização Internacional dos Analistas em Formação (IPSO – International Psychoanalytic Studies Organization) o que me possibilitou testemunhar a enorme diversidade de culturas que integram esta organização. Pude ainda, ter contato com questões político-institucionais presentes nas relações entre a IPA e suas Organizações-componentes, dentre as quais, a IPSO.2 Assim, o convite a mim, garante colocar, lado a lado nesta edição, as distintas posições e pontos de vista do contingente que compõe o vasto universo psicanalítico dos filiados à IPA.

Em tempos de centenário, cabe bem voltarmo-nos à reflexão. Algo como um balanço, tipo de coisa que fazemos em nossos aniversários. N esse caso, a reflexão faz-se apoiada no legado e realizações dos fundadores e daqueles que nos antecederam, chegando aos nossos dias.

A Psicanálise, todos sabemos disso, faz parte da história da humanidade e tornouse um patrimônio de todos. Amplamente difundida no mundo ocidental, – e atualmente, ganhando espaços antes impensáveis em regiões que se estendem do Leste Europeu à Ásia, tais como, Latvia, Servia, Montenegro, Cazaquistão, China, Moscou, Índia e tantos outros,– influencia e confunde-se com a maneira como pensamos as relações familiares, a educação, as relações sociais, os conflitos históricos, os movimentos sociais.

Segundo Elisabeth Roudinesco (2009), numa entrevista ao Caderno Cultura do jornal O Estado de São Paulo, o legado de Freud "está por trás, de uma forma ou de outra, de todas as formas de emancipações vividas pela sociedade do século 20, das quais o feminismo e a liberação sexual são só dois exemplos" (p. D6). Sem dúvida, a importância das teorias psicanalíticas para pensarmos o mundo, é inquestionável. Já a IPA, ou seja, a institucionalização da psicanálise, é algo bem diferente, que merece uma análise mais cuidadosa.

Penso que é seguro afirmar que, desde a sua fundação por Freud, esta organização sempre se caracterizou, por dois movimentos que perduram até os dias de hoje: o desejo de expandir-se e agregar adeptos ao redor do mundo, ao lado de um movimento de cunho elitista de inclusão dos iguais e exclusão das diferenças. Naturalmente, muitos dos iguais rapidamente se tornavam diferentes. Com efeito, a Psicanálise como Teoria do Conhecimento, caminha numa direção oposta àquela de sua institucionalização no que esta, é fortemente marcada por uma tendência exclusivista na aceitação de novos membros, bem como de rígidos padrões hierárquicos. No interessante livro de Edith Kurzweil (1998), The Freudians, a autora faz um vasto trabalho investigativo da Psicanálise, desde seus primórdios, a partir de Freud e o primeiro grupo que se uniu a ele, e seus desdobramentos futuros, com as diferentes vertentes daqueles a quem a autora denomina "Os Freudianos". Kurzweil salienta a questão das "distintas psicanálises" resultante dos distintos agrupamentos culturais. Acompanhamos na leitura de seu trabalho de pesquisa a estreita vinculação existente entre questões culturais e contextuais com a psicanálise praticada e teorizada nos diferentes agrupamentos. Em suas palavras: "Assim, cada país (e cada cidade) produziu suas distintas cacofonias do discurso psicanalítico, suas próprias releituras históricas, suas ênfases, interpretações e controvérsias particulares". E logo adiante

Então, a medida que as ideias de Freud, invadiam cada vez mais o mundo ocidental, as dissensões e rupturas se tornaram a substância mesma da história psicanalítica. Os analistas, eles mesmos, jamais puderam entrar num acordo quanto a serem seus desacordos resultado de legítimas diferenças teóricas ou produto de motivações subjetivas oriundas de fatores inconscientes. (p. 3)3

