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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

RESENHAS

 

 

Resenha: Daniel Delouya2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

1. The Struggle against Mourning

Autor: Ilany Kogan1
Editora: Jason Aronson, N ew York, 2007, 263p

2. Escape from Selfhood

Autor: Ilany Kogan
Editora: International Psychoanalytical Association, London, 2007, 106p

 

A fuga do luto

Os dois livros de Ilany Kogan, A luta contra o luto e A fuga de si – passando dos limites e ansiando pelo uno, ambos publicados em 2007, concebem o sofrimento dos pacientes que demandam uma cura no âmbito psicanalítico como consequência de uma luta custosa contra o luto. A atenção aos escolhos erguidos no atravessamento do luto no paciente, assim como aqueles que ele convoca do próprio analista, constitui o foco da cura nas vias da transferência – contratransferência. Entretanto, o tema do luto com as noções centrais de elaboração do trauma no contato com a dor e as defesas que se interpõem aos mesmos (denegação, defesa maníaca, atuação etc.) não se desenrolam em um plano teórico. O substrato do livro é outro, pois visa outro objetivo: Ilany é, essencialmente, uma narradora da clínica e, especialmente, de casos que se destacam sobre o fundo do grande evento traumático na história do Ocidente, o Holocausto; são pacientes oriundos da segunda geração de sobreviventes. Em 1995, Kogan publicou o livro, O grito de crianças mudas – uma perspectiva psicanalítica da segunda geração do Holocausto (London/New York, Free Association Books), marca registrada de sua voz, de seu grito, na literatura psicanalítica. A autora, assim nos parece, encontra no trabalho analítico um instrumento privilegiado, íntimo, para questionar e elaborar, numa espécie de narrativa testemunhal, as consequências da sorte do analista e de seu destino em se encontrar em certo lugar e em certo tempo da história: nascida na Romênia no final da segunda guerra mundial, aos 12 anos de idade, sua família, de origem judaica, foge da terra natal comunista e emigra para Israel. Não apenas como descendente de uma família que em parte foi vítima direta do nazismo na Europa, mas também a imigração para Israel neste período, uma década após o fim da guerra, confrontou Ilany com a população de sobreviventes do Holocausto com cujos filhos ela deveria conviver e que, portanto, comporiam, na sua vida adulta, grande parte de sua clientela. Porém, Kogan não deixa de narrar o trabalho com outros pacientes assim como aborda outros aspectos que não sejam os dos obstáculos ao luto no referido terreno da transmissão transgeracional do trauma. Após a breve revisão teórica acerca do luto, no início do primeiro livro, seguem dois capítulos em torno da feminilidade, em duas pacientes, onde as defesas erguidas, pela idealização de figuras femininas e maternas – seja em uma espécie de atuação de delírio de geração partogênica, seja em uma busca esfomeada de amor passional homossexual –, insistem, solapando o contato com a dor do luto, necessária à separação da mãe, pois esbarram com carências específicas de provisões infantis com a mesma.

Não obstante, o interesse central da autora é mostrar como traumas em sujeitos do Holocausto repercutem no sofrimento de seus descendentes. Nas circunstâncias do nazismo, as perdas de entes queridos, amputados violentamente da vida do sujeito são suscetíveis a fixar esses objetos na dimensão da idealidade, do eu ideal, como na melancolia, não os dispondo ao processo do trabalho do luto em que possam ser abandonados como investimentos (Freud, 1923) para que, de um lado, servissem de reforço identificatório das colunas dos ideais e, de outro, integrassem a malha do eu. Como exemplo, cito o caso de sua paciente cuja infelicidade se travava em torno da mãe, na insatisfação constante desta com a paciente, e de outro, das dificuldades da própria paciente com sua filha. A paciente fica sabendo, na vida adulta, que cada um dos seus pais já havia constituído, antes de se conheceram, famílias próprias, tendo tido cada um uma filha, mas que essas haviam sido mortas junto aos avôs e tios nos campos de concentração nazistas. Na análise, a paciente evoca uma infância feliz na Europa, centrada na relação rica e animada com a mãe, durando até os seus onze anos de idade, a partir de quando esta relação começou a minguar e se azedar tornando-se batalha constante de acusações e queixas infindáveis. Acontece que sua mãe perdeu sua própria família e sua primeira filha, quando a última contava com onze anos de idade, todos vítimas da indústria da morte nazista, nas câmaras de gás. A falha do luto da mãe, no qual a culpa em relação à filha morta é fator importante, se deve a uma fixação do investimento ideal da filha. Fixação que se facilita, à parte os elementos singulares na história e feitio do psiquismo materno, pelas circunstâncias nazistas nas quais os familiares foram brutalmente arrancados e neste caso, tirou-se a vida precocemente de uma filha pequena.

