SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número1BioéticaReflexões críticas sobre os processos intersubjetivos: contratransferência, revêrie e o processo de simbolização índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo jan./mar. 2012

 

INTERFACE

 

Para entender o mundo em que vivemos

 

To understand the world we live in

 

Para entender el mundo en que vivimos

 

 

Fabio Konder Comparato

Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra

Correspondência

 

 


RESUMO

O capitalismo se revelou, no mundo contemporâneo, não apenas um sistema econômico, mas uma autêntica civilização, mais exatamente a primeira civilização mundial da história. Em radical oposição a todas as civilizações que o precederam, o capitalismo engendrou nas sociedades uma mentalidade ética anticomunitária, fundada no egoísmo materialista, na superposição do interesse privado ao bem público e na utilização do poder econômico de forma disfarçada ou oculta.

Palavras-chave: ética; poder; civilização; capitalismo; mentalidade


ABSTRACT

Capitalism has shown itself, in the modern world, not only as an economic system, but as an authentic civilization, most precisely the first worldwide civilization in History. In radical opposition to every civilization which preceded it, capitalism engendered an anti-community mentality in societies, founded on egotistic materialism, on the superposition of the private interest over the public interest, and on the use of economic power in a disguised or hidden way.

Keywords: ethics; power; civilization; capitalism; mentality.


RESUMEN

El capitalismo se reveló, en el mundo contemporáneo, no sólo como un sistema económico, sino como una auténtica civilización, con mayor exactitud, la primera civilización mundial de la Historia. En una oposición radial a todas las civilizaciones que lo antecedieron, el capitalismo engendró en las sociedades una mentalidad ética anti comunitaria, basada en el egoísmo materialista, en la superposición del interés privado al bien público, y en el uso del poder económico de forma disfrazada u oculta.

Palabras clave: ética; poder; civilización; capitalismo; mentalidad.


 

 

Introdução

O processo de unificação da humanidade em toda a superfície do globo terrestre parece chegar agora à sua etapa final.

Ao mesmo tempo, contudo, generaliza-se a consciência de que o conjunto da biosfera e a vida humana em particular acham-se seriamente ameaçados.

Nada mais urgente e necessário, por conseguinte, do que examinar a natureza desse processo unificador da humanidade, a fim de saber se ele não contém em si mesmo os germes provocadores da catástrofe anunciada.

É o que pretendo fazer neste curto ensaio.

 

A civilização capitalista

O processo multimilenar de aproximação de todos os seres humanos no limitado espaço terrestre culminou com o surgimento da primeira civilização mundial da história: a capitalista.

O conceito de civilização tornou-se, no presente, eticamente neutro. Sobretudo entre historiadores; já não se fala em povos civilizados e povos bárbaros, como era usual antigamente, mas usa-se o vocábulo para designar um povo, ou conjunto de povos, com um modo de vida próprio, sem qualquer conotação de superioridade ou inferioridade.

As civilizações - entendidas como sistemas históricos que nascem, desenvolvem-se e desaparecem - identificam-se, basicamente, pela mentalidade coletiva e pela organização de poderes nelas vigentes.

Para compreender a civilização capitalista, é indispensável, portanto, começar pela análise de sua mentalidade própria sob o aspecto ético, ou seja, perceber aquilo que Max Weber (1904-05) denominou, em sua obra célebre, O espírito do capitalismo.1

 

A noção de mentalidade

Ela foi elaborada pelos historiadores franceses ligados à revista Annales d'Histoire Economique et Sociale, fundada em 1929.2 A ideia central dessa escola de pensamento his-toriográfico é a de que, contrariamente à tese marxista, as ideias e os valores predominantes em uma sociedade não são mero produto de suas condições econômicas, mas mantém uma certa autonomia em relação a estas e, muitas vezes, as engendram e transformam.

O precedente teórico da noção atual de mentalidade é o conceito de consciência coletiva ou comum, elaborado por Emile Durkheim em De la division du travail social. Nessa obra, ele sustentou que "o conjunto das crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma sociedade forma um sistema determinado, que tem vida própria" (p. 46), por ele denominado consciência coletiva ou comum. Ela apresenta caracteres específicos que a tornam uma realidade perfeitamente distinta das consciências individuais: tanto mais distinta quanto mais fortemente o indivíduo se opõe às crenças, opiniões e valores dominantes na sociedade. Além disso, a duração da consciência coletiva é sempre maior que a das vidas individuais. Os indivíduos passam, mas a consciência coletiva permanece viva e atuante, de geração em geração.

A mentalidade é, pois, um complexo de valores, crenças e sentimentos, o qual atua como uma espécie de reator automático no julgamento de fatos ou pessoas. Nesse sentido, trata-se de uma realidade mental inconsciente ou, quando percebida pelo sujeito, não raro é por ele abafada, ou então expressa de modo enganoso, como sucede com frequência em matéria de preconceitos.

As mentalidades engendram hábitos individuais e costumes sociais; ou seja, comportamentos constantes e uniformes que, da mesma forma, manifestam-se geralmente de modo irrefletido e automático.

No plano individual, as mentalidades variam enormemente, em função do patrimônio genético e da pressão do meio social onde vivem os indivíduos.

Quanto à mentalidade coletiva, há sempre, em todas as sociedades, várias espécies. Além da mentalidade geral, comum ao conjunto dos membros de uma sociedade em determinada época, há ainda, no interior de grandes sociedades, ou mesmo de toda uma civilização, mentalidades próprias de grupos mais ou menos extensos e importantes: mentalidades de classe, mentalidades etárias, de gênero, de casta, de etnia; mentalidades próprias de determinada religião; mentalidades urbanas e campestres; mentalidades regionais e nacionais; e assim por diante.