Crescer sem incluir! Paradoxo que vivemos até hoje, em maior ou menor grau nos distintos Institutos de formação das Sociedades componentes da IPA. Vale ressaltar que, esta última, em seu caráter de instância reguladora dos padrões da prática e ensino da psicanálise no mundo, tem hoje seu maior peso, mais naquilo que representa como uma espécie de selo de qualidade das Sociedades componentes, do que de fato no exercício de controle de como cada Sociedade regula seu funcionamento e suas regras, uma vez instituídas enquanto tal. Dá isto sim, o tom da política global a ser adotada, regulamenta a entrada ou não de novas Sociedades e Grupos de Estudo, supervisiona, através de comitês de avaliação constituídos para este fim, grupos em diferentes partes do mundo interessados em ingressarem na IPA. Com vistas a avaliar e autorizar/impedir o pertencimento à IPA, esses comitês podem estender-se por anos a fio, dando mostras de um funcionamento hierárquico rígido e elitista. Se por um lado isso se justifica como modo de garantir um "controle de qualidade" do que é feito mundo afora em nome da psicanálise, por outro atesta seu caráter de adesão à tradições de longa data4, distanciando a Psicanálise, como disciplina e prática clínica, do mundo contemporâneo, dificultando uma circulação vital desta nossa disciplina com outras áreas do conhecimento, criando assim um modo isolacionista de funcionamento. Coloca-se como um "objeto idealizado do desejo" a ser alcançado, não sem uma grande dose de esforço, determinação e abnegação pessoal, por aqueles que por ela se interessam. Assim, como pude testemunhar em inúmeras ocasiões em distintas partes do mundo, a "Verdadeira Psicanálise" ainda está por ser encontrada embora continue sendo disputada até mesmo entre analistas em formação identificados com seus modelos de analistas/ supervisores e grupos de pertencimento, provenientes dos mais variados Institutos.

"A maioria dos psicanalistas tornou-se conservadora", afirma Roudinesco no artigo acima citado. Observação intrigante pensando que se refere exatamente a uma teoria altamente revolucionária! Ela justifica: "os psicanalistas se desinteressaram dos assuntos sociais. Foi assim que se tornaram conservadores". (p. D6). Risco presente tanto na institucionalização quanto nas disputas por poderes hegemônicos que tendem a acompanhar as instituições, caso nos esqueçamos de questioná-las. Em artigo anterior (Muszkat, S. 2004), cito o alerta de Kaës (1991) onde afirma:

"as instituições, assim como as civilizações por elas sustentadas, não são imortais. A ordem que impõem não é imutável, os valores que proclamam são contraditórios e elas negam aquilo que lhes serve de base" (p. 4). Desta forma, não podemos nos furtar a questioná-las sob o risco de ficarmos obsoletos, isolados do contexto social e decretarmos assim, nosso lento, mas certeiro desaparecimento. (Muszkat, S. p. 3)

A repetição evita o novo, a renovação, a elaboração que permite crescimento. Assim nos ensina Freud em seu notável trabalho, tema do Congresso Internacional de Berlim, em 2007, Recordar, Repetir, Elaborar (1914). É, ainda, mortífera como também nos ensinou o mestre fundador, em sua conceituação de Pulsão de Morte, mas que parecemos nos esquecer de que vale também para nós psicanalistas – em formação ou não. Expandir-se, manter-se vivo, depende da aceitação do novo, que, como sabemos, é ameaçador, pois implica em perdas e demanda elaboração de luto. O equacionamento entre a manutenção do já estabelecido – imprescindível como base de sustentação para subsequentes construções – e o espaço necessário que autorize a entrada do novo, é sempre um modelo de equilíbrio precário, em permanente estado de tensão e reajustes.

Foi assim, sob a égide deste movimento dialético de questionamento de valores instituídos, que em 1971, Leo Rangel, então presidente da IPA, autorizou a presença dos candidatos5 – aqueles em formação –no congresso da IPA sendo que em 1973 foi criada a IPSO, Organização Internacional de Estudos Psicanalíticos6. Até então, os candidatos viam-se impedidos de ter qualquer participação nas atividades formais da IPA, não encontrando canais através dos quais pudessem discutir questões referentes à sua formação psicanalítica.

Voltando no tempo, nos idos de 1969, e em consonância com o contexto histórico que marcou o ano de 1968 como de grandes protestos estudantis no mundo, um grupo de candidatos, reivindicando suas insatisfações quanto à formação, ameaçou fazer uma demonstração durante um congresso da IPA em Roma. A demonstração propriamente dita não ocorreu: houve, sim, uma espécie de congresso paralelo do lado de fora do congresso oficial da IPA. Esse episódio abriu caminho para que então, em 1971, durante o congresso em Viena, houvesse um encontro formal entre candidatos e analistas didatas a fim de que as questões quanto à formação fossem abordadas. Ainda que formalmente autorizado, esse encontro não se deu livre de ressentimentos e conflitos. Até aí, nada de inesperado. Os candidatos, em suas reivindicações, eram vistos como uma espécie de agremiação de movimento estudantil, subversivo da ordem estabelecida.

Um destes candidatos, que em 1975 fez parte do primeiro Comitê Executivo da IPSO – que só então passou a constituir-se oficialmente como tal – foi nosso querido colega Fabio Hermann. Fabio foi o primeiro representante da América Latina na IPSO.

Ficou definitivamente guardada em minha memória nossa conversa – entre mim e Fabio –, numa sala enorme e confusa, onde várias coisas aconteciam ao mesmo tempo durante um congresso internacional em N ova Orleans (EUA). Ainda insegura e temerosa, sem saber bem no que estava me metendo ao aceitar o cargo de presidente-eleita – que dali a dois anos seria então o de presidente da IPSO – me dirigi a ele para saber sua opinião quanto a aceitar ser a primeira presidente brasileira daquela organização internacional. Fabio não hesitou em apoiar-me e incentivar-me a aceitar o cargo e continuar fazendo, tantos anos depois, o que ele havia começado em caráter pioneiro, coisa que sempre, aliás, fora sua marca.

Ainda que numa escala consideravelmente menor nos dias de hoje – e variando de gradação nas distintas Sociedades do mundo – a organização dos candidatos é tida por muitos membros, ora como agremiação estudantil de pouca relevância, ora como algo que, não podendo ser evitado, há que ser tolerado.

Há, no entanto, aqueles que em consonância com as transformações e possuidores de um espírito aberto, não sentem a necessidade de uma adesão fundamental às tradições nem tampouco se sentem ameaçados com a introdução do novo. Tive a sorte de poder contar com uma dessas pessoas; o expresidente da IPA, Claudio Eizirik, cujo mandato coincidiu com o meu durante dois anos na IPSO, e prolongou-se por mais dois, até o último congresso em Chicago. O Comitê Executivo da IPSO trabalha há alguns anos, bem de perto ao Comitê Executivo da IPA. Se não foi sempre assim, graças ao modelo de administração que imprimiu Eizirik, o acesso jamais foi obstaculizado. Foram anos de grandes transformações, tendo sido instituído, em caráter definitivo, um comitê de relações entre IPSO e IPA, formado por membros de ambas as organizações, cuja finalidade é a de promover uma progressiva integração entre estas, tratando de assuntos de interesses mútuos para o benefício da Psicanálise de maneira geral. É este comitê que coordeno atualmente por indicação do novo Presidente da IPA, Charles Hanly.

 

O lugar do analista em formação

O processo de formação num Instituto das Sociedades filiadas à IPA representa anos de um grande investimento na vida de quem faz esta opção. São anos de análise de alta frequência, inúmeros seminários teóricos e clínicos, que implicam no comprometimento de um grande número de horas dedicadas a esta atividade – algo que gira entre 10-15 horas semanais – que deverá ocorrer em paralelo com a vida profissional e pessoal/familiar destes. Mas, mais do que as horas físicas, do cansaço, ou da privação imposta aos familiares, o que torna essa formação marcante é seu caráter transformador e perturbador decorrente principalmente do processo de análise pessoal. A regressão vivida no processo de analise e a frequente idealização do analista e supervisor como modelos identificatórios, são aspectos previsíveis e naturais no início da formação.

Estas – regressão e idealização – não raro, impregnam do mesmo modo as relações do indivíduo com a Instituição.

Contudo, a manutenção do 'candidato', seja pela Instituição, seja pelo analista, neste lugar, leva-o a uma infantilização prejudicial e incompatível com o desenvolvimento de seus recursos pessoais e sua formação para exercer-se enquanto analista com uma mente própria. Tal manutenção de lugares fixos de poder, onde a perpetuação da idealização desveste o indivíduo de seus recursos internos – e que bem sabemos é o corolário dos sentimentos persecutórios – é contrária aos propósitos de uma Instituição Científica formadora de profissionais competentes e pensantes.

Assim, a valiosa importância da IPSO está no que esta se abre como espaço criativo, de compartilhamento de experiências próprias ao processo de formação, oferecendo a seus membros a possibilidade de vivenciarem trocas clínicas, teóricas, culturais e, não menos importantes, sociais, com analistas do mundo todo. Os longos anos de formação – em média de 8 a 10 – em muitos institutos do mundo fazem com que o analista em processo de formação fique isolado da produção científica. N ão sendo membros, suas oportunidades de participação nas Sociedades, são exíguas.

Assim, a IPSO, como organização voltada aos interesses dos analistas em formação, estimula a produção científica através de: congressos internacionais, encontros regionais, espaços para publicação de artigos, discussões clínicas entre pares e supervisões clínicas com analistas de renome de distintas regiões, uma prolífera troca via emails e boletins periódicos sobre eventos psicanalíticos no mundo todo, e encaminhamento de pacientes através de uma ativa rede internacional na internet criada para esse e outros fins.

Mais recentemente, a IPSO vem ganhando espaço junto à IPA, os congressos internacionais são realizados de forma interligada e todos os encontros regionais têm espaço garantido para atividades da IPSO. Além disto, analistas em formação têm tido a oportunidade de participar de diversos comitês internacionais, antes limitados exclusivamente a membros, garantindo um espaço de interlocução muito rico entre estas duas organizações que compõem a IPA.

Contudo, embora as diretrizes da IPA, – executadas por meio das ações propostas por suas diretorias – têm procurado diminuir distâncias e incrementar as trocas entre ambas organizações, ainda deparamo-nos com situações bastante desencorajadoras, em diversas partes do mundo, no que diz respeito à experiência de formação.

Situações tais como: não ter autorização para atender pacientes oficialmente em análise, não conseguir terminar a formação por falta de pacientes que se encaixem aos modelos exigidos pelas diferentes instituições ou porque os comitês de avaliação postergam a admissão dos candidatos a membros embora os requisitos formais tenham sido cumpridos. Há ainda vivências altamente persecutórias em algumas Sociedades, onde, por exemplo, circulam rumores daqueles que falharam ou foram reprovados que levam o candidato a jamais sentir-se preparado a apresentar seus relatórios. E, há ainda as Sociedades onde a exigência para que se finalize o processo de formação é tão extensa que o candidato não consegue terminá-la (por exemplo, pacientes atendidos que não encerram seu tratamento, algo chamado "termination", impedem que o analista em formação apresente o caso, sendo exigido que inicie novamente com outro paciente). Enfim, a formação de excelência que certamente valorizamos, torna-se, em muitos casos, uma forma de perpetuação de poderes de instituídos. O resultado disso é, em alguns casos como eu mesma já testemunhei, o abandono da formação por pessoas altamente talentosas. Considero que a "confusão" entre excelência na formação e rigidez hierárquica, é um dos fatores responsáveis por nosso isolamento em relação à sociedade mais ampla bem como da procura de candidatos à formação nos Institutos da IPA. Além de, evidentemente, perdermos bons analistas pelo caminho.

Destacados psicanalistas tais como Garza-Guerreiro (2004) e Otto Kernberg (1996), têm discutido sobre como, em nome da 'proteção dos candidatos', imersos em transferência durante seu processo analítico, não somente com seus analistas, mas também com a Instituição, se obstaculiza o acesso destes (os candidatos) a participarem, de forma adulta e democrática dos processos de discussão que se dão nas sociedades ou até mesmo de poderem manifestar-se, através de votos, sobre temas que lhes são diretamente relacionados.7

 

Fazendo uma autoanálise… ou como começamos a arrumar nossa casa

Uma crescente e significativa redução na procura de interessados em ingressar na formação dos Institutos, das Sociedades da IPA, bem como uma marcada diminuição de pacientes dispostos a submeter-se ao modelo tradicional de análise de alta frequência, levou os então dirigentes da IPA (presididos na ocasião por Claudio Eizirik), a elaborarem um programa dedicado a essa questão específica. Foi destinada uma verba bastante volumosa para financiamento de projetos de pesquisa e ações que apresentassem propostas voltadas a este fim. O desdobramento relativo a essas questões é linha de frente na atual gestão de Charles Hanly, tendo sido batizado de "outreach program", ou seja, como fazer da Psicanálise, uma disciplina e uma prática mais integrada e participativa da sociedade acadêmica e civil em geral.8

Mas então, se como já é amplamente sabido e reconhecido – o fato de a Psicanálise fundada por Freud estar incorporada na cultura e no pensamento ocidental-, o que justificaria esse lugar de isolamento ao qual tem sido relegada a psicanálise em seu caráter terapêutico e de formação institucional? Psicanálise e psicanalistas são, não raro, retratados em seu aspecto caricaturesco, seja na mídia em geral, seja na opinião do público leigo: o analista mudo, distante, sério demais, a estranheza em relação ao divã, os longos anos e a alta frequência, a associação da análise a pessoas altamente perturbadas, são ícones das "esquisitices" da psicanálise.

Seria uma leviandade minha querer tratar desta questão de maneira simplista. Penso que há uma complexidade de fatores, tanto de caráter externo à Instituição, como questões que dizem respeito à contemporaneidade e os valores predominantes de nossa cultura, quanto de caráter interno, ligados à cultura psicanalítica institucionalizada. Deixo os fatores da contemporaneidade para os sociólogos ou outros autores que se habilitem. Para os propósitos deste artigo, penso que uma reflexão sobre a "arrumação de nossa casa" e de nossos "hábitos e códigos familiares" será de bom proveito.

Listo aqui alguns pontos que merecem atenção:

• há uma contradição entre "o desejo de ser desejado", isto é, que haja interesse na busca por formação em nossos Institutos, e o lugar/não lugar que é frequentemente atribuído por estes mesmos Institutos e Sociedades aos seus candidatos uma vez que ingressam na formação.

• este 'não lugar', de 'não-analista', mantido durante um longuíssimo período (pesquisas mostram que o tempo médio de formação é de 8 anos, mais do que qualquer outra especialização ou pós-graduação), coloca estes devotados analistas em absoluta desvantagem em relação a outras instituições de formação, que, exigindo muito menos investimento pessoal (e, por que não lembrar, financeiro) de seus alunos, garante-lhes o lugar de psicanalistas.

• não menos importante é o fator financeiro, ou seja, os custos envolvidos nesta longa e dispendiosa formação, o que pode levar a uma deturpação na seleção de candidatos, privilegiando aspectos financeiros em detrimento de talentos psicanalíticos. Qual será a consequência disto na escolha de um candidato que pensa fazer sua formação?

E que tipo de psicanalistas teremos em longo prazo?

• o elevado custo financeiro leva ainda, a outra questão relevante, que é a idade dos que ingressam na formação: a faixa etária média destes varia entre 45-50 anos.

Seremos uma profissão de "terceira idade"?

Vemos aí, novamente, uma tendência à homogeneização dos analistas, impedindo uma troca mais viva, obstaculizando o contato com o novo e restringindo enormemente nossa diversidade cultural, em que pese a diversidade natural entre os indivíduos e suas culturas.

• A não re-avaliação da questão de analistas e supervisores didatas, cuja função didática confunde-se com o de análise pessoal, implica, a meu ver, numa questão ainda maior: o uso da análise didática para a manutenção do status-quo de analistas que, de um lado obtém de seus pacientes em formação grande parte de seu sustento profissional, e de outro, trabalham com um universo de pacientes pouco representativos da população em geral, ficando assim, enclausurados num mundo tendencioso e novamente pouco diversificado.

A necessidade de uma análise de alta frequência para os analistas em formação e a obrigatoriedade de que esta seja realizada com analistas graduados, não é, em si, alvo de muitas controvérsias9.

A análise pessoal é, seguramente, o aspecto mais fundamental em nossas formações como analistas. Tampouco é visto como um problema, ao contrário, parece mesmo ser quase consenso, que esta se dê em alta frequência. Contudo, a prática da função didática, de maneira equivalente a de um professor titulado de uma universidade, implica num compromisso didático para com a Instituição e seus alunos, deste que alcançou um nível elevado em sua formação. Uma Instituição é tanto melhor quanto maior for o compromisso do seu corpo didático e docente. A função didática institucional confundida com a clínica privada descaracteriza o propósito da função didática em si, ou seja, no que sua finalidade seja a de garantir uma formação de qualidade para aqueles com qualificações para exercê-la.

Nossa vida Institucional, sem dúvida, confunde-se com nossa vida pessoal. Torna-se nossa casa, nosso lugar de pertencimento, de desenvolvimento e trocas importantes. Se a Psicanálise como Teoria do Conhecimento garantiu seu lugar em nossa cultura e continua atraindo interesse, o mesmo não é verdade para a Psicanálise como Instituição. Dessa, é preciso cuidar.

