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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

RESENHAS

 

O atual debate sobre "Homossexualidade e adoção"

 

 

Brunella Carla Rodriguez

Mestranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo USP e bolsista FAPESP

 

 

Autora: Anna Paula Uziel
Rio de Janeiro:
Garamond, 2007, 224 p.
Resenhado por: Brunella Carla Rodriguez

Anna Paula Uziel é psicóloga e doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Seus principais campos de interesse são Psicologia Jurídica e Sexualidade. Na interface entre Direito, Psicologia e Antropologia, Uziel vem realizando pesquisas acerca da parceria civil, conjuga-lidade e homoparentalidade no Brasil. Ela é, também, autora de diversos artigos, capítulos de livros e outros trabalhos.

O tema central do livro de Uziel, intitulado Homossexualidade e adoção, é a adoção no contexto homoparental. A também autora do livro: Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis, lançado no ano de 2007 reuniu neste, artigos diversos dessa área. Nesse livro, fruto de sua tese de Doutorado na Unicamp, a autora analisa cautelosamente processos de adoção envolvendo pelo menos um requerente homossexual.

O livro é dividido em duas partes; na primeira: "Família, família, almoça junto todo dia, nunca perde essa mania", na qual ela discute longamente acerca dos novos arranjos familiares, e na segunda: "Adoção e homossexualidade: os atores e seus produtos", na qual ela apresenta a pesquisa sobre adoção por homossexuais realizada junto à Justiça do Rio de Janeiro.

Logo no início do livro, a autora apresenta um texto tratando da dificuldade em se definir família, e aponta que apesar disso, esta se mantém como "organizadora da sociedade ocidental contemporânea" (p. 19).

Para essa revisão teórica, a autora utiliza, principalmente, teóricos franceses, o que está relacionado também à sua participação na discussão e votação do PACS1 na França. O pacs é o contrato francês que prevê a parceria civil entre indivíduos maiores de idade, garantindo direitos e deveres em termos de: herança, descontos em impostos, direitos de habitação e segurança social, assim como responsabilidade mútua no tocante a dívidas e contratos.

A autora apresenta a família como categoria social objetiva; instituição, funda a família como categoria social subjetiva, que é o princípio de representações e ações (rituais), como o casamento. Há um acordo tácito entre as categorias, subjetivas e objetivas, que faz com que a família seja vista como instituição natural e universal. Dessa forma, garante-se a reprodução da ordem social.

Homoparentalidade é um termo originalmente francês, criado pela Association des Parents et Futurs Parents Gays et Lesbiens (APGL2) em 1997. O assunto levanta questionamentos e discussões que colocam em pauta a educação dos filhos de homossexuais, as possíveis dificuldades e riscos dessa parentalidade. Diversas pesquisas vêm sendo realizadas a fim de investigar a "normalidade" das crianças criadas por homossexuais, a fim de garantir a inexistência de riscos à criança.

A autora conclui que as funções parentais não dependem do exercício da sexualidade, dessa forma não há vínculo direto entre homossexualidade e parentalidade. Pesquisas realizadas apontam que não há diferença significativa entre crianças criadas por pais homossexuais e heterossexuais.

Uziel aponta como as famílias homoparentais interpelam estudos a respeito de estruturas de parentesco, de filiação e também no que concerne ao desenvolvimento de crianças nos diferentes arranjos de famílias.

A fim de esclarecer a compreensão do surgimento de novos arranjos familiares na contemporaneidade, tais quais; a família monoparental, pluriparental, recomposta, homo-parental, a autora cita Bourdieu (1993), que afirma a família ser um "privilégio simbólico de ser como se deve, dentro da norma" (p. 25). Ela explica que a família, tratada como a mais natural das categorias sociais, constrói a realidade funcionando como esquema classi-ficatório, servindo, portanto como agente socializador.

Na segunda parte do livro: "Adoção e homossexualidade", a autora apresenta a pesquisa de fato, para a qual entrevistou juízes e assistentes sociais na comarca do Rio de Janeiro, e estudou oito processos e habilitações para adoção, cujos requerentes são homossexuais. Ela analisou as entrevistas acerca das "concepções de família, casamento, casal, bom desenvolvimento da criança e adolescente, peculiaridades da adoção, ‘ideal de parentalidade’ e a questão da adoção por homossexuais" (p. 79).

A pergunta que incide sobre todo o trabalho é a existência de especificidades relativas à parentalidade exercida por homossexuais, à qual a autora vai respondendo e fundamentando no decorrer do livro.

Entre as principais preocupações judiciais sobre famílias homossexuais estão os impactos dos pais sobre as crianças e o comportamento das mesmas, questionando a saúde mental dos pais, motivação e habilidade para serem pais, qualidade de relacionamento e adequação de sua rede de apoio social.

Com respeito aos cuidados com as crianças, as pesquisas realizadas até então não identificam diferenças entre a parentalidade heterossexual e a homossexual.

