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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo jan./mar. 2011

 

ARTIGOS

 

Freud: normalização e crítica

 

Freud: normative ideal and criticism

 

Freud: normalización y crítica

 

 

Sérgio Bacchi Machado

Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Correspondência

 

 


RESUMO

Com base nos textos "Neurose e psicose" (Freud, 1924/1996C) e "A perda da realidade na neurose e na psicose" (Freud, 1924/1996e), retomamos o posicionamento de Freud ante as semelhanças e diferenças entre neuroses e psicoses, a fim de circunscrever a concepção de "desvio" a um momento específico da obra desse autor. Questionamos, então, o discurso atual que reputa Freud como adepto do ideal normativo. Para tanto, redesenhamos as principais linhas de força traçadas no texto "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" (Freud, 1908/1996b) com o objetivo de demonstrar a crítica contundente de Freud à moral social e às concepções adaptacionistas; concepções essas que tomam a sociedade como dado visível e completo. Por fim, destaca-se o valor do pensamento freudiano para a crítica à normalização social.

Palavras-chave: Freud; normalização; moral.


ABSTRACT

Taking into consideration the texts “Neurosis and psychosis” (Freud, 1924/1996c) and “The loss of reality in neurosis and psychosis” (Freud, 1924/1996e) , Freud's opinion in terms of the similarities and differences between psychoses and neuroses is taken into consideration in order to bound the concept of madness to a specific moment of this author's work. The present discourse, that considers Freud as upholding the normative ideal, is then contested. In order to do this, the main force lines described in “Civilized sexual morality and modern nervousness” (Freud, 1908/1996b) are mapped out with the aim of demonstrating Freud's strong criticism toward social morality and the adaptationist conceptions. These conceptions treat Society as being visible and complete. Finally, the value of Freud's thoughts concerning social normalization is highlighted.

Keywords: Freud; normative ideal; morality.


RESUMEN

Con base en los textos “Neurosis y psicosis” (1924/1996c) y “La perdida de la realidad em la neurosis y en la psicosis” (1924/1996e), retomamos la postura de Freud al respecto de las semejanzas y diferencias entre neurosis y psicosis, con el objetivo de circunscribir la concepción de “desvío” a un momento específico de su obra. Cuestionamos, por lo tanto, el discurso actual que señala a Freud como adepto del ideal normativo. Para esto, rediseñamos las principales líneas de fuerza trazadas en el texto “La moral sexual cultural y la nerviosidad moderna” (1908/1996b) con el objetivo de demostrar la contundente crítica de Freud a la moral social y a las concepciones adaptacionistas –que consideran la sociedad como un dato visible y completo. Finalmente, se destaca el valor del pensamiento freudiano para la crítica a la normalización social.

Palabras clave: Freud; normalización; moral.


 

 

Este mundo tem suas noites, e não são poucas.

Jan Huizinga

 

I

Discorrer sobre as relações entre o pensamento freudiano e o ideal social normativo é tarefa árdua. Alguns obstáculos se apresentam de imediato. De que normatização estou falando; da época de Freud, ou da nossa? O que entendo por normalização? Como abordar essa temática que, apesar de bastante presente na obra freudiana, nem sempre foi enunciada explicitamente? E mais: as reflexões freudianas acerca da correlação entre sociedade e ideal adaptacionista teriam ainda validade e interesse para os homens do nosso tempo?

Tentarei no texto que segue tocar essas questões de um modo não de todo direto, mas freudiano, se assim podemos dizer. Para tanto, adotarei uma estratégia que posiciona o "desvio" do ideal social, tomado pelo pensamento freudiano, em uma determinada perspectiva, sob a forma da doença mental, isto é, sob a forma da neurose e da psicose. Aviso, porém, de antemão, que não pretendo me restringir às elaborações freudianas relacionadas puramente à doença mental. Pelo contrário, pretendo colher alguns subsídios para, num segundo momento deste texto, proceder a um mergulho mais aprofundado na visão freudiana das relações entre norma e sociedade. Acredito que, ao término deste percurso, ficará demonstrada a relevância da crítica freudiana no que tange essa questão da normalização; questão esta ainda hoje (e, talvez, mais do que nunca) polêmica e controversa.

A inquietação com a doença, em forma patente ou latente, é central no pensamento freudiano, de maneira que, por vezes, temos a impressão de que para discorrermos sobre esse tema seríamos obrigados a repassar sua obra "de fio a pavio". Escolhi dois de seus textos para tangenciar: "Neurose e psicose" (Freud, 1924/1996c) e "A perda da realidade na neurose e na psicose" (Freud, 1924/1996e). Escolha estratégica, uma vez que ambos interpelam especificamente as diferenças e semelhanças entre neuroses e psicoses naquele momento do discurso freudiano.