 

Ética e mentalidade

Mas qual é a relação do sistema ético - entendido como o conjunto das normas de moral, religião e direito - com a mentalidade coletiva ou individual? Seria a ética algo exterior à nossa personalidade, ou ela faria parte integrante daquilo que costumamos denominar consciência moral?

Creio que a resposta não pode ser absoluta em favor de nenhum dos elementos da alternativa.

Como tive ocasião de assinalar (Comparato, 2006), há na língua grega clássica duas palavras, quase homônimas e com a mesma etimologia -, êthos (com eta) e ethos (com épsilo). A primeira tem dois sentidos: de um lado, o domicílio de alguém ou o abrigo dos animais; de outro lado, a maneira de ser ou os hábitos de uma pessoa. A segunda significa os usos e costumes vigentes numa sociedade e também, secundariamente, os hábitos individuais.

Já na etimologia, portanto, encontramos as duas vertentes clássicas da realidade ética: a subjetiva, centrada em torno da personalidade individual, e a objetiva, fundada no modo coletivo de vida.

Como se percebe, os comandos éticos existem dentro e fora de nossa mente. Em certos momentos históricos, novas normas são propostas à coletividade e vão sendo aos poucos por ela assimiladas e transmitidas às gerações posteriores. Mesmo no caso de conflito entre mentalidades individuais e a coletiva, esse choque de diferentes visões de mundo se dá no foro interior, mas se exterioriza em comportamentos individuais de rejeição da ordem coletiva.

Hoje é universalmente admitido que os princípios éticos são normas axiológicas que, como tais, não podem ser apreendidas unicamente pelo raciocínio. Há sempre um mínimo de sensibilidade emocional, que comanda a vontade do agente. Em suma, o juízo ético não é feito somente de razão, mas também de indignação e vergonha, de ternura e compaixão.

 

O modelo ético nas civilizações antigas

Durante milênios, desde que a espécie humana ultrapassou o estágio primitivo dos hominídeos, o modelo de comportamento ético foi o altruísmo comunitário. O bem e o mal se definiam pela conduta de cada qual em relação aos outros membros da comunidade e aos deuses protetores desta.

Todas as sociedades antigas, com efeito, foram eminentemente religiosas. Cada povo tinha seus deuses próprios, aos quais se submetiam fielmente as famílias, os clãs, as tribos, as fratrias e, mais tarde, as cidades-estado.

Como princípio geral, observado durante milênios, os grupos sociais estranhos à comunidade eram tidos como inimigos. A biologia contemporânea, aliás, veio comprovar que o processo de seleção natural das espécies vivas privilegiou as características que favorecem a coesão no interior de cada grupo social e a hostilidade em relação aos grupos estranhos (Duve, 2009/2010).

Pois bem, no quadro da ética comunitária, os espíritos mais avançados das civilizações antigas chegaram a formular um princípio superior de comportamento, que passou a ser conhecido como regra de ouro.

Platão, por exemplo, ao examinar em A República a ideia de justiça, parte da definição clássica, atribuída a Simônides e recolhida pelos juristas romanos, de que ela consiste em dar a cada um o que lhe é devido (suum cuique tribuere).

O filósofo examina essa fórmula no sentido vulgar de fazer o bem aos amigos e maltratar os inimigos e mostra as suas contradições. Assim como o músico no exercício de sua arte não torna os outros homens avessos à música, assim também o homem justo, pela prática da justiça, não pode prejudicar os outros homens tornando-os injustos, sobretudo porque a justiça é a virtude específica do homem, a virtude humana por excelência. Portanto, em hipótese alguma o homem justo pode prejudicar os outros, sejam eles seus amigos ou inimigos.

E Platão conclui estabelecendo da seguinte forma a essência da justiça: não devemos fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam.

O mesmo ensinamento encontra-se no Analecto, de Confúcio (1981). A um discípulo que o interroga sobre a natureza da sabedoria (ren ou djen) e como alcançá-la, o mestre responde: "O que não quiseres que seja feito a ti, não o faças a outrem" (p. 95). Quando Zigong afirma: "O que eu não gostaria que os outros fizessem a mim, por nada no mundo desejaria fazer aos outros", o mestre comenta: "Pois bem, meu caro, tu ainda não chegaste lá!" (p. 50). O mesmo Zigong o interroga: "Existe uma palavra que possa guiar a ação durante toda a vida?". Essa palavra-chave, diz Confúcio, é "mansuetude" (chu); isto é, pôr alguém na pele dos outros para julgar suas ações. E acrescenta: "O que não queres que os outros te façam, não o inflijas a eles" (p. 23).

Na Índia, o Mahabharata, grande poema épico da dinastia Bharata, composto entre 200 a. C. e 100 d. C., enuncia no seu livro XII idêntico mandamento: "Tudo que uma pessoa não deseja que os outros lhe façam, ela deve abster-se de fazer aos outros, permanecendo sempre consciente daquilo que lhe é desagradável" (Unesco, 1968, p. 26).

Em Israel, a regra de ouro é ilustrada no Talmud Babilônico (Shabbat 31 a) com o seguinte relato, envolvendo Shammai e Hillel, dois sábios judeus de temperamentos antagônicos que viveram entre o final do século I a. C. e o início do primeiro século da era atual:

Sucedeu que um certo gentio apresentou-se perante Shammai e disse-lhe: "Converte-me, contanto que me ensines toda a Torah enquanto eu ficar de pé numa só perna". Shammai enxotou-o com a vara de medição usada pelos mestres-de-obra que estava em sua mão. O gentio apresentou-se então diante de Hillel, que o converteu. Hillel disse-lhe: "O que for detestável para ti, não o faças ao teu próximo. Toda a Torah consiste nisso; o resto é comentário. Vá e aprenda-a".

