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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo 2010
RESENHAS
Paixões ordinárias: antropologia das emoções
Autor: David Le Breton
Editora: Vozes, Petrópolis, 2009, 276p.
Resenhado por: Daniel Rodrigues Lirio,1
O livro do sociólogo francês Le Breton trata daquilo que nos é mais próximo: o olhar, os gestos, o corpo. Aborda a linguagem entranhada, da boca que fala antes de se abrir. E ao nos aproximar tanto daquilo que nos é mais familiar, Le Breton nos faz estranhos em nossa morada, nos torna espectadores de nós mesmos, para enfim nos mostrar que a cultura está onde acreditávamos encontrar indícios de uma suposta natureza humana. Aqui, a célebre frase freudiana "onde era Isso, o Eu deve advir" (1933/1976b) aparece de forma evidente, sempre compreendendo-se esse Eu como um produto da história, da cultura, da condição geográfica, climática, tribal, das quais cada um se apropria de forma singular e, assim, se apropria de sua fala, de seu olhar, de seu corpo.
Apesar de não usar o jargão específico, o autor mostra-se versado em psicanálise. Ao transitar por temas como os fenômenos de massa, a aquisição da linguagem, o estágio do espelho e a dialética das identificações, seu caminhar antropológico se dá par e passo com a teoria freudiana. O surgimento da instância superegoica, por exemplo, aparece aqui de forma tão trivial e cotidiana, que quase nos passa desapercebido. Em outros momentos, ele nos faz avançar na própria pesquisa psicanalítica.
Nesse livro, a importância para nós psicanalistas dos estudos de sociologia e antropologia, evidencia-se na discussão de quando e como determinadas transformações ocorreram na cultura. A esse respeito é notável a descrição que Le Breton faz da Europa do século XVII e da condição atual de países como a Índia, onde as atividades excretoras não geram asco aos observadores, isto é, não são inseridas em uma moral e não se chocam com uma tradição de civilidade. Esse tipo de observação permite maior acurácia às compreensões psicanalíticas da cultura, pois mostram que a civilização não se estrutura às custas desta parte das pulsões como havia suposto Freud (1930/1976a) ao situar o asco como produto da repressão das pulsões anais que teria acompanhado a passagem para a marcha bípede. À luz das ideias do sociólogo, a teoria psicanalítica se atualiza ao constatar que a familiaridade com as excreções em certos países revela que o asco, no ocidente, é uma produção moderna que diz de um apagamento ritualizado de uma determinada dimensão do corpo. Ou seja, ela diz de um ideal moderno de beleza, civilidade e bons costumes.
Outro ponto interessante que Paixões ordinárias traz para a compreensão psicanalítica é que a agressividade e a imposição cruel do mais forte sobre o mais fraco também são relativamente recentes. A ideia de que a dominação violenta realizada por indivíduos deveria ser cerceada, e que caberia ao estado, ou ao representante político, dar forma a sua expressão, iniciou-se por volta do século XVI, levando vários séculos para se estabelecer – ou seja, é muito recente em nossa civilização. O controle da agressividade é correlato às proscrições das excreções corporais, (cuspir, assoar, urinar, defecar, arrotar), executadas antigamente sem cuidado em relação à presença de outras pessoas. Dessa forma, o homem foi instado a controlar suas emoções e expressões corporais, reprimi-las, e isso permitiu melhores condições de civilidade. Le Breton cita, então, Norbert Elias, para dizer que "o campo de batalha foi transportado para o interior do homem".
Essa modalidade de estudo sociológico e antropológico contribui, portanto, para o debate sobre o que seria necessário e o que seria contingente em nossa civilização. Acima dessas questões, o ponto principal do livro é mostrar o constante inacabamento do corpo, sua ancoragem na relação com o outro, na linguagem, nos hábitos culturais e modos de vida em sociedade. Logo, o corpo, o gestual e a expressividade são produções que implicam o jogo constante de interações, espelhamento e permanência do outro: é preciso a constante reinserção corporal do outro. Para a compreensão deste processo, é muito útil a noção de intercorporeidade, desenvolvida por Merleau-Ponty (1964), posteriormente retomada para pensar as modificações corporais (Lirio, 2008).
De fato, Le Breton considera o substrato fisiológico, assim como as singularidades individuais, mas esses fatores se expressam de acordo com o repertório cultural e com o lugar ocupado pelo indivíduo na sociedade. Submetido aos vetores sociais, o corpo, o gestual e a expressividade podem transformar-se conforme as mudanças no meio: o homem é um universo de possibilidades, sua natureza "realiza-se somente na cultura que o acolhe" (p. 16).
Contudo, tratar o corpo humano como plástico e formatado pela cultura pode parecer uma proposição vaga até lermos o primeiro capítulo desse livro. Aqui, o autor desconstrói a ideia mais natural que temos sobre nós mesmos: que o corpo humano é uma constante, é naturalmente da forma como o conhecemos. Para questionar esse pensamento tão arraigado, o autor apresenta os casos limites das crianças-lobo, que viveram por anos longe do contato humano, criadas por animais. Le Breton mostra que nesses casos o corpo era formado de carne de lobo, era conformado com mandíbulas protuberantes, dentes afiados, olhos sensíveis no escuro, articulações inflexíveis nos joelhos e quadris, calosidades espessas nas extremidades dos membros, lábios mais grossos e respiração e bocejo ao modo dos lobos. Além disso, a pele era muito mais resistente à temperatura, olfato e audição eram extremamente desenvolvidos em detrimento da fala, que, por sua vez, limitava muitas outras capacidades. Fica, assim, evidente que nossas sensações mais íntimas, os gestos mais elementares e a conformação corporal provêm do meio sociocultural. Essa ideia deve ser entendida em sua radicalidade; se conseguimos compreendê-la, percebemos que a verdadeira natureza humana é não ter natureza pré-definida, é ser plástica, aberta aos caprichos da história. O corpo singular é corpo coletivo, seja uma comunidade, seja uma matilha.
No segundo capítulo o autor nos leva a repensar a dimensão gestual da comunicação. Cada gesto só adquire sentido quando compreendido na sequência de outros gestos, e esses, por sua vez, devem ser compreendidos à luz de um contexto maior de gestualidade entranhado no contexto da cultura local. O corpo não é passivo da cultura, é uma forma ativa de interpretação e expressão, de acordo com o meio, mas de forma singular, conforme temperamento e história pessoal. A comunicação aqui se torna ambiguidade, ambivalência e confusão, pois todos os poros do corpo humano expressam a emoção, não necessariamente de forma unívoca. Nesse sentido, os gestos não encerram um sentido pré-definido, estão sempre abertos à interpretação do espectador.
Nesta abordagem, Le Breton enfatiza esses fatores em detrimento dos enunciados verbais. Por vezes, a expressão corporal do sujeito enfatiza ou aprimora seu enunciado, por outras, contrapõem-se a ele, explicitando ambiguidades e contradições. Por exemplo, no caso das mães de esquizofrênicos, conforme o autor, é frequente a oposição entre o que se diz e o que se expressa corporalmente.