A autora tece com cuidado fatores que podem ter influenciado estas, como a expectativa criada nos entrevistados e o desejo de proferir um discurso "politicamente correto". Notou que o discurso e postura dos profissionais entrevistados baseia-se nas novas concepções de família, sempre aliadas ao interesse da criança. Nesse contexto ela dá início à análise do tema "parentalidade gay", onde nota ressalvas relacionadas ao cuidado das crianças, citando dificuldades como a homofobia existente e a ausência de igualdade de direitos perante a lei. Perdura no imaginário coletivo a idéia de que casamento deve ocorrer apenas entre heterossexuais e visa à reprodução, além de crenças como promiscuidade dos homens homossexuais e necessidade de figura feminina (papel materno) na família.

Em meio a contradições, negociações de poder e definições vagas de família, se inserem as discussões sobre homoparentalidade e pluriparentalidade no discurso dos profissionais envolvidos nos processos. A orientação sexual do requerente sugere, nesses profissionais, a anormalidade da situação, despertando interesse e cuidado especial para com o caso.

Apesar das dificuldades e da falta de proteção legal das famílias compostas por pais homossexuais, os processos de adoção por homossexuais, na comarca do Rio de Janeiro, são deferidos. Fato que sugere a complexidade do cruzamento entre orientação sexual e pa-rentalidade. Nos pedidos de adoção a orientação sexual do requerente nunca passa despercebida. Entretanto, no eca, não há referência à orientação sexual, mas sim idade mínima, diferença etária para o adotando e estado civil. Como não está previsto na lei, técnicos e operadores do Direito julgam o deferimento ou não da adoção por homossexuais.

Cabe citar que a atual lei da adoção é omissa quanto à possibilidade de casais homossexuais adotarem crianças ou adolescentes, assim como ocorre com o casamento entre homossexuais. O que mostra que é preciso olhar para essa situação com cautela e fornecer ferramentas que permitam a aplicação da lei sem preconceitos. Passos (2005) aponta a necessidade da criação de uma nova ética que inclua os homossexuais no sistema jurídico do país.

A autora nota que em alguns processos de habilitação e adoção, a homossexualidade aparece citada, enquanto em outros casos não é evidente, sendo que em ambos houve deferimento e recusa. Nos casos de deferimento de adoção por homens homossexuais aparece no relatório de psicologia a valorização de "atributos femininos" (p. 144) (como capacidade de maternagem) como forma de garantir a habilidade dos homens para a parentalidade.

Surpreendentemente, a autora conclui não haver resistência à demanda de adoção por indivíduos do sexo masculino homossexuais, sendo defendidos e priorizados os princípios do Estatuto da criança e do adolescente (ECA). A presença da mãe ou de figura feminina era valorizada nos processos de adoção, demonstrando a tentativa de manutenção do modelo de família nuclear, com a valorização da presença de figuras dos dois sexos na educação das crianças. Com base nas decisões tomadas na década de 1990 no Rio de Janeiro, a autora contribui para a reflexão da homoparentalidade e os processos de adoção, pontuando a importância de pesquisas para acompanhar essas famílias com pais/mães homossexuais.

Reflexões e sistematizações sobre o tema da homoparentalidade são, todavia incipientes no Brasil. Esse livro traz, além de um relato de pesquisa cautelosa, um texto que indaga sobre o futuro da família, sobre as inúmeras possibilidades de ser e de conviver, não mais centradas nos modelos heterossexuais. Portanto, são necessários novos estudos e pesquisas na área para dar conta desse novo arranjo familiar.

Próximo do final do livro, a autora reitera que "categorias são ficções que satisfazem em determinado momento ou quando é preciso organizar o pensamento ou convencer alguém. Elas não precisam e nem devem servir de camisa-de-força. Ao afirmar que a filiação é construída socialmente e legitimada pelo Direito, ou é construída pelo Direito, a parenta-lidade por homossexuais faz parte deste universo" (p. 198).

Com sólidos conhecimentos, a autora apresenta clara e detalhadamente o histórico da instituição familiar, levando-nos a compreender suas transformações. A autora dá esclarecimentos sobre o método utilizado na pesquisa e discorre sobre suas possíveis interferências, expondo a mesma a uma reflexão crítica.

A obra tem por objetivo, ampliar conhecimento acerca da "adoção homossexual", utilizando-se do rigor necessário à produção de conhecimentos confiáveis. É de grande auxílio, principalmente, àqueles que desenvolvem trabalhos acadêmicos na área de família e lutam para a desmistificação decorrente do preconceito infundado. Uziel conclui esse brilhante livro enfatizando a importância do Direito, da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia e da Psicanálise se unirem para pensar sobre novas famílias e buscar soluções para as novas questões dessa realidade.

 

Referências

Passos, M. C. (2005). Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família. Psicol. clin., 17(2),31-40.         [ Links ]

Uziel, A. P. (2007a). Conjugalidades, parentalidadese identidades gays, lésbicas e travestis. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Uziel, A. P. (2007b). Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Brunella Carla Rodriguez
[Universidade de São Paulo USP]
Rua Alves Guimarães, 866
Pinheiros 05410-001 São Paulo, SP
brunellacarla@gmail.com

Recebido em 2.9.2010
Aceito em 28.9.2011

 

 

1 Pacto Civil de Solidariedade.
2 Associação de pais e futuros pais gays e lésbicas.