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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011
COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA COM INÊS BOGÉA
Bodily narratives
Narrativas del cuerpo
Maria Nilza Mendes Campos
Membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPB
RESUMO
A partir da entrevista realizada com Inês Bogéa, a autora destaca a construção do conceito de corpo na psicanálise e seu lugar na dança contemporânea, ressaltando a ruptura introduzida no campo da técnica, passando o corpo a ser dotado de produção de sentidos, memória e criatividade.
Palavras-chave: corpo; subjetividade; dança contemporânea.
ABSTRACT
From the interview with Inês Bogéa, the author discusses the construction of the concept of body in psychoanalysis, and its place in contemporary dance, highlighting the rupture introduced in the field of art, by which the body is endowed with the ability to produce meaning, memory and creativity.
Keywords: body; subjectivity; contemporary dance.
RESUMEN
A partir de la entrevista realizada con Inês Bogéa, la autora destaca la construcción del concepto de cuerpo en el psicoanálisis y su lugar en la danza contemporánea, resaltando la ruptura que se introduce en el campo de la técnica, el cuerpo pasa a ser dotado de producción de sentidos, memoria y creatividad.
Palabras clave: cuerpo; subjetividad; danza contemporánea.
Desde o início nada mais fiz do que dançar a vida.
Criança, dançava a alegria espontânea dos seres em crescimento.
Adolescente, dancei com uma alegria que se transformava em apreensão diante das correntes obscuras e trágicas que começava a lobrigar no meu caminho.
(Isadora Duncan, 1989, p. XI)
É de pernas para o ar que Inês nos conta que começou a dançar. É dessa forma que nos introduz em seu percurso na dança, que acabou por se constituir como sua própria trajetória no palco da vida. Uma busca de risco e inquietude, brincando e criando sentidos. Esse corpo carregado de narrativa se aproxima da compreensão psicanalítica do corpo subjetivado.
Foi ouvindo suas histéricas que Freud (1893-1895/1974) considerou a ideia de que o corpo da histeria se afastava da anatomia se aproximando de um corpo representado, portador de sentidos e história. Assim, o nascimento da psicanálise institui a ideia de que o corpo fala, inaugurando a distinção entre o corpo biológico - sujeito à anatomia dos órgãos, constituindo um todo, dotado de uma organização independente da linguagem - e o corpo que encontra formas de representação psíquica, um corpo que pode ser lido, traduzido e interpretado, obedecendo à história do sujeito, e instituindo a ideia de que o corpo na psicanálise seja um corpo atravessado pela linguagem. Um corpo que se apresenta como um palco onde se encena uma dança de relações entre o psíquico e somático, elementos fundantes da psicanálise. Assim, linguagem e corpo encontram-se unidos por um laço indissociável, introduzindo o campo da simbolização.
Para Winnicott (1975), o início da vida se dá a partir da relação da mãe e seu bebê. O cuidado da preocupação materna primária irá atender às necessidades corporais da criança no período em que ela ainda não pode verbalizar, permitindo um primeiro registro psíquico, uma primeira identificação. Essas inscrições irão constituir-se como uma memória corporal, sem, no entanto, serem consideradas marcas mnêmicas, pois o aparelho psíquico não estaria ainda constituído. São essas inscrições que permitem a organização de representações, promovendo a construção da realidade psíquica. Primeiramente comunicação sutil, sem palavras, baseada no funcionamento corporal, nos cuidados oferecidos pela mãe ao bebê. São apenas sinais de satisfação ou sofrimento, expressada por meio de choro, sorriso, sono, excitação, ou seja, por meio de expressões corporais que o ego da mãe irá procurar traduzir e atender, transformando um corpo de sensações corporais, num corpo falado, num diálogo baseado no funcionamento corporal. A estabilidade dessas trocas irá promover o sentimento de "continuidade do ser", permitindo ao ego estruturar-se.
Nessas trocas entre a fala materna e a estruturação egoica dá-se a criação do espaço potencial, instituindo uma área intermediária da experiência, que se apresenta como matriz de toda brincadeira e, posteriormente, do pensamento metafórico. A começar pelo seio da mãe, os objetos e fenômenos que o bebê irá se deparar serão vivenciados como criações suas, ainda que paradoxalmente tenham de lhe ser apresentados para serem encontrados. Esse duplo movimento de encontrar e criar é importante para que o ser humano possa se reconhecer no mundo em sua existência real e possa constituir diferentes sentidos de realidade subjetiva e objetiva, que traduzam distintas experiências. A intensidade dessas trocas será fonte de sentidos para a inscrição do seu lugar no mundo de adulto. A liberdade experimentada nesse espaço nem objetivo nem subjetivo, se atualizará no jogo com os objetos ao longo da vida do sujeito.
A importância e o lugar do brincar foram privilegiados por Winnicott. Dessa forma, é nesse território de transitoriedade e transformação que a criança ao brincar, assim como o adulto concentrado na atividade de criação, está em contato com uma experiência de intensa imaginação, encontrando-se no mundo, suspensa entre a realidade subjetiva e a compartilhada, constituindo sentidos que traduzam distintas experiências do ser.
Nessa direção, Freud, no texto "Escritores criativos e devaneios" (1908/1977), se debruça sobre a natureza da criação imaginativa, associando o brincar infantil com a criação artística no adulto, sugerindo que devemos procurar na infância os primeiros traços da capacidade imaginativa. Para o autor, a ocupação favorita das crianças são os brinquedos e os jogos, e, a despeito de todo investimento que faz em seu mundo de brinquedo, ela distingue a realidade do brincar, e se deleita em ligar as situações imaginadas às experiências do mundo real. Assim, Freud sugere que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, afirmando que o contrário do brincar não é o sério, mas sim o real.
Em sua interpretação, Pontalis reafirma tal perspectiva, sugerindo a relação entre o espaço potencial na infância e a atividade criativa do adulto, ao propor
uma área de ilusão, que ultrapassa as clivagens do eu e do não-eu, do fora e do dentro: esta também poderia ser uma boa definição da atividade do escritor e do leitor. Por meio da análise de um paciente, uma analista se modifica. De um livro escrito ou lido, saímos diferentes de quem acreditávamos ser. (1991, p. 124)
Seja na escrita ou na escuta, e também na dança de Inês, esse brincar se atualiza e, no lugar da palavra, se encontra o corpo em movimento, numa procura de sentidos e de expressão de trajetórias pessoais. Na dança, os laços entre o brincar e a dimensão subjetiva do corpo - como produtor de significados - estreitam-se num pas de deux de infinitos arranjos.
A novidade introduzida pela dança moderna no início do século XX e mais adiante radicalizada pela dança contemporânea é o rompimento com as linhas definidas do balé clássico e a previsibilidade de seus movimentos. Enquanto que no balé clássico o que se busca é uma apropriação da técnica, o trabalho é pautado na repetição de movimentos com o intuito de se chegar àquele tecnicamente perfeito, na dança contemporânea privilegia-se a reconstrução estética das experiências vividas pelos dançarinos, dando lugar à liberdade de expressão. Nela, o que importa é a narrativa de emoções e ideias que o corpo potencialmente pode exprimir e, para tanto, haverá a participação do bailarino no processo criador, na construção dos movimentos em que possa se reconhecer. Assim, pode-se tomar o trabalho de Pina Baush, coreógrafa e bailarina alemã que revolucionou a dança no século XX. Ela levava para os palcos histórias baseadas na troca de experiências de vida dos próprios bailarinos que compunham seu grupo ou colhidas nos lugares onde levava sua companhia de maneira a dar voz a seus percursos individuais.
No projeto da dança contemporânea, corpo e linguagem se aproximam, à medida que o corpo é tomado como portador de histórias que passam a ser contadas em expressões individuais, numa operação de sentidos, motor da subjetividade. Os corpos não mais serão tomados em gestos e movimentos impostos de fora, mas entregues à sua subjetividade, deixam de ser um instrumento técnico, para se tornar um corpo de linguagem, onde o movimento precisa vir de dentro para fora, fazendo advir a linguagem de cada bailarino. O corpo é tomado em sua instrumentalidade, carregado de memória e imaginação, tornando o palco um espaço de transicionalidade, numa multiplicação de sentidos que trazem as marcas mnêmicas de cada própria história.
Do brincar de pernas para o ar à dança contemporânea surgem coreografias que buscam produzir e ressignificar sentidos que ao longo do tempo se inscreverão em cada corpo, gerando subjetividades e criando infinitas representações do mundo.
Referências
Duncan, I. (1989). Minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio. [ Links ]
Freud, S. (1974). Estudos sobre histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obraspsicólogicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 2, pp. 11-363). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893-1895) [ Links ]
Freud, S. (1977). Os escritores criativos e devaneio. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicólogicas Completas de Sigmund Freud. (Vol. 9, pp. 147-158). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]
Garaudy, R. (1980). Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [ Links ]
Pontalis. J. -B. (1991). Perder de vista - da fantasia de recuperação do objeto perdido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Correspondência:
Maria Nilza Mendes Campos
[Sociedade de Psicanálise de Brasília SPB]
SHLN bloco K, sala 312 | Ed. Centro Clínico Norte I
70770-550 Brasília, DF
Tel: 61 3340-9007
marianilza.campos@gmail.com
Recebido 20.11.2011
Aceito em 6.12.2011