Após essa segunda desconstrução, o autor nos convida a estranhar outra certeza arraigada na cultura: a universalidade das emoções. Estas também são produzidas com base nos valores culturais, a tal ponto que a forma de sentir varia muito nas diferentes culturas – o que torna bastante problemático o ofício da tradução. A emoção é um acontecimento extremamente complexo, pois está sediada no indivíduo e decorre da interpretação e significação que ele faz de uma determinada situação. Contudo, essa significação ocorre com base na identificação com os outros, com uma sociabilidade que marca o quê e como ele deve sentir, e como deve se expressar. Portanto, ela tem uma dimensão passiva, como indicado em "paixão", "pathos", aquilo de que se sofre passivamente; mas também existe um caráter ativo, à medida que envolve trabalho de significação, interpretação, escolha do modo mais ou menos controlado de expressá-la etc. Além disso, ela é simultaneamente individual e social. Enfim, o autor segue na linha de Merleau-Ponty para superar as oposições fáceis entre passividade e atividade, dentro e fora; e cita seu conterrâneo para dizer que cada sujeito habita e é habitado pelo corpo do outro, o que nos faz pensar na superação dos limites demasiadamente nítidos do corpo, em direção ao que o filósofo chama de intercorporeidade. (Merleau-Ponty, 1964)
Nos quatro primeiros capítulos, o autor toma um contraponto para as suas proposições: a tradição do pensamento ocidental de mensurar, objetivar e universalizar. Assim, Le Breton critica o pesquisador que toma a si mesmo como padrão, e trata suas próprias ideias, feições, hábitos e gostos como a norma, o normal. Ao fazê-lo, o rolo compressor das ciências humanas que se pretendem ciências exatas busca incessantemente abstrair o universo de sentidos do homem, para mensurá-lo, fotografá-lo, filmá-lo, auscultá-lo. Segundo o autor, essa apreensão desconhece a complexidade, transitoriedade e ambiguidade das emoções. Não existe emoção pura, toda paixão é transitiva. Enfim, nesse livro temos o embate entre a perspectiva de que o homem, ser eminentemente biológico, instintivo, pode ser investigado por si só, e aquela perspectiva que descentraliza o sujeito, colocando-o sempre como um produto de sua cultura e de seu meio e que, por estar sempre descentralizado, está sempre como faltante, como dependente do meio para a sua sobrevivência simbólica e que, portanto, jamais cessa de buscar e produzir sentido.
Quando os cientistas buscam uma apreensão exata das emoções e dos sentidos, tentam passar o humano pela fechadura da ciência, e o que passa adiante é sempre um arremedo de humanidade. Tal ingenuidade seria cômica se essa conduta não fosse hegemônica na atualidade, pois uma parte importante da sociedade demanda respostas objetivas, estatísticas, uma compreensão científica daquilo que é – e sempre será – do campo do mistério, da vertigem e do abismo; enfim, daquilo que só conseguimos vislumbrar tateando devagar, olhando de soslaio. Ao se colocar como desencarnado, o cientista torna-se herdeiro da tradição da filosofia ocidental que espera do homem sábio apenas racionalidade e autocontrole. Nesse ideal, a razão deve dominar a emoção e, por conseguinte, controlar as expressões corporais – em suma, o corpo deve estar submetido à racionalidade expressa pela linguagem verbal.
Ao contrário, Le Breton defende a imbricação entre pensamento e emoção: esta decorre da compreensão da realidade, e a vontade de saber é sempre motivada por questões da subjetividade. O próprio autor demonstra estar encarnado, isto é, inserido em um contexto social e acadêmico e, portanto, sujeito às expectativas quanto à sua teorização. Nessa medida, ele oscila: defende a sobredeterminação social das paixões, sua irredutibilidade a perspectivas universais; mas seu lugar de pesquisador o leva à busca por categorias estáveis, a querer explicitar exatamente o que entende pelas noções de emoção e sentimento. Felizmente, seu objeto mantém-se rebelde a uma apreensão definitiva, e leva o autor ao movimento constante de avanços, retornos, aprofundamentos e novos passeios pelas culturas e pela História.
Curiosamente, ao perseguir esse objeto selvagem pela mata fechada, ele acaba tropeçando em buracos que ele mesmo escavara. Por exemplo, ao criticar a compulsão das provas científicas, o autor termina por usar desse mesmo expediente para provar estatisticamente que essas perspectivas são falhas. Isso acontece quando questiona os pesquisadores que se utilizam de experimentos em laboratório para definir quais seriam as emoções fundamentais e universais. Le Breton utiliza como prova do absurdo dessas tentativas, outro experimento de laboratório em que essas hipóteses são refutadas. Ao fazê-lo, ele se esquece de sua maior proposta, de que, por serem produtos culturais, as emoções não podem ser reproduzidas em laboratório.