Se consultarmos, no entanto, o Levítico (19, 17-18), verificaremos que a regra de ouro é apresentada - sempre, evidentemente, no âmbito da comunidade em que vivem as pessoas - como um mandamento positivo e não apenas negativo:

Não terás no teu coração ódio pelo teu irmão. Deves repreender o teu compatriota, e assim não terás a culpa do pecado. Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou lahweh.

Esse "próximo" (rea no original hebraico; plessios na tradução grega da bíblia de Alexandria) não é outro, senão o judeu, ou o estrangeiro que habita a comunidade judaica.

Ora, na pregação de Jesus de Nazaré, o comando bíblico do amor ao próximo já não conhece limites:

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito.3

Para ilustrar esse ensinamento radical, e por provocação de um legista que procurava argumentos para denunciá-lo como herege, Jesus contou a famosa parábola em que um samaritano, ou seja, o membro de um povo considerado renegado e impuro socorre um judeu espancado por ladrões e largado semimorto à beira de uma estrada. Pouco antes, um sacerdote e um levita - duas autoridades em Israel - haviam passado ao largo, sem se importar com o triste estado da vítima.4

Sem dúvida, o princípio ético do altruísmo sempre esteve muito acima da mediocridade ou malícia do homem comum. Mas, de qualquer maneira, até o advento da era moderna, quase ninguém ousava contestá-lo e propor a sua substituição pelo egoísmo puro e simples.

Foi, no entanto, o que fez o capitalismo, como veremos adiante.

 

O desprezo pela profissão mercantil nas civilizações antigas e a moral evangélica sobre a posse de riquezas

Na Antiguidade, com raras exceções, sempre votou-se grande desprezo pela atividade comercial.

Em toda a Grécia, a propriedade de imóveis, rurais e urbanos, era reservada exclusivamente aos cidadãos. Os metecos (estrangeiros admitidos a viver na pólis) podiam adquirir bens móveis e possuir escravos, mas nunca terras ou casas, salvo quando recebiam, a título excepcional, esse direito de aquisição. Aos metecos, portanto, restavam unicamente como profissão o comércio e o artesanato, por isso mesmo atividades consideradas vis, embora reconhecidas como necessárias.

Na opinião dos grandes filósofos gregos, os comerciantes eram pessoas desprezíveis. Platão, nas Leis (Livro IV), faz um requisitório severo contra as cidades marítimas, onde sempre floresceu o comércio, apontando-as como centros de corrupção dos costumes. Para Aristóteles (Política, 1329a), a atividade profissional dos artesãos e dos comerciantes era ignóbil e inimiga da virtude. O filósofo sustentou que a profissão mercantil é depreciada se comparada com a produção para o próprio sustento da família, porque ela nada tem de natural (não é ligada à natureza, como a agricultura), sendo resultado de simples trocas (Política, 1258a). Essa contaminação moral do comércio era para ele tão grande que, a seu ver, não se deveria permitir a instalação de lojas de comércio na ágora, a praça onde se reunia oficialmente o povo para tomar as grandes decisões de interesse público.

Em Roma, as atividades mercantis sempre foram marcadas por um preconceito desfavorável, proibindo-se, pelo menos teoricamente, aos membros da aristocracia senatorial o exercício da mercatura. E isso, não obstante a profissão mercantil ter sido largamente praticada na metrópole, sobretudo durante o período imperial.5

Na mensagem evangélica, um dos pontos fundamentais é a incompatibilidade entre a cupidez, ou o próprio estado de riqueza patrimonial, e a vida conforme os mandamentos divinos. Eis porque os primeiros bem-aventurados, cidadãos de pleno direito do Reino dos Céus, são os pobres.6

Não são poucas, aliás, as passagens evangélicas em que se condena a riqueza:

Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os destroem, e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o caruncho destroem e onde os ladrões não arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração.7

Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.8

No episódio do jovem rico, que declarou cumprir fielmente todos os mandamentos da Lei Divina e desejava saber o que lhe faltava para ter a vida eterna, Jesus respondeu sem rodeios: "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me".9

O moço - relatam os textos evangélicos - "saiu pesaroso, pois era possuidor de muitos bens". Ao que Jesus concluiu, em lição a seus discípulos, "Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus. E vos digo mais: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus."

Tal não significa, porém, que Jesus ignorasse a prática mercantil vigente no seu meio. A parábola dos talentos10 e a parábola das minas11 mostram o contrário. Em ambas, a frutificação do dinheiro é apresentada como simbologia do trabalho espiritual que rende frutos, na medida dos esforços e da boa disposição de ânimo de cada um.

Sucedeu que, com a fundação da cristandade durante a Alta Idade Média, o comércio foi ainda mais desconsiderado do que na época da dominação romana. Ele era tido como atividade inferior às sete artes mecânicas: dos camponeses, caçadores, soldados, marinheiros, cirurgiões, tecelões e ferreiros.

Em 920, Eudes, abade do mosteiro cisterciense de Cluny, exortou os leigos a evitar três ocasiões de impureza: manter relações sexuais, portar armas e manipular dinheiro (Duby, 1978). Ainda no século XII, em adendo ao Decreto de Graciano, que codificou as normas do direito canônico, a Igreja dispôs: "Homo mercator nunquam aut vix potest Deo placere" (o comerciante jamais, ou dificilmente, pode agradar a Deus).