 

Referências

Garza-Guerrero, C. Reorganizational and educational demands of psychoanalytic training today: Our long and marasmatic night of one century. In: International Journal of Psychoanalysis, 85: 3-26, 2004.         [ Links ]

Kaës, R.; Bleger, J.; Enriquez, E.; Fornari, F.; Vidal, J.P.; A Instituição e as Instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.         [ Links ]

Kernberg, O. Trinta métodos para destruir a criatividade dos candidatos a psicanalistas. In: Livro Anual de Psicanálise, XII, p. 151. São Paulo: Escuta, 1996.         [ Links ]

Kurzweil, E. The Freudians, a comparative perspective. New Brunswick (USA) and London (UK): Transaction Publishers, 1998.         [ Links ]

Muszkat, S. Sobre a formação: uma análise crítica, baseado em artigo de Garza-Guerrero: Reorganizational and educational demands of psychoanalytic training today: Our long and marasmatic night of one century. Apresentado em discussão científica na SBPSP e no XX Congresso Brasileiro de Psicanálise, 2004.         [ Links ]

Roudinesco, E. Caderno Cultura. In O Estado de São Paulo, 20.9.2009.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Susana Muszkat
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Jericó, 255 cj. 68 05435-040
São Paulo, SP
e-mail: smuszkat@terra.com.br

 

Recebido em 13.11.2009,
aceito em 20.11.2009

 

 

1 Membro associado da SBPSP, mestre em Psicologia Social pelo IPUSP, Coordenadora do Comitê Internacional permanente de Relações IPA/IPSO.
2 A título de esclarecimento, a IPSO passou a ser denominada como um "special IPA body" apenas recentemente em 2007, tendo assim, finalmente, um reconhecimento formal no guarda-chuva da IPA.
3 Tradução livre feita por mim.
4 As normas, de maneira geral, que regem o funcionamento das Sociedades, especialmente no que diz respeito à formação de novos membros, são as mesmas estabelecidas há cerca de oitenta anos! Para alguns dados da história da IPA veja o site ww.ipa.org.uka
5 A denominação de candidato para os analistas em formação, foi e continua sendo alvo de críticas por aqueles em formação nos Institutos. Nos EUA, uma sociedade onde predomina a cultura da democracia, essa denominação é desde há muito, "affiliate members". A expressão candidato, carregada de um sentido ideológico, marca de maneira acentuada, a diferença entre membros e não membros, dentro da tendência elitista já mencionada. Sugere, ainda, um caráter estudantil a analistas com larga experiência profissional em diversas áreas, que os desqualifica frente a outros analistas, face ao público leigo, usuário de seus serviços profissionais. Assim, recentemente em São Paulo, alterou-se a designação destes para Membros Filiados do Instituto, lugar ao qual estão de fato filiados todos aqueles em formação psicanalítica.
6 Para saber mais sobre a IPSO, seu funcionamento, sua história e atividades, veja o site http://www.ipso-candidates. org.uk.
7 A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo vale dizer, tem evidenciado ao longo das últimas gestões de diretorias, conjuntamente com uma ativa Associação de Candidatos, uma postura mais democrática, sendo que atualmente, membros filiados (não mais denominados candidatos) fazem parte do comitê de ensino com direito a voto tal qual membros associados e efetivos.
8 É um dado muito curioso que, este declínio mencionado, verificado no mundo ocidental, tem atualmente um movimento inverso no mundo oriental. Países do leste europeu, China, Índia, Rússia, vêm apresentando um número crescente de interessados na formação psicanalítica. Muitos deles ingressam em verdadeiras maratonas a fim de fazerem sua formação em países da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos. Nesses lugares, a psicanálise mostra-se tão vigorosa e em expansão como foi há algumas décadas nos países do ocidente.
9 Que os analistas sejam graduados, com muita experiência é bastante consensual. N o entanto, a questão da análise didática em si, praticada por analistas didatas autorizados pela instituição, não é consensual, sendo praticada de distintas maneiras em diferentes Sociedades. Contudo, o custo para o analista em formação é, em qualquer dos modelos adotados, é invariavelmente um investimento de alta monta, tornando-se muitas vezes impeditivo.

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