Logo no princípio de "Neurose e psicose", Freud lança a tese a ser discutida em ambos os textos: "A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo" (Freud, 1924/1996c, p. 2742). Logo em seguida, em linhas sucintas, ele nos faz rever todo o mecanismo das neuroses:

Nossas análises demonstram todas que as neuroses transferenciais se originam de recusar-se o ego a aceitar um poderoso impulso instintual do id, ou a ajudá-lo a encontrar um escoador ou motor, ou de o ego proibir àquele impulso o objeto a que visa. Em tal caso, o ego se defende contra o impulso instintual mediante o mecanismo da repressão. O material reprimido luta contra esse destino. Cria para si próprio, ao longo de caminhos sobre os quais o ego não tem poder, uma representação substitutiva (que se impõe ao ego mediante uma conciliação) - o sintoma. O ego descobre a sua unidade ameaçada e prejudicada por esse intruso e continua a lutar contra o sintoma, tal como desviou o impulso instintual original. Tudo isso produz o quadro de uma neurose. Não é contradição que, empreendendo a repressão, no fundo o ego esteja seguindo as ordens do superego, ordens que, por sua vez, se originam de influências do mundo externo que encontraram representação no superego. Mantém-se o fato de que o ego tomou o partido dessas forças, de que nele as exigências delas têm mais força que as exigências instintuais do id, e que o ego é a força que põe a repressão em movimento contra a parte do id interessada e fortifica a repressão por meio da anticatexia da resistência. O ego entrou em conflito com o id, a serviço do superego e da realidade, e esse é o estado de coisas em toda neurose de transferência. (Freud, 1924/1996c, p. 2742)

É com base nessa descrição dos mecanismos atuantes na neurose que Freud se debruça sobre a problemática da psicose. Em oposição ao distúrbio ego-id, característico da neurose, a psicose é marcada por um conflito ego-realidade. Ele cita psicoses nas quais lembranças e percepções se deformam ocasionando uma transformação do mundo exterior. Essa alteração da realidade é creditada a frustrações intoleráveis do desejo ocasionadas pela própria realidade:

O ego cria, autocraticamente, um novo mundo externo e interno, e não pode haver dúvida quanto a dois fatos: que esse novo mundo é construído de acordo com os impulsos desejosos do id e que o motivo dessa dissociação do mundo externo é alguma frustração muito séria de um desejo por parte da realidade - frustração que parece intolerável. (Freud, 1924/1996c, p. 2743)

Freud constata, então, que tanto a psicose quanto a neurose seguem uma mesma etiologia que consiste na frustração dos desejos que não puderam se realizar - desejos esses cuja origem deve ser buscada no período da infância. A diferença, portanto, dependeria da ação do ego frente aos impulsos instintuais; disso resultaria o "efeito patogênico" neurótico ou psicótico: "O efeito patogênico depende de o ego, numa tensão conflitual desse tipo, permanecer fiel à sua dependência do mundo externo e tentar silenciar o id, ou ele se deixar derrotar pelo id e, portanto, ser arrancado da realidade" (Freud, 1924/1996c, p. 2743.)

Neurose e psicose compartilham, assim, de um ego incapaz de lidar com as várias exigências que lhe são feitas. Em "A perda da realidade na neurose e na psicose" (Freud, 1924/1996e), Freud problematiza sua tese de que, na neurose, em oposição à psicose, não haveria perda de realidade. Seguindo sua estratégia anterior de descrever a psicose estabelecendo comparações entre esta e a neurose, ele aponta que na segunda ocorre um "afrouxamento da relação com a realidade", devido a um fracasso na repressão do impulso instintual. Esse afrouxamento se dá, pois "a pessoa interessada volta as costas à experiência, e a transfere à amnésia" (Freud, 1924/1996e, p. 2745). Dessa forma, a neurose tenta solucionar o conflito ignorando parte da realidade e fazendo compensações sob a forma de soluções de compromisso, os sintomas. Já a psicose, por sua vez, tenta reparar o vínculo com a realidade (após a repressão instintual) por meio da recriação alucinada desta. Do mesmo modo que a neurose com a criação dos sintomas, a psicose é uma tentativa de reparação da realidade, mas, diferentemente daquela, por via da recriação do mundo externo. Entretanto, apesar dessa realidade recriada manter - e mesmo buscar - um vínculo com o mundo externo, ela tem por função primordial não mais levantar objeções aos impulsos proibidos.

Para Freud, as semelhanças entre neurose e psicose são contundentes. Ambas são expressão de um conflito do id com o mundo externo e ambas correspondem a uma tentativa de reparação do mesmo. Recriação e fuga da realidade diferem psicose de neurose respectivamente. A transfiguração da realidade na psicose, assim como a criação do sintoma na neurose, são processos que têm por base os vínculos passados com o mundo externo. Freud concebe esses antigos vínculos como norteadores da transformação da realidade empreendida pelo psicótico. É justamente devido à constatação de que a alucinação retira sua matéria-prima do mundo externo que Freud afirma ser a psicose, no momento em que recria a realidade, uma tentativa de restauração de seu antigo vínculo com o mundo externo. Mesmo deformada devido às exigências do id, a realidade se impõe na configuração do delírio.

Em uma psicose, a transformação da realidade é executada sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com ela - isto é, sobre os traços de memória, as ideias e os julgamentos anteriormente derivados da realidade e através dos quais a realidade foi representada na mente. (Freud, 1924/1996e, p. 2746)

O enunciado de que o delírio é uma tentativa de cura está articulado ao de que ele é uma forma de vínculo com a realidade. Porém, a primeira enunciação encontra-se no registro latente, ao passo que a segunda ocorre no registro patente.1 Efetivamente, a enunciação de que o delírio já é em si uma tentativa de cura - constituindo mesmo a possibilidade dessa cura - regula a produção do discurso freudiano com relação à loucura.

Freud nos brinda ainda com uma concepção de conduta "normal" ou "sadia" (aspas do autor). Com efeito, a normalidade se daria por uma combinação das reações neuróticas e psicóticas, ou seja, "se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar alteração dessa realidade" (Freud, 1924/1996e, p. 2746).

Dessa forma, podemos inferir que a conduta marcada exclusivamente pela neurose ou pela psicose é "anormal" ou "doente". Conclui Freud que a ação normal permite o acesso ao mundo do trabalho, o qual exige uma alteração do mundo externo. O trabalho seria, assim, a atividade exemplar da normalidade.

Em princípio parece fácil condenar Freud por seu ideal cientificista e sua preocupação normativa em demarcar a doença. Porém, nos textos citados - como, aliás, em toda sua obra -, Freud é repleto de sutilezas. Se, por um lado, a psicose encontra-se no território delimitado pela doença em oposição à normalidade, por outro, ela é positivada por Freud como uma produção singular. O delírio, dessa forma, não é uma pura negatividade que em vão tenta ocupar o lugar abandonado pela razão; pelo contrário, ele tem uma história própria e alvos específicos. Nesse sentido, ao "ouvir as vozes da loucura", Freud rompe significativamente com o saber psiquiátrico. Com efeito, na obra freudiana, neurose e psicose são inseridas no registro da positividade.

Gostaria de questionar na próxima seção outro discurso atualmente bastante corrente que implica Freud no protótipo adaptacionista, ou seja, o reputa como adepto da coerção normativa, mas de uma forma, a meu ver, um pouco precipitada. Não busco, com isso, inserir Freud nesta ou naquela tradição "fechada" de reflexão sobre a "loucura", mas problematizar a relação que o método psicanalítico compõe com as ditas "anormalidades".

 

II

Em "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" (Freud, 1908/1996e), Freud aborda a relação entre psiconeuroses e regras morais sexuais vigentes em sua época. Mais precisamente, ele aponta um vínculo entre essas duas figuras que até então não eram pa

readas. Evidentemente as inervações dessa relação serão exploradas em maior amplitude - e por um enfoque diferente, diga-se de passagem - posteriormente em "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1996a). Porém, já em 1908, Freud demonstra tal fineza em sua exposição do problema que torna difícil equipará-lo aos ativos e brutos defensores da eugenia de então.2

Para Freud, existe uma afinidade estreita entre as doenças nervosas - e ele se deterá no caso específico das psiconeuroses - e a moral sexual civilizada. Com efeito, a moral sexual da civilização é, para Freud, o principal fator etiológico das doenças nervosas. Essa moral, caracterizada pela repressão da vida sexual dos povos civilizados, tem um caráter normativo que prima pela desconsideração dos fatores constitutivos individuais. Assim, a civilização exige a adesão maciça de seus membros a uma norma moral essencialmente niveladora. Ao exigir a restrição de um considerável quinhão de instintos tão "prementes", a sociedade faz vista grossa à impossibilidade constitutiva de grande parte de seus membros de realizar com êxito essa supressão. As exigências morais da cultura, no que se referem à coerção do instinto sexual, podem ser, segundo Freud, resumidas em três estádios:

um primeiro em que o instinto sexual pode manifestar-se livremente sem que sejam consideradas as metas de reprodução; um segundo em que tudo do instinto sexual é suprimido, exceto quando serve ao objetivo da reprodução; e um terceiro no qual só a reprodução legítima é admitida como meta sexual. A esse terceiro estádio corresponde a moral sexual civilizada. (Freud, 1908/1996b, p. 1253)

Uma exigência de tal monta, aliada à obstinação de grande parte dos membros da civilização em segui-la à risca, traz como consequência inevitável o incremento das psiconeuroses. A renúncia à realização dos impulsos instintuais teria como contrapartida - no caso de não ser possível ao indivíduo sublimar e, para Freud, frequentemente não o é3 - complexos ideativos inconscientes de conteúdo sexual. Longe de permanecerem inativos, os impulsos reprimidos expressam-se em uma forma outra que torna difícil reconhecer seu solo primeiro e sua silhueta original - esse seria o êxito da repressão. Porém, a manifestação desses complexos inconscientes acaba por prejudicar o sujeito e o torna "tão inútil para a sociedade quanto o teria inutilizado a satisfação de seus instintos suprimidos" (Freud, 1908/1996b, p. 1254). Este seria o fracasso da repressão. A renúncia ao impulso instintual e a falha da repressão são correlativas, assim, à anulação do indivíduo face à cena social. Com efeito, o indivíduo passa a ter, a partir daí, como meta fundamental, o empreendimento de grande parcela de sua energia psíquica na conservação de seu complexo ideativo na inope

rância. Sem contarmos o fracasso dessa empresa - os sintomas são substitutos da satisfação instintual que acabam por trazer malefícios muitas vezes superiores às consequências nocivas da pura e simples realização dos impulsos -, um tal dispêndio de energia acaba por inutilizar o indivíduo para as demais atividades a ele delegadas pela cultura.

Ora, mas a questão apontada por Freud é que a própria civilização exige essa renúncia instintual por meio da extrema austeridade de sua moral sexual. Em vez da produção de bens estritamente culturais por meio do emprego da energia sexual de seus membros, a civilização acaba por ocasionar doenças psíquicas que anulam grande parte dos indivíduos e, assim, boicota suas "elevadas" aspirações: "Aqueles que desejam ser mais nobres do que suas constituições lhes permitem, são vitimados pela doença. Esses indivíduos teriam sido mais saudáveis se lhes fosse possível ser menos bons" (Freud, 1908/1996b, p. 1254.)

Lá onde a civilização via um fator de saúde e força, Freud aponta a etiologia da doença; lá onde a cultura estabelece a linha de demarcação rígida entre a normalidade de uma moral sadia e a degenerescência de um corpo enlouquecido, Freud vê uma continuidade de figuras bastante semelhantes regidas pelo mesmo princípio organizador; enfim, lá onde a moral se responsabiliza pelo zelo de uma cultura, o trabalho clínico de Freud no corpo-a-corpo com seus pacientes delineia uma cumplicidade inusitada com a patologia. Assim, a questão é salientar menos a determinação das circunstâncias sociais já como determinantes na proliferação da doença nervosa do que revelar uma verdade da vida normal que a própria normalidade desconhece. Esse desvelamento do real só é possível pelo clarão da patologia, ou seja, a revelação da verdade do normal encontra sua condição de possibilidade na relação de tensão - mas também de continuidade - com a anormalidade. Dessa forma, pelo método psicanalítico e pelo trabalho investigativo junto a seus pacientes, Freud pôde colocar em xeque consagrados valores e silenciosos agenciamentos da civilização. Em decorrência da contiguidade entre normalidade e patologia constatada pela psicopatologia psicanalítica, o estereótipo de "adaptacionista" imposto a Freud por muitas leituras atuais pode ser problematizado. Nas palavras de Silva Jr.:

Pode-se assim compreender que Freud investigue nos próprios sonhos os mecanismos que havia encontrado em pacientes neuróticos e que procure esclarecer o luto normal e a melancolia a partir de uma reflexão simultânea sobre os dois. Na verdade, trata-se de ".. .reencontrar - tal como dizia Freud - a aparente simplicidade do normal a partir de conjecturas, a partir das distorções e exageros do patológico". Assim, longe de "psicopatologizar a cultura", a investigação psicanalítica supõe um profundo desconhecimento desta, e parte da visibilidade do patológico para questionar a invisibilidade do normal. A "normalidade" é uma grande incógnita no método psicanalítico de investigação, e o esquecimento deste princípio transforma rapidamente a psicanálise em uma versão mística da reengenharia de comportamento. Com efeito, é a própria "alteridade como enigma", seja ela normal ou patológica, que confere uma posição forte, isto é, um princípio constitutivo à psicopatologia psicanalítica. (Silva Jr., 1999 , p. 135)

Não por acaso as linhas finais do ensaio de Freud são dedicadas a uma crítica venenosa (em que a ironia e o humor não são elementos ausentes) dirigida à "normalidade":

Em vista disso, é justo que indaguemos se a nossa moral sexual "civilizada" vale o sacrifício que nos impõe, já que estamos ainda tão escravizados ao hedonismo a ponto de incluir entre os objetivos de nosso desenvolvimento cultural uma certa dose de satisfação da felicidade individual. Certamente não é atribuição do médico propor reformas, mas me pareceu que eu poderia defender a necessidade de tais reformas se ampliasse a exposição de Von Ehrenfels sobre os efeitos nocivos de nossa moral sexual "civilizada", indicando o importante papel que essa moral desempenha no incremento da doença nervosa moderna. (Freud, 1908/1996b, p. 1261)

 

III

Gostaria agora de abordar a relação entre o pensamento freudiano e a normatização por outra perspectiva. Quando escreveu “Introdução ao narcisismo” (Freud, 1914/2010), Freud, como sabemos, realizou a primeira reviravolta na teoria das pulsões. Com efeito, a oposição entre pulsão do ego e pulsão sexual foi desfeita. Essa reviravolta teve consequências significativas na metapsicologia freudiana, uma vez que ela se coaduna com o desenvolvimento do conceito de narcisismo.Simultaneamente, a compreensão de Freud sobre o ego alterou-se consideravelmente.

Se antes o papel primordial do ego era ser um mediador com a realidade, agora ele passa a ser um reservatório de libido. Além disso, o ego constitui-se por meio de um investimento libidinal. Longe de dessexualizar o psiquismo – como defendia Jung –, Freud, com o narcisismo, fez o caminho oposto, ou seja, sexualizou o ego. Assim, o ego é criado por meio de um investimento da libido, e esse investimento dá as condições de possibilidades do ego.

Desse modo, Freud, embasado em sua clínica, propõe uma teorização que, num primeiro olhar, parece contraditória: é o narcisismo que possibilita um contato eficiente com o mundo externo. É curioso que a interação com a realidade seja possibilitada justamente pelo narcisismo; narcisismo esse que era uma imagem tradicionalmente usada para descrever situações de isolamento - Narciso adorando sua própria imagem e esquecendo-se do mundo. Trata-se, com efeito, de mais uma grande reviravolta na compreensão psicanalítica do ser humano. Freud chama esse narcisismo de "narcisismo primário".4

Ao ser investido pela libido, o ego torna-se também sede da libido. Freud desenvolve, então, conforme já citado, a imagem do ego como reservatório da libido: "o ego deve ser considerado como um grande reservatório de libido, de onde a libido é enviada aos objetos, e que está sempre pronto a absorver a libido que reflua dos objetos" (Freud, 1914, citado por Laplanche & Pontalis, 1998, p. 287). Desse modo, o ego se torna capaz de criar relações com o objeto por meio do investimento libidinal que parte dele mesmo. Porém, a libido pode também retornar ao ego após ser investida no objeto, de modo que o ego comporta-se como o corpo de uma ameba para com os pseudópodes que enviou (Freud, 1914/2010, p. 16). A esse movimento da libido que retorna ao ego Freud dá o nome de narcisismo secundário. Como podemos ver, a preocupação central de Freud nesse momento parece ser a natureza da relação do eu com a realidade externa, daí o nosso interesse nesse estágio do pensamento freudiano.

Vemos, então, que o ego, com o narcisismo, tornou-se ele mesmo objeto da libido. A consequência significativa dessa teorização é a constituição de uma relação de oposição sincronizada entre a libido do ego e a libido do objeto. Nas palavras de Roudinesco e Plon, Freud formula:

a hipótese de um movimento de gangorra entre as duas, de tal sorte que, se uma enriquece, a outra empobrece, e vice-versa. Nessa perspectiva, a libido de objeto, em seu desenvolvimento máximo, caracteriza o estado amoroso, ao passo que, inversamente, em sua expansão máxima, a libido do eu fundamenta a fantasia do fim do mundo no paranoico. (Roudinesco & Plon, 1998, p. 531)

O narcisismo primário é o trabalho de constituição de uma imagem unificada do corpo.5 A favor disso, atuam as ações parentais. Por meio de suas ações e interações com a criança, os pais expressam sua admiração por esse ser supostamente perfeito, criando, dessa forma, uma atmosfera de "plenos poderes" a ela. Freud explica esse tipo de comportamento parental como sendo a expressão de seu próprio narcisismo primário deixado para trás.

Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. ... O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal. (Freud, 1914/2010, p. 40)

A manifestação tardia do narcisismo dos pais possibilita que a criança desenvolva aquilo que Freud chama de ideal do ego.6 Por meio do narcisismo primário, a criança forja essa formação intrapsíquica, o ideal do ego. "Primitivamente a criança era seu próprio ideal" (Freud, 1914, citado por Roudinesco & Plon, 1998, p. 362). Efetivamente, com a introdução do conceito de narcisismo, Freud configura um ideal como referência do eu.

O desenvolvimento da criança proporciona uma espécie de "descolamento" do ideal do ego do ego atual, de forma que o ideal do ego, sendo a instância correspondente à ideia de perfeição do eu, exercerá uma função crítica em relação ao ego atual. De fato, o ideal do ego tem um papel normativo, uma vez que a pessoa "erigiu um ideal dentro de si, pelo qual mede o seu eu atual" (Freud, 1914/2010, p. 40).

Porém, será apenas em 1921, com "Psicologia de grupo e análise do ego" (Freud, 1921/1994), que Freud iluminará totalmente o conceito de ideal do ego. De fato, ele apontará, então, essa instância como capaz de se defrontar com o ego e instaurar o conflito. Segundo Freud, a essa instância

chamamos de ideal de ego, e lhe atribuímos como funções a auto-observação, a consciência moral, a censura onírica e o exercício da influência essencial no recalque. Dissemos que ela era herdeira do narcisismo primário, em cujo seio o eu da criança bastava a si mesmo. (Freud, 1921, citado por Roudinesco & Plon, 1998, p. 363)

Sabemos que a trajetória iniciada por Freud com o texto introdutório do narcisismo desembocará na segunda tópica. De fato, em "O ego e o id" (Freud, 1923/1993), o ideal do ego dará origem ao conceito de superego, o qual se formará por meio de uma intrincada rede de identificações. Entretanto, para os propósitos do presente estudo, não é necessário avançarmos mais nesse percurso freudiano. Isso porque, já em "Introdução ao narcisismo", Freud deixa clara a natureza, a um só tempo, individual e social do ideal do ego: "Do ideal do Eu sai um importante caminho para o entendimento da psicologia da massa. Além do seu lado individual, ele tem o social, é também o ideal comum de uma família, uma classe, uma nação." (Freud, 1914/2010, p. 50)

Sim, é o suficiente para a reflexão acerca do ponto a que queremos nos ater. O conflito atravessa toda a produção freudiana. Não por acaso, Freud nunca trilhou o caminho da primazia de uma única pulsão. Logo que a oposição entre pulsão de sobrevivência e pulsão sexual foi superada, surgiu a oposição pulsão de vida e pulsão de morte. Não menos importante que essa, é a confrontação entre desejo e moral; ou entre consciente e inconsciente; ou, ainda, entre id e ego. É mais do que conhecida a afirmação de que o aparelho psíquico teorizado por Freud se constitui por meio do conflito. A discórdia sempre foi um elemento central no pensamento freudiano. Longe de ter um efeito restritivo, a discórdia sempre foi para Freud uma ocasião de criação e proliferação. Criação e proliferação de discursos inseridos em diversos registros. O conflito gera teoria, mas também gera fala e associações por parte do analisando; associações e falas que, por sua vez, possibilitarão tanto o andamento da análise quanto a criação de mais teoria. Conforme afirma Guirado (2000), essa proliferação de discursos nada mais é que a própria instituição psicanálise realizando-se em ato a si mesma.

Portanto, Freud considerava o conflito como característico da condição humana.7 Efetivamente, a originalidade de Freud foi demonstrar, por meio de uma produção teórica consistente, que o conflito não está presente apenas nas relações entre indivíduos ou grupos. Antes, o conflito habita a interioridade do homem. O homem é marcado por esse conflito a tal ponto que sua singularidade se ergue por meio dele. Nesse sentido, o inconsciente é, ao mesmo tempo, a expressão máxima e o substrato desse conflito.

Porém, como vimos anteriormente, a confrontação não se restringe ao plano endógeno. Ricas, complexas e sutis são interações entre o sujeito e o mundo externo. Em "Psicologia de grupo e análise do ego" (Freud, 1921/1994), Freud expôs como a psicanálise, ao se debruçar com o máximo de rigor sobre a individualidade, encontrou, justamente aí, a marca do social. Mas isso não implica que os dois polos - indivíduo e sociedade - se equi

valem. Pelo contrário, há uma relação constitutiva de tensão entre esses dois polos. Ora, como vimos anteriormente no narcisismo e no ideal do ego, essa enunciação já se fazia presente em sua obra, apesar de ainda se situar no registro latente, e não no patente. Na mesma linha, Freud já havia anunciado em "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia" (Freud, 1911/1996d) que o delírio é a manifestação de uma verdade histórica do paciente; em outras palavras, que o delírio é produzido com base na história pessoal do sujeito.

A singularidade, portanto, se constitui e se transforma por meio da confrontação com o mundo. Ao ser marcado pelo conflito, ao ter o conflito habitando dentro de si, o homem é tomado em sua condição trágica. De acordo com Roudinesco, Freud, por meio de sua metapsicologia, opõe:

o homem trágico, verdadeiro cadinho da consciência moderna, ao homem comportamental, reles criatura cientificista inventada pelos adeptos do cérebro-máquina. Ao monstro sem nome, fabricado por um cientista megalomaníaco, a psicanálise opõe o destino de Victor Frankenstein, isto é, a trajetória de um sujeito perpassado por seus sonhos e utopias, mas limitado em suas paixões mortíferas pela sanção da lei. (Roudinesco, 2000, p. 128)

A meu ver, essa abordagem trágica da condição humana é fundamental para a compreensão da obra de Freud, e, mais do que isso, para a crítica responsável ao dispositivo normativo moderno.

 

IV

Freud viveu em um tempo diferente do nosso. Seria seu texto "datado"? A normalização social assumiu uma forma completamente diversa em nossa época atual? Em outras palavras, a escritura freudiana teria tornado-se "documento histórico"? Sem negarmos as diferenças evidentes referentes ao tempo e ao espaço, acreditamos que tal enunciação não se justifica.

Em textos como "Moral sexual civilizada e doença moderna" (Freud, 1908/1996b) há questionamentos que abrangem os fundamentos da civilização ocidental como um todo; civilização essa que persistiu em nossa época e cujos fundamentos não erodiram. Os vetores de força que sentimos hoje como uma máquina de tortura já se delineavam na época de Freud. Como homem e como pensador, ele se defrontou com a questão da normalização. Sua obra é profícua em questionamentos e inquietudes sobre o mal promovido pela coerção social. Suas concepções, não raro contraditórias, formam, ainda hoje, um contundente horizonte para toda reflexão que pretende se aventurar além dos limites impostos pelo ideal normativo. Para libertar o pensamento das amarras adaptacionistas, a crítica aos processos sociais que exigem do indivíduo o abandono de sua "humanidade" se mostra premente.

A força do ideal normativo no mundo atual é um fato. Vivemos em uma sociedade que enaltece o sucesso em suas formas mais rudimentares: a riqueza financeira e o holofote midiático. Viver tornou-se sinônimo de "vencer", de modo que tanto a sociedade do espetáculo (Debord, 1992) quanto o poder disciplinar (Foucault, 1987) parecem ter abandonado sua aspiração a modelos explicativos para se tornarem as únicas realidades possíveis. O domínio da norma parece querer estender-se por nada menos que a totalidade social. O que o dispositivo normativo nos pede é que nos encaixemos num molde, numa norma, isto é, que nos tornemos um mecanismo puramente adaptativo. Sobre esse mecanismo, urge refletirmos para que as brechas possam ser criadas; e, para essa reflexão, a leitura de Freud pode abrir-nos algumas portas.

Não se trata de seguir as proposições de Freud ao pé da letra, mas de tomá-lo como o grande pensador da singularidade que ele é, para se criar um novo pensamento. O que se propõe aqui é a aceitação de Freud como um precioso interlocutor para se empreender uma nova crítica. Uma crítica que hoje, mais do que nunca, é necessário que se faça ouvir.

 

Referências

Debord, G. (1992). La societé du spectacle. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Foucault, M. (1987). Vigiar e punir. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.         [ Links ]

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Freud, S. (1996b). La moral sexual cultural y la nerviosidad moderna. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 2, pp. 1249-1261). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1908)        [ Links ]

Freud, S. (1996c). Neurosis y psicosis. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 3, pp. 2742-2744). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

Freud, S. (1996d). Observaciones psicoanaliticas sobre un caso de paranóia autobiograficamente descrito. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 2, pp. 1487-1528). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Freud, S. (1996e). La perdida de la realidad em la neurosis y en la psicosis. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 3, pp. 2745-2749). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

Freud, S. (2010). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Guirado, M. (2000). A clínica psicanalítica na sombra do discurso. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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Correspondência:
Sérgio Bacchi Machado
[Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo USP]
Rua Souza Ramos, 171 ap. 32A Vila Mariana
04120-080 São Paulo, SP
Tel: 11 5575-0725
bacchimachado@gmail.com

Recebido em 20/10/2010
Aceito em 16/12/2010

 

 

1 Em "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia" (Freud, 1911/1996d), Freud, conforme veremos mais adiante no presente artigo, já havia enunciado no registro patente que o delírio é uma tentativa de cura.
2 "É uma honra política para a psicanálise - ou pelo menos para o que pôde haver nela de mais coerente - ter suspeitado (e isto desde o seu nascimento, ou seja, a partir de sua linha de ruptura com a neuropsiquiatria da degenerescência) do que poderia haver de irreparavelmente proliferante nesses mecanismos de poder que pretendiam controlar e gerir o quotidiano da sexualidade: daí o esforço freudiano (sem dúvida por reação ao grande crescimento do racismo que lhe foi contemporâneo) para dar à sexualidade a lei como princípio ... A isso a psicanálise deve o fato de ter estado - com algumas exceções e no essencial - em oposição teórica e prática ao fascismo." (Foucault, 2003, pp. 140-141).
3 "A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação. Contrastando com essa motilidade, na qual reside seu valor para a civilização, o instinto sexual é passível também de fixar-se de uma forma particularmente obstinada, que o inutiliza e o leva algumas vezes a degenerar-se até as chamadas anormalidades. O vigor original do instinto sexual provavelmente varia com o indivíduo, o que sem dúvida também acontece com a parcela do instinto suscetível de sublimação. Parece-nos que a constituição inata de cada indivíduo é que irá decidir primeiramente qual parte do seu instinto sexual será possível sublimar e utilizar. ... Entretanto, não é possível ampliar indefinidamente esse processo de deslocamento, da mesma forma que em nossas máquinas não é possível transformar todo o calor em energia mecânica. Para a grande maioria das organizações parece ser indispensável uma certa quantidade de satisfação sexual direta, e qualquer restrição dessa quantidade, que varia de indivíduo para indivíduo, acarreta fenômenos que, devido aos prejuízos funcionais e ao seu caráter subjetivo de desprazer, devem ser considerados como uma doença" (Freud, 1908/1996b, p. 1252).
4 Em "Introdução ao narcisismo" (Freud, 1914/2010), Freud considera o narcisismo como o estágio posterior ao auto-erotismo, e anterior à total capacidade de se voltar para objetos externos. Entretanto, mais tarde, a distinção entre auto-erotismo e narcisismo primário será bastante atenuada.
5 Isso mudará com a segunda tópica, pois, nela, o narcisismo primário será considerado como estado da vida anterior mesmo à constituição do eu.
6 Há uma controvérsia bastante discutida entre autores a respeito das diferenças entre os conceitos de "ego ideal" e "ideal do ego", ambos usados por Freud em Introdução ao narcisismo e O ego e o id. Apoiamo-nos aqui na posição defendida por Laplanche e Pontalis (1998, p. 139), segundo os quais "não se encontra qualquer distinção conceitual entre Idealich (ego ideal) e Ichideal (ideal do ego)".
7 É necessário salientar aqui que, conforme enuncia Mezan (1990), Freud foi um pensador da condição humana em sua forma integral, o que o coloca no mesmo patamar de outros poucos grandes pensadores da cultura. Efetivamente, o pensamento de Freud abarca com sagacidade a cultura do homem tomada em seus mais diferentes aspectos, e não apenas na clínica psicanalítica.

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