Especial reprovação mereceram, sobretudo, os usurários, termo com que a concepção canônica tradicional denominava todos aqueles que emprestavam dinheiro a juros. Dante, ilustrando essa condenação moral, incluiu-os no sétimo círculo do Inferno (canto XVII), como violadores da natureza. Dado que em vida nunca trabalharam com as mãos, depois de mortos não cessavam de agitá-las para se defenderem da chuva de fogo que caía constantemente sobre seus corpos.

É nesse contexto que deve ser compreendida a situação marginal dos judeus em tempos medievais. Tal como os metecos na pólis, eles eram estrangeiros no seio da cristandade. Com efeito, ao contrário do império romano, organizado a partir do poder político centralizado na pessoa do imperador, que concedia discricionariamente a cidadania aos habitantes das províncias ocupadas, a sociedade medieval organizou-se em torno da fé cristã, como uma vasta nação fundada na comunidade do batismo. Os pagãos eram, por isso mesmo, tidos como estrangeiros, e os judeus, em particular, estrangeiros inimigos, pela interpretação teológica de que o povo da antiga Aliança fora responsável pela morte de Jesus Cristo.

Em consequência, aos judeus, tal como sucedia com os estrangeiros no mundo greco-romano, era estritamente vedada a propriedade de terras rurais. Eles foram, assim, naturalmente levados a se especializarem no comércio e no ofício de banqueiros. Com isso, a profissão mercantil não tardou por suscitar um duplo desprezo aos olhos dos cristãos: pelo seu caráter naturalmente vil e pelo fato de ser ela praticada predominantemente por infiéis.

 

Superioridade do bem comum sobre o interesse particular na civilização greco-romana

Na época em que as velhas tradições religiosas começaram a se enfraquecer na civilização greco-romana, toda a vida social passou a ser regida pelo princípio da supremacia do bem público (res publica em Roma, to koinon na Grécia) sobre o interesse particular (Coulanges, 1975)12.

Com a habitual concisão latina, Cícero põe na boca de Cipião, o Africano, a definição precisa: "bem público é o bem do povo" (res publica, res populi).13 O adjetivo publicus, com efeito, designava na linguagem dos jurisconsultos o que pertencia em comum a todo o povo romano, em oposição aos bens de propriedade particular de indivíduos, ou de corporações, mesmo aquelas que hoje consideramos como situadas na esfera estatal.14 Por sua vez, o verbo publico, -are tinha o sentido de adjudicar ao povo um bem próprio de outrem. Na pólis grega fazia-se, da mesma sorte, a distinção entre o que era comum a todo o povo (demóssios) e o que pertencia a alguém em particular (ídios).

Na república romana, o serviço do povo passava sempre à frente de todos os deveres ou interesses privados, ainda que ligados à piedade filial; a qual, como assinalado, constituía, por razões religiosas, um dos valores fundamentais das civilizações antigas. Em Roma, a função pública denominava-se honor, e era de fato considerada como o honroso encargo de servir o povo; jamais como objeto de dominação individual ou familiar, menos ainda como fonte de enriquecimento. "Quando fui nomeado questor", disse Cícero, "estimei que esse encargo me havia sido, não dado, mas confiado".15 O magistratus, ou agente público dotado de potestas, não era dono, mas mero portador temporário do poder: um Machttrüger, como dizem os alemães.

A verdadeira república, por conseguinte, segundo a tradição romana, é o regime político em que o bem comum de todos deve sempre sobrepor-se aos interesses particulares.

Esse sentido original do vocábulo república, empregado como substantivo e adjetivo, foi conservado pelos escritores portugueses seiscentistas. Na sua História do Brasil, publicada em 1627, Frei Vicente do Salvador verbera o egoísmo dos colonizadores e demais habitantes do país, os quais "usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída". E conclui: "Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". Igualmente, o padre Antonio Vieira (1642/1951), no famoso sermão de Santo Antonio pregando aos peixes, adverte os moradores do Maranhão, sob a alegoria de uma prédica aos animais aquáticos: "Importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um" (pp. 268-269).

Quanto à propriedade de bens, é preciso frisar que nas sociedades primitivas ela foi muito diferente daquela instaurada no mundo moderno. A propriedade privada antiga sempre esteve estreitamente ligada à religião e à família.

Como salientou Fustel de Coulanges (1975)16 , a tradição do culto aos mortos, vigente na Antiguidade greco-romana como em todas as civilizações antigas, tornava o solo doméstico sagrado, vale dizer intocável e inalienável. O túmulo dos ancestrais, venerados como deuses, não podia jamais ser destruído nem deslocado. Cada família tinha, portanto, seus próprios deuses, sendo inconcebível que algum estranho quisesse adquirir o local onde se fazia o culto doméstico alheio.

Aos poucos, essa propriedade tumular, com o seu caráter sagrado, foi sendo estendida ao campo adjacente do lar doméstico, onde se fazia o cultivo dos alimentos familiares, e destinados também ao culto dos mortos.

Com o enfraquecimento da religião tradicional, porém, a propriedade privada foi perdendo o seu primitivo caráter sagrado. Estabeleceu-se, com isso, tanto na Grécia quanto em Roma, uma distinção fundamental entre a propriedade pública e a propriedade privada. Em relação a esta, o proprietário (dominus) tinha o direito de usar, fruir e dispor (usus, fructus, abusus). Os bens públicos, ao contrário, pelo fato de pertencerem ao povo, eram inalienáveis e inapropriáveis pelos particulares. Ou seja, de certa forma, o caráter sagrado da propriedade doméstica antiga tornou-se uma atribuição da res publica.

 

A civilização capitalista repudiou o modelo ético comunitário

Com o advento e a expansão mundial do capitalismo, toda a orientação ética do mundo antigo, que perdurara durante milênios, sofreu uma revolução de 180°. Aos poucos, a mentalidade coletiva passou a se orientar por valores radicalmente opostos, o que provocou a reformulação completa do quadro das instituições sociais.

Tudo começou por volta do século XII d. C. Até então, o Mediterrâneo, como disse um historiador árabe, nada mais era do que um lago muçulmano. O renascimento do comércio mediterrâneo, consequente à expulsão dos árabes, pôs fim ao isolamento em que decorria a vida social na Europa. A reativação do comércio em toda a orla marítima bem como o restabelecimento das relações de troca com a Ásia Menor engendraram uma extraordinária expansão da vida urbana e suscitaram o aparecimento de um novo personagem social: o burguês. Foi esse o nome dado ao habitante dos burgos, novos centros urbanos não submetidos ao poder feudal.

Os burgueses dedicaram-se ao comércio e manifestaram, desde logo, uma mentalidade em tudo diversa daquela que prevaleceu em toda a Europa desde tempos imemoriais. Essa mentalidade, que acabou por difundir-se em todos os povos com a mundialização do capitalismo, apresenta algumas características marcantes, a seguir indicadas.

a) A ética do egoísmo materialista

Em nenhuma civilização do passado jamais se considerou o acúmulo de bens materiais como finalidade última da vida. A nova classe burguesa, que engendrou o espírito capitalista, veio quebrar essa longa tradição histórica ao propor como regra de vida o acúmulo ilimitado da fortuna pessoal, para servir de instrumento de poder na sociedade.

Como recomendou na Idade Média a seus pares o comerciante florentino Paolo di Messer Pace da Certaldo, "tu não deves servir a outrem, prejudicando-te em teus próprios negócios"17. E prosseguiu: "Se tens dinheiro, não fiques inativo; não o guardes estéril contigo, pois vale mais agir, mesmo se não se tira lucro da ação, do que permanecer passivo, sem lucro tampouco."

No mesmo diapasão, um comerciante anônimo florentino da mesma época adverte: "Não frequentes os pobres, pois nada tens a esperar deles". E ainda: "Que engano fazer o comércio de modo empírico; o comércio deve ser feito racionalmente" (il commercio se vuole fare per ragione).

Na verdade, o que está por trás de tudo isso é aquela "sagrada fome do ouro" (auri sacra fames), considerada no passado uma paixão diabólica, mas doravante apresentada como a chave do êxito em todas as atividades.

Eis, por exemplo, o conselho que o mesmo comerciante florentino do século XIV, acima citado, deu a seus pares em um manual da profissão mercantil: "tua ajuda, tua defesa, tua honra, teu proveito é o dinheiro". Este, aliás, pode mesmo servir, em casos extremos, a comprar a benevolência das autoridades. A fim de encobrir com um piedoso manto aquilo que desde sempre se entendeu ser um ato de corrupção, o mesmo autor fez questão de citar, a propósito, uma passagem bíblica, mas despojando-a de todo sentido reprovador: "Os donativos tornam cegos os olhos dos sábios e emudecem a boca dos justos".18

Faltava, porém, justificar teoricamente essa ética da busca racional do próprio interesse. Foi preciso aguardar alguns séculos para que tal sucedesse. Bernard Mandeville (1670-1733) e Adam Smith (1723-1790) vieram sustentar que a atividade econômica, de modo geral, nada tem a ver com os preceitos éticos e as leis que regem os demais setores da vida social.

Para Mandeville, é completa a separação entre ética e economia. Assim como Ma-quiavel julgou que o fato de se abandonar em política "quello che si fa per quello che si do-verrebbe fare" conduz à ruína do Estado, assim também Mandeville entendeu que a vida econômica rege-se pelas leis da natureza e não por princípios ideais, os quais, quando transformados em política econômica, engendram a pobreza e não a riqueza das nações. Para ele, o ser humano nada mais é do que um conjunto de paixões, as mais variadas, a dirigirem o nosso comportamento de modo inelutável.19 Compete à razão analisá-las, para melhor compreender o seu mecanismo intrínseco.

Segundo Mandeville, há uma natural complementaridade entre vícios e virtudes. Foi preciso, afirmou ele, que a Igreja de Roma afundasse no abismo da indolência e da estupidez dos seus clérigos, ao final da Idade Média, para que a humanidade tivesse o benefício incomparável da Reforma Protestante. Da mesma forma, se não existissem prostitutas, seria impossível preservar a honestidade e o recato das mulheres de família contra os inevitáveis assaltos da concupiscência masculina contrariada.

Ademais, sustentou, os vícios não apenas complementam e preservam as virtudes, como ainda, ao se chocarem uns com os outros, acabam se anulando reciprocamente, para o bem geral da coletividade. Se, por exemplo, não existissem os usurários, que suprem os pródigos em sua permanente necessidade de dinheiro, em pouco tempo o conjunto dos artesãos e empregados, que trabalham para os ricos, cairia na mais aviltante miséria. Tudo isto prova que as paixões combatem-se com outras paixões, e não simplesmente com repreensões. Na natureza humana, não há propriamente bons sentimentos; ou melhor, todos os sentimentos que julgamos puros e altruístas são, na verdade, simples manifestações de egoísmo.20

Já Adam Smith, embora sem justificar eticamente o egoísmo, elaborou a famosa metáfora da "mão invisível", segundo a qual a procura dos múltiplos interesses individuais conduz de modo automático à realização do bem comum:

Em todos os tempos, o produto do solo sustenta aproximadamente o número de habitantes que é capaz de sustentar. Os ricos apenas escolhem do monte o que é mais precioso e mais agradável. Consomem pouco mais do que os pobres; e a despeito de seu natural egoísmo e rapacidade, embora pensem tão-somente em sua própria comodidade, embora a única finalidade que buscam, ao empregar os trabalhos de muitos, seja satisfazer seus próprios desejos vãos e insaciáveis, apesar disso dividem com os pobres o produto de todas as suas melhorias. São conduzidos por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição das necessidades da vida que teria sido feita, caso a terra fosse dividida em porções iguais entre todos os seus moradores; e, assim, sem intenção, sem saber, promovem os interesses da sociedade e oferecem meios para multiplicar a espécie (Smith, 2000, p. 263 e ss.).

Em passagem famosa da Riqueza das Nações, ele sustentou que é indispensável mostrar, aos que possuem bens disponíveis, ser do seu interesse pessoal entrar numa relação de troca com outrem; que eles ganharão mais com isto, do que se se recusarem a negociar. Em termos concretos, escreveu,

não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter o nosso jantar, mas da atenção que eles dispensam ao seu próprio interesse. Nós apelamos não ao seu sentimento humanitário, mas ao seu egoísmo, e nunca lhes falamos de nossas necessidades, mas dos seus próprios proveitos21

Com base em tais orientações, como ninguém ignora, o sistema capitalista sempre funcionou tendo em vista o interesse dos empresários, desconsiderando inteiramente os direitos dos trabalhadores e consumidores.

Aliás, a difusão universal dessa mentalidade de cupidez egoísta põe hoje em risco a própria sobrevivência da espécie humana na face da Terra.

Já há mais de quatro décadas, a comunidade científica vinha alertando para o risco fatal de extinção da biosfera, pela sistemática destruição do meio ambiente. Mas a preocupação empresarial obsessiva com o lucro imediato a qualquer custo fez com que o sistema capitalista desconsiderasse essa catástrofe iminente.

Eis, porém, que se deflagrou, no segundo semestre de 2008, um processo de depressão econômica em escala mundial, o qual ainda está longe de produzir todos os seus desastrosos efeitos.

Até o século XX, sempre se entendeu que as atividades econômicas de mercado consistiam na produção de bens, na sua distribuição e na prestação de serviços. A atividade financeira existia como peça auxiliar do sistema.

Subitamente, esse quadro econômico foi invertido e a atividade financeira, de simples meio tornou-se a finalidade última do sistema. No passado, as empresas procuravam os bancos para obter empréstimos, pagando juros. Doravante, são os bancos que procuram o Estado, as empresas e os consumidores, para oferecer empréstimos ou propor aplicações em fundos de investimento; ou ambos os negócios ao mesmo tempo. Ou seja, o cliente contrai um empréstimo para aplicar a quantia mutuada em fundos, muitos deles formados pela superposição de cotas de participação em outros fundos, ou constituídos de valores de pura especulação, como os chamados derivativos: apostas na variação de câmbio, do valor de commodities, e até mesmo em passes de jogadores de futebol!

Bastou, no entanto, que ocorressem as primeiras insolvencias na base desse fantástico castelo de cartas, para que ele desmoronasse, provocando perdas irreparáveis.

b) A superposição do interesse privado ao interesse público

Na civilização capitalista, considera-se que a vida privada é anterior e superior à vida pública. Estabeleceu-se, assim, desde o triunfo político da burguesia após as Revoluções do século XVIII, nos Estados Unidos e na França, o princípio da separação entre o Estado e a sociedade civil, com a subordinação daquele a esta. Na visão de mundo capitalista, a vida social deve ser organizada tal como nas sociedades mercantis; vale dizer, assim como nestas quem manda é o titular da maior parcela do capital social, da mesma forma na sociedade política quem deve mandar são os ricos e poderosos.

Ainda aí, a justificação teórica foi dada por Adam Smith.

Para o pensador escocês - que, ao contrário dos neoliberais da atualidade, detestava eufemismos - a submissão social dos fracos e pobres aos ricos e poderosos corresponde à própria natureza da vida social. Em todos os tempos e lugares, acentuou ele, a desigualdade existiu, como efeito da ação de quatro fatores: as condições físicas de força, beleza, agilidade, ou morais de sabedoria, virtude, prudência, justiça e temperança; a idade; a superioridade de fortuna; a superioridade de nascimento. Ora, essas quatro causas da desigualdade social reduzem-se, de fato, a duas apenas: a riqueza e a nobreza (superioridade de nascimento). E bem examinadas as coisas, observa Adam Smith, a própria nobreza se origina da riqueza material.

Tudo se reduz, portanto, à propriedade de bens. Até mesmo a autoridade política, segundo ele, foi instituída, não para garantir a segurança da vida em comum, mas unicamente para assegurar o livre gozo da propriedade privada. O que significa - conclui sem rodeios -que "o poder político, na medida em que foi instituído para garantia da propriedade, existe, na verdade, para defender o rico contra o pobre, vale dizer, aqueles que possuem algo contra os que nada têm".22

Nessa concepção, o corpo de agentes políticos e funcionários estatais deve, logicamente, ser reduzido ao mínimo indispensável.