O corte brutal do meio, tal como se assiste no drama de várias famílias na guerra, coloca em relevo carências de investimentos primários, naquilo que pertence ao papel da sedução materna na constituição psíquica. Vale destacarmos, aqui, o segundo livro que se centra no trabalho analítico com um só paciente. A eclosão de vários distúrbios somáticos, junto a um quadro depressivo, de exaustão e de imersão em pensamentos de suicídio, levou o paciente de meia idade à análise. Filho de um casal húngaro de sobreviventes que encontraram durante a guerra, no abrigo da embaixada da Suécia, ele revela uma história bastante conturbada. Sua mãe, como muitas recém-casadas do início da guerra, submeteu-se a tratamentos hormonais para impedir a gravidez. Após a guerra buscou outros tratamentos médicos para poder engravidar e, "por milagre", conseguiu dar nascimento ao filho, mas logo adoeceu. O pai, que perdeu todos seus parentes nos campos de concentração, ficou gravemente deprimido. Tal fenda no ambiente parental propiciou um caráter marcante neste sujeito: o anseio carente, insaciável, pela intimidade com a mãe (e provavelmente dela junto a ele), com quem partilhou o leito até seus dezessete anos de idade, e com as figuras femininas com aparência física semelhante a da mãe. O desrespeito aos limites, no espaço e no tempo, do paciente; suas atuações na análise e em seu entorno – toques de corpo e invasão ao meio familiar da analista etc. – se ligam a essa sua carência junto à mãe que, em meio aos intermináveis tratamentos, acabou se suicidando aos 53 anos de idade. O drama que se assiste no trajeto da vida do paciente, desde o abandono de sua primeira família na Hungria, com dois filhos, a constituição de uma nova em Israel, tendo um filho que acaba se suicidando durante a análise, é impressa pela referida carência. Esta eclode, com o nascimento do paciente, em função da reação de sua mãe e seu pai às circunstâncias específicas da execução nazista, que visava perseguir e exterminar sujeitos e famílias por pertencerem a certos grupos, neste caso o grupo étnico do povo judaico.

Kogan apresentou o caso no Congresso Internacional de Psicanálise em 2005, no Rio de Janeiro, como exemplo do seu trabalho junto à segunda geração de sobreviventes, que lhe valeu um prêmio sobre o estudo do Holocausto e do Genocídio. N o entanto, Ilany Kogan não é a primeira e nem a mais importante e profunda narradora de análises com pacientes da segunda e da terceira geração dos sobreviventes. Este tipo de material tem sido acumulado de vários continentes em que os sobreviventes passaram a morar. Por exemplo, no mesmo Congresso, o trabalho do americano J. M. Herzog, Los degradados… (RBP 39: 75-94) toca, e de forma mais profunda, em uma repercussão semelhante na terceira geração dos sobreviventes do Holocausto. Portanto, a meu ver, não é este o traço mais importante destes dois livros, e provavelmente, também não do seu livro de 1995 ao qual não tivemos acesso. O capítulo 4, Romênia e o luto não resolvido e a parte III Os obstáculos ao luto em tempos de terror (capítulo 8 a 10), d’A luta contra o luto, que tratam respectivamente da relação de Ilany com sua terra natal – provocada pela análise conduzida em língua Romena, de uma médica que falsifica sua identidade étnica para poder gozar, junto ao marido das facilidades da imigração do casal para Israel –, e do tema das dificuldades do manejo analítico em meio aos períodos de terror em Israel, nos orientam quanto ao tema do luto e sua especificidade contextual na obra desta autora.

Como afirmei acima, o luto incide no uso do aparelho psicanalítico para certa cura da identidade, da relação da história do sujeito com a sorte de viver em certo tempo e certo espaço. O que nutre o trabalho de Ilany e o que lhe serve de foco de atenção é uma recusa do luto de espectro maior, já que o trauma do Holocausto pode significar para o judeu a sua expulsão definitiva da "família européia" (o que o obrigou a se juntar ao programa do novo Estado de Israel) levando por água abaixo as aspirações milenares de serem recebidos pelos gentios "hospedeiros" europeus. O Holocausto foi uma resposta atuada da rejeição irrevogável a tal aspiração. O que se desenrola nas histórias clínicas dos livros de Ilany Kogan é um combate ao luto desses anseios históricos. As narrativas comoventes no livro, seu poder de atração, ilustram tal esforço, mas também mostram seus limites. A autora foi criticada – é o que ela nos conta – de que seus casos têm sempre bons desfechos. Ela aceitou a crítica e atribuiu isso a sua própria resistência ao luto, porém tende a acreditar que seu trabalho e sua escrita alcançam a cura progressiva de tal defesa maníaca. Avaliação que não compartilhamos. Ela nos relata como retomou, intensamente, e após 36 anos, suas relações com a saudosa Romênia (marcada pelas lembranças do mundo cristão no qual sua babá romena a inseria) de sua infância, e ela passa a se engajar em programas não só da associação psicanalítica local, mas também de outros serviços sociais. Basta consultar o seu currículo para constatar o grau notável de seu envolvimento no cenário internacional. Essa ambiguidade existe no cerne da conduta da Sociedade Israelense, onde, de um lado, há a vontade de se constituir à parte da comunidade Europeia, firmar uma nova história, mas, de outro lado, faz-se, em surdina, todo o esforço a voltar e fazer parte da mesma comunidade Europeia conforme a velha aspiração. Eis a tortuosa ambiguidade vista nas atitudes provocativas, e de outro, explicativas de Israel diante do mundo, pois no fundo de sua conduta, seu alvo e seu endereço não são os vizinhos-primos, o mundo árabe, mas o mundo Europeu que tentou expelir a sua tradição e seus antepassados.

A beleza dos livros de Ilany Kogan reside neste entrelaçamento da luta contra o luto de cada história, absorta pela dor traumática dos pacientes, com o que se refere à luta contra o luto do povo que o constitui, de forma a convocar em cena o trabalho paralelo no foro íntimo do analista.

 

 

Endereço para correspondência
Daniel Delouya
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Capote Valente, 439/104 – Pinheiros
05409-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3063-0018

 

Recebido em 18.11.2009,
aceito em 25.11.2009

 

 

1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Israelense de Psicanálise.
2 Membro efetivo da SBPSP.

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