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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

Existem temas aos quais é bom retornar de tempos em tempos. São inesgotáveis, nos interrogam permanentemente como seres humanos e, especificamente, como psicanalistas. O "Corpo", objeto deste último número de 2011, é um deles. O corpo hoje está em evidência. Talvez o filme de Pedro Almodóvar (2011) A pele que habito aponte para um dos possíveis crivos para decifrar a relação contemporânea com o corpo.

Um cirurgião plástico em busca de uma terrível vingança, mas também da realização de um sonho onipotente (ao modo de um Frankenstein do século XXI), esculpe Vera (mulher idealizada) a partir de sucessivas cirurgias em Vicente (homem que supostamente teria estuprado sua filha). Vingança, sexualidade, incesto, onipotência tecem uma trama cativante. Michelangelo considerava a escultura como forma superior da arte e a concebia "como forma de representar graças à variedade do corpo humano, à variedade das paixões e sua sublimação a partir da fé" (Chastel, 1991, p. 362). Já o doutor Robert Ledgard (Antonio Banderas) - o cirurgião, escultor de corpos de Almodóvar - realiza, não representa, mas presentifica no real a encarnação do demiurgo; cria à imagem e semelhança do desejo. Corpos manipuláveis, dominados e dominadores, neo-sexualidades, seios e barrigas esculpidas, rostos deformados, corpos idealizados, psiquismos incapazes de conter uma invasão midiática que nos promete realizar o impossível - nesse cenário os limites estão borrados.

Isso por si só retoma com força e atualidade sempre renovada o pensamento freudiano que "descobre no corpo anatômico um outro corpo: o simbólico", como dissemos em nossa carta convite elaborada pela equipe editorial da RBP:

Sobre este e sua pulsionalidade, deposita-se o que Aulagnier chamará mais tarde de sombra falada: a cultura dita através da mãe e que, em finas costuras, tece o erógeno, fonte e alvo das relações, a tramar a rede infinita da sexualidade que, no entanto, assenta-se sobre o corpo anatômico finito. Para viver este corpo finito, na tentativa de transcendê-lo, criamos uma mente na qual o atemporal é evocado como consolo frente à finitude humana. Finitude que também se expressa em torno das possibilidades e limites da representação e da linguagem.

Assim movidos por essas reflexões e em continuidade dialógica com os temas que publicamos em 2011 - sublimação, alteridade, limites - concedemos, pelos textos aqui publicados, a palavra ao corpo.

Temos o privilégio de oferecer aos nossos leitores uma bela entrevista concedida à Revista Brasileira de Psicanálise pela bailarina e diretora da São Paulo Companhia de Dança Inês Borgéa que, com extrema fineza, consegue transpor para o registro verbal a intensidade corporal do percurso, dos ritmos e dos movimentos "desse encontro do corpo que fica no limite entre o privado e o público, entre o encontro com o outro e a solidão". Gesto e movimento ganham sentido, como já nos assinalara Winnicott, num contexto no qual o tempo e o ritmo poderão abrir as portas à significação. Borgéa assinala com precisão: "com uma frase de movimento acontece o mesmo que com a dança, se você faz um gesto sem pausa, sem interrogação, sem exclamação, ele não significa nada". A entrevista ganhou ricos comentários das psicanalistas: Maria Nilza Mendes Campos e Joelma Dibo Victoriano.

Os trabalhos publicados dentro do eixo temático têm a particularidade de focar clinicamente a diversidade de perspectivas e de recortes dos autores. Liana Albernaz de Melo Bastos, a partir da noção de corpo-sujeito e de sua vinheta clínica, procura resgatar à prática analítica a dimensão corporal inerente ao campo transferencial-contratransferencial.

Maria Helena Fernandez, autora de vários livros publicados no Brasil em torno do tema, aborda em seu trabalho o corpo a partir de uma perspectiva dos ideais na clínica contemporânea. Discute com precisão três aspectos centrais na clínica da bulimia e anorexia: fetichização do corpo, o apego ao ideal e mecanismos de clivagem e recusa. Já Admar Horn traz ideias centrais no atendimento de pacientes psicossomáticos apresentando uma vinheta clínica e sólidos conceitos de pensamento operatório e depressão essencial, ferramentas fundamentais para a compreensão psicanalítica desses pacientes, elaborados por autores vinculados ao Instituto de Psicossomática de Paris e à spp.

Miguel Calmon Du Pin e Almeida e Bianca Bergamo Savietto, com estilos diferentes em seus respectivos trabalhos, abordam temas de extrema atualidade. O estranhamento do Eu face a um órgão transplantado e o tema da drogadição.

Ainda fazem parte desse eixo temático os ricos trabalhos de Sandra Moreira de Souza Freitas, que trata das temporalidades na análise tendo como referência a experiência clínica com uma criança acometida por um câncer aos dois anos; Luciane Falcão, que reflete sobre o papel das sensações corporais na figurabilidade psíquica; e, por último, o texto de Aida Ungier que nos oferece uma rica e consistente discussão em torno da simbolização nas doenças psicossomáticas.

Agradecemos a colaboração especial neste número da Prof. Dra. Ruth Guinsburg, pediatra e neonatologista, pesquisadora da UNIFESP que há anos estuda o tema da dor em neonatos. O seu instigante e lúcido trabalho abre o campo para as primeiras inscrições psíquicas da dor como experiência subjetiva e assinala o compromisso ético dos profissionais com o sofrimento do outro. Esse texto antecipa o tema do primeiro número de 2012 "Ética e psicanálise" assim como o tema do próximo congresso da IPA que terá como mote o enfrentamento da dor no contexto da experiência clínica.

Na Seção Intercâmbio, apresentamos o trabalho de René Kaes: "A realidade psíquica do vínculo". Com esse texto encerramos uma série de quatro trabalhos publicados ao longo de 2011 em torno do tema intrasubjetividade-intersubjetividade, permitindo desse modo um aprofundamento e reconhecimento da riqueza que o contato com diferentes perspectivas podem oferecer ao psicanalista.

Compõem este número, como habitualmente, consistentes artigos não temáticos de Talya Saadia Candi, Leda Beolchi Spessoto e Edival Antonio Lessnau Perrini, assim como nossas tradicionais resenhas e lançamentos.

Chegamos a mais um final de ano, em nome da equipe editorial da Revista Brasileira de Psicanálise agradecemos o apoio de nossos leitores e assinantes, autores e pareceristas, esperamos contar com a colaboração dedicada e afetiva de todos ao longo do novo ano que se inicia.

Boa leitura!

 

Referências

Almodóvar, P. (Dir.) (2011). A pele que habito. [Filme]. Espanha: Buena Vista International. (Distribuição Paris Filmes)        [ Links ]

Chastel, A. (1991). A arte italiana. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]