Analisando as funções do Estado sob o aspecto econômico-empresarial, Adam Smith (2003) não hesitou em dizer que

o trabalho de algumas das mais respeitáveis ordens na sociedade é, tal como o dos servidores domésticos, incapaz de produzir qualquer valor, e não se deixa fixar ou realizar em nada de permanente ou numa mercadoria suscetível de venda (vendible commodity), cujo valor perdura depois que cessa a atividade, e para a produção da qual uma mesma quantidade de trabalho pode depois ser demandada. O soberano, por exemplo, com todos os ministros que o servem, tanto na guerra, quanto na paz; o conjunto dos militares, tanto do exército, quanto da marinha de guerra, são trabalhadores improdutivos. São servos do povo, mantidos por uma parte do produto do trabalho das outras pessoas. Esse serviço, posto que honroso, útil ou mesmo necessário, nada produz para o qual uma idêntica quantidade de serviço possa ao depois ser obtida.23

O grande movimento neoliberal do último quartel do século XX procurou ressuscitar tais idéias e aplicá-las em todos os países do mundo. Como frisaram seus ideólogos, se o Estado não pode ser suprimido (ele é um mal necessário), o essencial é privatizar o conjunto dos serviços públicos e submeter o funcionamento dos órgãos estatais ao severo controle do grande empresariado. Aliás, no quadro de uma análise econômica, a principal atividade estatal é a arrecadação de recursos e o seu dispêndio, com o objetivo principal de manter a ordem e a segurança para o desenvolvimento das atividades empresariais. Nesse sentido, como estamos todos a ver, a crise econômica mundial da atualidade é tratada sob o aspecto estritamente orçamentário.

Algumas das mais nefastas consequências dessa distorção dizem respeito à privatização dos serviços públicos de educação e saúde. Ambos tornaram-se em certos países - e exemplarmente no nosso - negócios altamente lucrativos.

Na verdade, essa concepção empresarial da sociedade moderna representou o repúdio do multimilenar espírito comunitário, que esteve presente em todas as civilizações do passado. Para a mentalidade capitalista, a comunidade é uma ficção: o que existe são apenas indivíduos.

c) O espírito camaleônico

A rápida expansão mundial do capitalismo foi devida, em grande parte, à excepcional capacidade de adaptação dos seus líderes às diversidades naturais e culturais dos povos do mundo. Para os empresários capitalistas, não há cristãos, judeus, muçulmanos, budistas etc.; o que existe são apenas consumidores ou investidores. Tampouco manifestaram tais empresários preferências étnicas, ou de nacionalidade. Para eles, os seres humanos não passam de peças econômicas do jogo de xadrez mundial, peças cujo valor depende tão-só da dimensão de seu patrimônio.

Mas, para realizar essa proeza sem precedentes históricos, foi preciso que o capitalismo se utilizasse, de modo encoberto, de sua grande arma de combate: o poder econômico.

Contrariamente, por exemplo, aos regimes totalitários e autoritários da época contemporânea, os quais fizeram questão de ostentar seu poderio, proclamado imbatível, e exigir rígida obediência do povo, o poder capitalista, tanto no mercado quanto na esfera política, permaneceu sempre oculto. Os grandes grupos empresariais, em todas as ocasiões, apresentam-se como subordinados ao poder estatal e sujeitos à concorrência mercadológica; quando, na verdade, somente subsistem e prosperam, submetendo ao seu poderio econômico as autoridades políticas e atuando no mercado sob forma monopolista ou oligopolista.

O espírito camaleônico aparece, assim, como uma característica essencial do ethos capitalista. Os protagonistas do sistema, à semelhança da serpente no mito bíblico do pecado original, não atuam de forma dominadora, mas sedutora.

Exemplo marcante dessa dissimulação permanente é a publicidade comercial. Seu método de atuação, como se sabe, consiste em convencer o público, não pela razão, mas pelos sentimentos; em esmerar-se na aparência das mensagens, sem grandes explicações sobre o seu conteúdo; em insistir em que a aceitação do que é proposto não demanda grandes esforços nem custos ingentes, e somente produz benefícios; ao contrário do que propõem os concorrentes.

A todo tempo e de mil maneiras, os líderes empresariais proclamam sua adesão incondicional às liberdades individuais, como uma forma de contrapoder privado, diante do Estado. Na prática capitalista, porém, a única liberdade que se procura preservar - e ainda assim, atuando cada qual no seu próprio interesse - é a livre iniciativa empresarial. Caso esta seja mantida, todas as demais liberdades podem e mesmo devem, conforme as circunstâncias, ser suprimidas. Foi o que se cansou de ver na América Latina, com a multiplicação de regimes autoritários, estreitamente associados aos grandes grupos empresariais e aos latifundiários.

Idêntica duplicidade de atitudes existiu e continua a existir com o princípio da iso-nomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Ele foi a grande arma utilizada pela burguesia para extinguir o estatuto jurídico privilegiado da nobreza e do clero, resquícios da velhíssima civilização indo-européia. Na prática da vida moderna, porém, a decantada igualdade jurídica de todos os cidadãos é um roto véu, que mal encobre a profunda divisão entre ricos e pobres. Essa divisão acabou sendo mundializada e aprofundada, mesmo nos países tidos como desenvolvidos; sem falar naqueles recentemente convertidos ao capitalismo, como a Rússia e a China.

Ou seja, como advertiu o personagem suíno da famosa novela de George Orwell, Animal Farm, em princípio todos são iguais; alguns, porém, são sempre mais iguais do que os outros.