Parece-nos, assim, que o corpo de Le Breton, nos últimos capítulos, está cansado de tanta relatividade e busca descansar em uma perspectiva específica, constante. Ele discorre sobre o olhar e sobre o teatro para falar das linhas europeias de encenação. Os capítulos longos tornam-se mais curtos, com posições mais unívocas e universais sobre o objeto estudado. É muito curioso observar, no quinto capítulo, como o olhar, mediação social, é tomado pelo sociólogo como único absoluto e universal. Aqui a dimensão do olhar é enfatizada em sua tatilidade, capacidade de tocar o rosto e atingir o sujeito em seu todo; valoriza, confere existência, ou mesmo destrói existencialmente o outro, daí a importância do olhar na vergonha, orgulho, ódio, cobiça: "o olhar é o mediador privilegiado da comunicação e a sede essencial da identidade" (p. 230)
O olhar tem tanta força que fascina o próprio o autor; ele mesmo se torna fetichizado pelo olhar. Assim, ele justapõe dimensões ou funções do olhar, como o "mau olhado", a acusação, a aprovação, o reconhecimento. Nesse sentido, as diferentes culturas se complementam, em vez de se distinguirem, como nas demais dimensões da humanidade. Ainda que discorra sobre diversas culturas, é como se, com referência ao olhar, todas as culturas coincidissem e pudéssemos falar da existência de "o olhar". Quem chega até aqui já adquiriu intimidade com autor e, ao mudar a página, pode lhe perguntar, sussurrando: "professor, então não existe o corpo, não existe uma gramática das gestualidade, nem uma ciência das fisionomias... mas o olhar é sempre o olhar? Pois sim, professor, prossiga...". E o autor prossegue, superando as fórmulas iniciais, ele segue na esteira das emoções humanas e altera seu modo de teorizar.
No último capítulo, Le Breton explora a distinção entre emoção e expressão corporal da emoção ao falar do "paradoxo" do ator, sua capacidade de simular emoções como se fossem verdadeiras. O ator deve dominar os códigos corporais de sua cultura a fim de transmitir emoções que não sente. Para tanto, deve usar sua memória afetiva, isto é, pode buscar nas próprias emoções a matéria prima para construir a personagem – novamente é curioso, porque recorre a uma prática específica de algumas culturas, o teatro ocidental, para pensar algo mais geral no humano.
Ainda assim, ele abre a porta para pensarmos uma dimensão humana para além das emoções e de sua expressão corporal, é o campo da memória afetiva, dos desejos, da capacidade de se desdobrar e se tornar diferente de si mesmo. Aqui reside também a capacidade humana de mentir, não só com sua fala, mas com seu corpo todo. Contudo, surge aqui uma pequena armadilha, porque a intencionalidade do ator de simular uma emoção que não sente pode levar ao falso entendimento de que seria possível transparecer os sentimentos mais íntimos com veracidade, como se toda a trama inconsciente de pulsões e desejos pudessem se expressar na aparência, como se nossa imagem corporal não fosse uma alienação frente ao que realmente somos. Longe disso, a parte consciente e imaginária do Ego é apenas uma minúscula fração da subjetividade. É isso que a psicanálise, por sua vez, pode ensinar à sociologia.
Que o homem seja tão determinado pela cultura e pela história e, ao mesmo tempo, seja produtor de cultura e, principalmente, agente de sua história, é essa a natureza e o mistério do humano. É possível fundamentar essa ideia em Le Breton, ainda que esse último passo deva ser dado com nosso próprio corpo.
Referências
Freud, S. (1976a). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 75 -171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930) [ Links ]
Freud, Sigmund (1976b) Novas conferências introdutórias em psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Conferência 31, Vol. 22, pp. 75-102). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933) [ Links ]
Lirio, D.R. (2008). Suspensão corporal e as três dimensões da intercorporeidade. Revista Brasileira de Psicanálise, 42 (2), 58-68. [ Links ]
Lirio, D.R. (2010). Suspensão corporal: novas facetas da alteridade na cultura contemporânea. São Paulo: Annablume. [ Links ]
Merleau-Ponty, M. (2000). O visível e o invisível. In J. Guinsburg (Org.), Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1964) [ Links ]
Daniel Rodrigues Lirio
[Psicologia Universidade de São Paulo USP]
Rua Jorge Tibiriçá 199 ap. 133 | Vila Mariana
04126-000 São Paulo, SP
e-mail: danielrlirio@yahoo.com.br
[Recebido em 3.11.2010, aceito em 26.11.2010]
1 Psicanalista; psicólogo e mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo.