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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo jul./set. 2011

 

RESENHAS

 

Transformações autísticas: o referencial de Bion e os fenômenos autísticos

 

 

João Carlos Braga

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Núcleo Psicanalítico de Curitiba

Correspondência

 

 

Autor: Célia Fix Korbivcher
Editora: Imago, Rio de Janeiro, 2010, 140 p.
Resenhado por: João Carlos Braga

Transformações autísticas: o referencial de Bion e os fenômenos autísticos é uma coletânea de artigos escritos pela autora entre 1992 e 2005 que permite acompanhar a identificação, o exame e o encaminhamento de um problema psicanalítico, tanto na dimensão da teoria como na da clínica. O problema identificado, nas palavras da autora (Introdução, p. 9), é a presença de estados em que "prevalecem sensações corporais no lugar de fantasias e emoções" e é por ela nomeado "transformações autísticas". O encaminhamento teórico é feito pela associação entre as teorias das transformações (Bion, 1965) e da existência de uma parte autística na personalidade amalgamada a partes com funcionamentos neurótico e psicótico (Tustin, 1986). Na dimensão clínica, essas contribuições delineiam a importância de identificar esses estados, com o objetivo do analista poder oferecer aproximações psicanalíticas adequadas.

A sequência dos capítulos no livro traz a possibilidade de acompanharmos o surgimento e o desenvolvimento do conceito "transformações autísticas". Os primeiros três capítulos expõem os problemas clínicos que estimularam essa investigação, assim como as tentativas da autora em lidar com os fenômenos autistas dentro do referencial psicanalítico estabelecido. No quarto capítulo, nasce a nova abordagem, casando a condição autística com a teoria das transformações, em elaboradas aproximações teórico-clínicas. O quinto capítulo examina exigências específicas que o fenômeno autista faz para a mente do analista. O sexto e último capítulo traz o exame, em maior grau de abstração, das decorrências da inclusão do conceito de transformações autísticas no referencial psicanalítico.

É de notar o reconhecimento dado à importância dos trabalhos que constituem os três últimos capítulos, o que pode ser percebido pela outorga de quatro diferentes prêmios, em âmbito nacional e internacional: Prêmio Fábio Leite Lobo, da Associação Brasileira de Psicanálise, em 2002; Prêmio Parthenope Bion Talamo, da Sociedade Italiana de Psicanálise, em 2004; Prêmio Durval Marcondes, da Associação Brasileira de Psicanálise, em 2005; e o Frances Tustin Memorial Prize, outorgado pela Frances Tustin Memorial Trust, em 2005.

Outro dado a termos em conta, nessa mesma direção, é a breve publicação em inglês, pela Karnac Books, desse livro.

Passo, agora, a um exame mais detalhado, da ideia central do livro, o conceito de transformações autísticas.

Não são poucas as questões que surgem. Vou tentar organizar em três itens aquelas que mais me tocaram:

1. o conceito "transformações autísticas";
2. a base teórico-clínica do conceito "transformações autísticas";
3. a ampliação do modelo de mente da teoria das transformações, decorrente da introdução do conceito "transformações autísticas".

 

1. O conceito "transformações autísticas"

Entre nós, analistas brasileiros, o mais frequente é que operemos com três paradigmas psicanalíticos: o da neurose (Freud), o da psicose (M. Klein) e o do pensar (Bion). O habitual é que autismo e concepções subordinadas, sejam vistos como estados psicopatológicos, no campo da psicose.

No entanto, nas últimas décadas, alguns autores como S. Klein e F. Tustin, têm proposto o fenômeno autista como um novo paradigma para compreendermos formas de funcionamento mental (ou seria melhor dizer não-mental?) frequentemente encontrados em personalidades que alcançam a condição de pensamento simbólico.

Nesse panorama, a proposta de Célia é inovadora. Traz o fenômeno autista para o paradigma da teoria do pensar (a teoria das transformações é uma evolução sua). Partindo do modelo de mente apresentado por Bion em Transformações, propõe acrescentar uma nova forma de transformação, as autísticas. Parece simples, mas trata-se de uma guinada epistemológica com amplas consequências. Primeiro, por partir do modelo de mente de Transformações, referencial não compartilhado pela maioria dos psicanalistas; segundo, por manter o paradigma de Bion, do pensar como o norte analítico, mas ampliado por uma dimensão de não-pensamento; terceiro, por trazer aos psicanalistas a necessidade de rever conceitos; quarto, por referendar mais um golpe em nosso narcisismo: além de termos funcionamentos neuróticos e psicóticos, também temos funcionamentos autísticos.

Incluído no grupo de analistas que aceitam o modelo de mente de Transformações, vi-me, nesses últimos sete anos, lidando com problemas estimulados por esse conceito. O problema maior que identificava, era ver as descrições de transformações autísticas como condições em que poderíamos estar acompanhando uma evacuação da personalidade, como nas transformações em alucinose (Braga, 2004). Em ambas as condições, o indivíduo aparece imerso em suas próprias produções. A diferença, que penosamente adquiriu sentido para mim, é que, nas transformações autísticas, o mundo externo, relacional e emocional, não é criado: simplesmente não existe, não há pensamento e nem distorção de pensamentos. Minha dificuldade acabou apontando-me uma das dificuldades trazidas pelo conceito proposto por Célia: como pensar os não pensamentos?

 

2. A base teórico-clínica do conceito "transformações autísticas"

Enquanto a maioria de nós se debate para alcançar as propostas de Bion sobre transformações, Célia ousou perturbar ainda mais esse universo: aproximou e integrou à teoria das transformações, a compreensão de Tustin de funcionamento autístico. A reunião dessas duas ideias fundantes, traz novas exigências ao pensamento do analista, para além do que lhe é demandado por cada uma delas, isoladamente. Ambas as concepções - transformações e autismo - embora profundamente enraizadas na clínica, surgem como formas novas de pensar e demandam, para cada analista, realizações clínicas que as consolidem.

O incômodo em desvencilharmo-nos de experiências já organizadas, não é pequeno. Os primeiros pensamentos que ocorrem são: é mesmo necessário o conceito de transformações autísticas? Os fenômenos que essa aproximação aponta não são passíveis de serem atendidos pelas teorias que já manejamos?

A aceitação de examinar esse problema revela o quão surpreendente é como ambas as concepções articulam-se com facilidade. Contribui muito para percebermos esta harmonia, se partirmos não da teoria das transformações, como exposta em 1965, mas da teoria da mente primordial, esboçada nos últimos anos de vida de Bion (1976-1979). Se o próprio Bion nos aponta a existência, em nossas mentes, de formas de funcionamento em que corpo e mente são indistintos, qual a dificuldade em retomarmos a teoria das transformações e incluirmos uma forma de transformações em que observamos essa condição autística em que também não há reconhecimento do outro ou da própria individualidade? A questão nuclear é o reconhecimento de que estamos fora da área do conhecimento. Mas a própria teoria das transformações já contemplava esta condição, ao incluir as transformações em ser ou tornar-se a realidade.

As considerações acima ajudam tanto a contextualizar a base teórico-clínica das transformações autísticas, quanto a percebermos o falso problema que se nos apresenta, quando relutamos em aceitar essa expansão no pensamento de Bion. Conjugar a concepção de transformações com as contribuições de Tustin ajuda-nos a reconhecer que, na clínica psicanalítica, somos chamados a identificar formas primordiais de expressão do psi-quismo, uma espécie de reserva natural, convivendo com outras mais elaboradas - sejam estas facilitadoras de operar as relações objetais (funcionamento simbólico) ou de suas distorções (funcionamento psicótico). Essa é uma significativa contribuição em termos clínicos. Como Célia mesmo nos diz, sua utilidade é "para que o analista pudesse discriminar e se aproximar do nível de funcionamento mental em que o paciente se apresenta" (p. 55).

 

3. A ampliação do modelo da mente da teoria das transformações, decorrente da introdução do conceito "transformações autísticas"

Avalio ser esta uma das questões centrais que surgem com a proposta desse livro. Transformações oferece um modelo abrangente para pensarmos o funcionamento mental. Penso ser o modelo de mente mais sofisticado que o pensamento psicanalítico já produziu. Envolve a concepção de ser a mente multidimensional, em que cada âmbito (dimension, realm são as palavras usadas por Bion) opera com características próprias, produzindo um conjunto de manifestações com diferentes padrões. Bion (1965) deixa implícito o reconhecimento de cinco diferentes dimensões: do sensorial, do conhecer, do não-conhecer, do alucinatório e do colocar-se em uníssono com a realidade. Logo depois, ele mesmo amplia o modelo e passa a destacar a dimensão dos pensamentos sem pensador e, posteriormente, a dimensão da mente primordial (1976-1979).

Além desse fato, o próprio Bion nos diz de sua compreensão de não estar expondo uma teoria acabada. Em Transformações encontramos:

em análise, supõe-se, por convenção, que todas as transformações, tanto do paciente como do analista, sejam expressas verbalmente. Não se pode manter legitimamente esta suposição com pacientes que transformam em alucinose ou algum outro âmbito ("realm") desconhecido.1 (p. 84)

De meu ponto de vista, as observações acima esvaziam as relutâncias em aceitarmos como válida e coerente a proposta de Célia Fix Korbivcher de uma ampliação do modelo de mente da teoria das transformações. Ilustro esse ponto com minha experiência: o argumento inicial que tive contra a proposta de transformações autísticas, de que transformações em alucinose dariam conta das questões clínicas apresentadas como transformações autísticas. Em ambas as condições encontramos o analisando imerso em material psíquico próprio, descarregado pelos sentidos e em que não há distinção entre pensamento e fato material. Tomou-me tempo discriminá-las, reconhecendo ambas como ocorrendo na dimensão do não conhecer. Três dados foram-me fundamentais para aceitar a ampliação trazida pelo conceito de transformações autísticas:

1. no alucinatório, a presença de respostas emocionais significativas é reconhecível, tanto no analista como no analisando, enquanto que nos estados autísticos não é detectável e o que manifesta-se são sensações corporais não integradas ao estado emocional da pessoa;
2. nas transformações autísticas o analista experimenta uma desconfortável sensação de não estar existindo para o analisando; apresenta-se o impulso a atuar e fazer-se reconhecido. No alucinatório, o analista também não se sente reconhecido em sua realidade, mas reconhece-se existindo como uma tela de projeção, como um objeto para descarga de emoções ou de conteúdos não assimilados do analisando;
3. nos estados alucinatórios, há uma relação de objeto deformada, mas existente. O analista tem acesso a estados primitivos da mente do analisando, em que rivalidade, avidez e inveja destacam-se. Nas transformações autísticas não há o reconhecimento de relações de objeto; o analisando se satisfaz com manobras auto-sensuais, não havendo sinais de manifestações mentalizadas, mesmo que incipientes.

 

Concluindo

A proposta de Célia Fix Korbivcher de reconhecermos as transformações autísticas, traz questões que nos exigem atenção, mas sua argumentação é coerente e enriquecedora para o pensamento psicanalítico. Penso que também é coerente com o espírito do pensamento de Bion, de não tomarmos a psicanálise como um sistema acabado de teorias. Teorias não passam de instrumentos que vamos construindo, aperfeiçoando e descartando, dependendo do que a experiência nos aponta.

 

Referências

Bion, W. R. (1965). Transformações: do aprendizado ao crescimento. (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Braga, J. C. (2004). Ousarei perturbar o universo? Algumas observações a partir do trabalho de Célia Fix Korbivcher "A mente do analista e a mente primitiva". Reunião científica da SBPSP em 29 de maio.         [ Links ]

Klein, S. (1981). Autistic phenomena in neurotic patients. In J. Grotstein (Ed.), Do I dare disturb the universe? A memorial to Wilfred R. Bion. Beverly Hills: Caesura Press. (Trabalho original publicado no Int. J. Psychoanal., 61, 395-402, 1980).         [ Links ]

Tustin, F. (1986). Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
João Carlos Braga
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua José Antoniassi, 320 | Vista Alegre
80810170 Curitiba, PR
Tel: 41 3335-0643
bragajc@hotmail.com

[Recebido em 6.6. 2011
Aceito em 4.7.2011]

 

 

1 Itálicos meus.

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