 

E o futuro?

Em seu clássico História do declínio e queda do Império Romano, Edward Gibbon sustentou que o império dos Césares estava fadado à autodestruição pelo seu próprio sucesso. Creio que algo de semelhante acontece hoje com a civilização capitalista.

Após estender-se em poucos séculos a todos os povos do mundo, o capitalismo parece agora fadado a se decompor, vítima da mentalidade egoísta e de uma organização de poderes visando tão-só à acumulação incessante de capital.

E agora, como enfrentar o futuro?

Só há um caminho: instaurar uma nova civilização humanista, cuja mentalidade coletiva se funde no altruísmo, e cuja organização de poderes se inspire no princípio supremo de que "todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos" (Art. I da Declaração Universal de Direitos Humanos).

Inútil dizer que essa transformação radical da vida humana na face da Terra não se fará de forma repentina, por meio de uma revolução, como prega o marxismo. Ela deverá ser construída paulatinamente, através de gerações, pois implica uma mudança integral de orientação ética, em todos os povos do mundo.

O essencial é que comecemos, desde já, a seguir nesse rumo, com confiança e determinação.

 

Referências

Carcopino, J. (1939). La vie quotidienne à Rome à l'apogée de l'empire. Paris, Hachette.         [ Links ]

Comparato, F. K. (2006). Ética - direito, moral e religião no mindo moderno. (3ª ed.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Confúcio (1981) Analecto In Entretiens de Confucius. (Anne Cheng, Trad. e notas) Paris: Seuil.         [ Links ]

Coulanges, F. de (1975). A cidade antiga (12ª ed.). São Paulo: Hemus.         [ Links ]

Duby, G. (1978). Les trois ordres ou l'imaginaire du féodalisme. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Durkheim, E. (2007). De la division du travail social. (7ª ed.). Paris: Quadrige. (Trabalho original publicado em 1893)        [ Links ]

Duve, C. de (2009/2010). Génétique du Péché Originel - Le poids du passé sur l'avenir de la vie, Paris: Odile Jacob.         [ Links ]

Mandeville (1723). The Fable of the Bees. (Vol. 1). Indianapolis: Liberty Classics.         [ Links ]

Salvador, V. (1965). História do Brasil, 1500 - 1627. (5ª ed.). São Paulo: Edições Melhoramentos. (Trabalho original publicado em 1627)        [ Links ]

Smith, A. (2000). The Theory of Moral Sentiments. Nova York: Prometheus Books, Amherst.         [ Links ]

Smith, A. (2003). A riqueza das nações São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Unesco (1968). Le droit dêtre un homme,25. Paris: Robert Laffont.         [ Links ]

Vieira, A. (1951). Sermões In Obras completas do padre Antonio Vieira. (Vol. 7). Porto: Lello & Irmão Editores. (Trabalho original publicado em 1642)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Fabio Konder Comparato
[Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP]
Rua Teerã, 18, 05301-000
São Paulo, SP
e-mail: fkcomparato@gmail.com

 

 

1 Die protestantische Ethik und der "Geist" des Kapitalismus, 1904-05.
2 A saber, Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores; na geração seguinte, Georges Duby, Fernand Braudel e Jacques Le Goff.
3 Mateus 5, 43-48; Lucas 6, 27-36.
4 Evangelho de Lucas 10, 29-37.
5 Vejam-se, a esse respeito, as observações de Jérôme Carcopino, em seu livro La vie quotidienne à Rome à l'apogée de l'empire, Paris, Hachette, 1939, pp. 205 e ss.
6 Mateus 5, 3; Lucas 6, 20.
7 Mateus 6, 19-21; Lucas 12, 33-34.
8 Mateus 6, 24; Lucas 16, 13.
9 Mateus 19, 16-24; Lucas 18, 18-27; Marcos 10, 17-27.
10 Mateus 25, 14-30.
11 Lucas 19, 11-27.
12 Livro IV, cap. IX.
13 De re publica, livro primeiro, XXV-39.
14 Ulpiano, por exemplo, afirmou que os bens municipais são abusivamente denominados bens públicos; pois essa qualificação só deve ser atribuída àquilo que pertence ao povo romano: Bona civitatis abusive "publica" dicta sunt; sola enim ea publica sunt, quae populi Romani sunt (Digesto 50, 16, 15).
15 Ita questor sum factus, ut mihi honorem illum non solum datum, sed etiam creditum putarem (In Verro actio 5, 35). O questor era o magistrado encarregado das finanças.
16 Livro II, cap. VI.
17 As citações do comerciante florentino que constam nesta página têm como referência Jacques Le Goff, em Annales d'histoire economique et sociale.
18 Deuteronômio 16, 19.
19 "One of the greatest Reasons why so few People understand themselves, is, that most Writers are always teaching Men what they should be, and hardly ever trouble their Heads with telling them what they really are. As for my Part, without any Complement to the Courteous Reader, or my self, I believe Man (besides Skin, Flesh, Bones, &c that are obvious to the Eye) to be a compount of various Passions, that all of them, as they are provoked and come uppermost, govern him by turns, whetherhe will or no" (The Fable of the Bees, Liberty Classics, Indianapolis, prefácio).
20 É o que ele sustentou em um longo "Ensaio sobre a caridade e as escolas de caridade", acrescido ao corpo da obra, em sua edição definitiva de 1723.
21 Livro I, cap. II.
22 "Civil government, so far as it is instituted for the security of property, is in reality instituted for the defence of the rich against the poor, or of those who have some property against those who have none at all."
23 Livro II, cap. III.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons