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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo jan./mar. 2012

 

ARTIGOS

 

Baluarte, surpresa e comunicação no campo analítico1

 

Bastion, surprise and communication in the analytic filed

 

Baluarte, sorpresa y comunicación en el campo analítico

 

 

Jair KnijnikI; Adriana RispoliII; Ana Cristina Azambuja TofaniIII; Cátia Olivier MelloIV; Lucia Chassot RubinIII; Marta Helena Rubbo PachecoII; Cláudio Laks EizirikV

IMédico psiquiatra, membro associado pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
IIMédica psiquiatra, membro aspirante graduada pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
IIIPsicóloga, membro aspirante graduada pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
IVPsicóloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS, membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
VProfessor associado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA

Correspondência

 

 


RESUMO

Os autores refletem acerca do conceito de campo analítico e do exame do valor comunicativo de um de seus elementos, a surpresa, a partir de uma vinheta clínica.

Palavras-chave: campo analítico; baluarte; surpresa; comunicação


ABSTRACT

The authors reflect on the concept of the analytic field and exam the communicative value of one of its elements - surprise - based on a clinical vignette.

Keywords: Surprise; communication; analyticfield; bastion.


RESUMEN

Los autores reflexionan sobre el concepto de campo analítico y el examen del valor comunicativo de uno de sus elementos, la sorpresa, a partir de una viñeta clínica.

Palabras clave: campo analítico; baluarte; sorpresa; comunicación.


 

 

Introdução

Embora descrito há cinquenta anos pelo casal Baranger (Baranger & Baranger, 1961), existem poucos trabalhos publicados em revistas de psicanálise sobre o conceito de campo analítico como tal (Brito, 2002; Civitarese, 2008; Ferro, 2009). Perguntamo-nos por quê. Não se trata de um conceito relevante clinicamente? É um conceito incômodo ao analista? Teria ele se diluído sob outras denominações? O fato de não ser um conceito exclusivamente intrapsíquico reduziria o interesse em sua utilidade? O fato de só ter sido recentemente traduzido para a língua inglesa (Baranger & Baranger, 2008; Churcher, 2008; de Bernardi, 2008) teria reduzido o seu acesso à comunidade psicanalítica internacional?

A cultura psicanalítica na qual o conceito foi desenvolvido era a do reconhecimento crescente da participação do analista na configuração dos fenômenos observados no relacionamento terapêutico, e foi desenvolvido a partir dos trabalhos de Racker (1982) e Heimann (1950/1995) sobre o valor comunicativo da contratransferência, da identificação e da con-traidentificação projetiva.

Partindo da teoria de Merlau-Ponty (1945), o casal Baranger chegou à ideia de que o trabalho consciente e inconsciente do analista com seu paciente se desenvolve imerso numa relação intersubjetiva em que ambos os participantes se definem mutuamente, o que implica que nenhum fenômeno que se passe dentro do campo analítico possa ser compreendido fora desse contexto. O próprio enquadre é elemento constituinte do campo.

Não se trata, entretanto, de um jogo de palavras compreender o que se passa durante o trabalho entre paciente e analista como um campo no qual ambos se definem, na medida em que dele participam suas subjetividades de forma ativa. Com efeito, pensar em termos de campo analítico é diferente de pensar em termos da dinâmica da trans-ferência-contratransferência. O conceito de campo analítico nos permite pensar que as dificuldades que surgem no relacionamento analítico de modo bidirecional não se devem à responsabilidade do paciente ou do analista, à resistência de um ou de outro. Representam uma patologia específica de uma estrutura intersubjetiva, fruto de transferências cruzadas, de identificações e contraidentificações projetivas. Uma grande mudança que se observa é em relação ao enfoque do trabalho do analista que, por intermédio de um segundo olhar, procurará conhecer qual é a fantasia básica ativa nesse campo e como cada um se relaciona e se posiciona nessa estrutura, de modo a permitir uma oscilação entre alienação e subjetivação a cada ciclo de cristalização/movimento do e no campo, contribuindo assim para que ambos saiam conhecendo mais sobre si mesmos. Evidentemente, devido à assimetria do relacionamento, o processo de subjetivação e conhecimento sobre si deve ser mais significativo e amplo no polo do paciente do que no polo do analista. Vemos, entretanto, o desagradável que há em tudo isso, pois implica numa nova revolução copernicana, por assim dizer, na qual o analista deixa de ser o deus-sol e passa a contribuir "tanto quanto" o paciente (a partir de sua equação pessoal) para os desenlaces tróficos e destrutivos do vínculo terapêutico.

Revisando a literatura percebe-se que, se por um lado o conceito de campo analítico como uma descrição do que ocorre na sessão analítica trouxe mais complexidade ao trabalho, ele também ampliou as possibilidades de compreensão dos analistas. Madeleine Baranger (2005) menciona alguns autores que agregam elaborações pessoais a essa mudança de perspectiva: enfocar a situação clínica como o dado fundamental a ser estudado na situação analítica, descentrando o estudo da psicopatologia do paciente para a relação analítica e para o processo analítico, a fim de perceber os fenômenos que os constituem, favorecem ou dificultam a meta final da análise. A autora cita, por exemplo, o "terceiro analítico" de Ogden (1994), o "estado de sessão" do casal Botella, o papel de "objeto transformational" desempenhado na sessão, descrito por Bollas (1987) e a própria noção de "estrutura" atribuída ao setting por Green (2007). Todos esses conceitos falam, de uma maneira ou de outra, de algo que se produz na sessão a partir de um contato emocional estreito entre analista e paciente e que não seria possível ocorrer fora do enquadramento analítico, sem as regras que estruturam essa relação particular e irrepetível entre a dupla paciente-analista.

Nessa contínua oscilação entre abertura e repetição, entre paralisação e movimento no campo, forma-se uma estrutura inconsciente presente em todo relacionamento terapêutico que tem uma função de refúgio, de "imunidade parlamentar ou diplomática" por assim chamar, a qual pretende onipotentemente proteger os membros da dupla de entrarem em contato com estados muito primitivos, como desvalia, vulnerabilidade e desamparo: o baluarte. O baluarte é aquilo que o analisando inconscientemente não quer colocar em jogo, e que é penoso também para o analista enfrentar em si e, por consequência, difícil de enfrentar com o paciente. Assim, provavelmente o baluarte tangencie os limites terapêuticos de cada dupla. O enfrentamento e a eventual desmistificação e destruição do baluarte vai depender das possibilidades de cada dupla paciente-analista de elaborar angústias primitivas.

Na medida em que se trata de uma estrutura intersubjetiva, o próprio conceito de analisabilidade pode ser questionado, sendo esta uma segunda mudança em termos conceituais quando comparada com os conceitos de transferência e contratransferência. Um baluarte de superioridade intelectual, por exemplo, pode encontrar ressonância em um analista que também se defenda desta forma, e não em outro analista cuja estrutura de refúgio psíquico se dê de modo diverso, como por exemplo, através da beleza e do poder de sedução. Pensando em termos do campo, o baluarte da superioridade intelectual teria mais chances de ser enfrentado pela segunda dupla.

Pela dificuldade de conscientização e abordagem pela dupla, uma das peculiaridades do baluarte é, por definição, a sua característica de cristalização aliada ao clima de imobilidade que se cria na análise, pois, de acordo com Baranger, Baranger e Mom (1982) o baluarte sempre renasce de formas diferentes, sendo o mais conspícuo sinal clínico da compulsão à repetição. De fato, Freud (1920/1978c) descreveu como uma situação desprazerosa (como pode ser um clima de imobilidade na análise, por exemplo) pode ser explicada em termos da economia do funcionamento mental em Além do princípio do prazer:

mas nós agora chegamos a um fato novo e muito digno de nota, ou seja, que a compulsão à repetição também traz de volta, do passado, experiências que não incluem a possibilidade de prazer e que nunca podem, mesmo num passado remoto, ter trazido satisfação, mesmo para impulsos instintivos que tenham, desde então, sido reprimidos (p. 20).

Pensamos que algumas contribuições recentes de Green (2007) podem ser úteis para tentar compreender metapsicologicamente as relações entre compulsão à repetição e baluarte. Para o autor, a compulsão à repetição pode ser encontrada em situações distantes da ação, como por exemplo quando o paciente não produz nenhuma associação e fica com a mente vazia (sem produção de significado) não como efeito da repressão, mas de algo mais radical: como efeito da negação. Para ele, o que é prejudicial ao paciente não é o ato de repetir, mas sim o fato de ignorar toda e qualquer relação entre os fragmentos repetidos. A falha no reconhecimento dos diferentes modos de repetição é responsável por sua recorrência persistente e, assim, o mesmo conteúdo ser negado continuadamente.

Dito de outro modo pelo mesmo autor (Green, 2001 e 2008), é como se efetuasse um assassinato do tempo. Cabe aqui uma distinção entre a atemporalidade do inconsciente e o assassinato do tempo.

Dizer que o inconsciente é atemporal não significa que possamos fugir da inexorabi-lidade do envelhecimento, mas que podemos reinvestir eroticamente nossas representações mentais, nossos traços de memória, como uma reserva de vida para enfrentar as agruras da realidade. Isto se situa na linha do espaço potencial, da área da ilusão (Winnicott, 1975), que tem uma função vital, no sentido de tornar a existência ao menos tolerável. É o mundo do sonho, por assim dizer.

A compulsão à repetição, como se sabe, responderia pela dificuldade de o paciente assimilar modos novos de viver e sentir aos seus, incorporados por identificação com os objetos originais, repetindo padrões de conduta e de sentimento à exaustão. "Há uma esterilidade desesperançada das repetições intermináveis em certos analisandos a despeito do trabalho analítico intenso" (Green, 2008, p. 225). Vê-se, pois, que não se trata apenas de ignorar a passagem do tempo, ou ainda da dificuldade em admitir as limitações da realidade, aceitando os limites da crença em nossa onipotência, mas algo mais radical, como a negação do tempo. Refugiarmo-nos na atemporalidade do inconsciente faz com que possamos manter a crença de que continuamos jovens e fixados em nossas ilusões, mas sabemos que o tempo continua a avançar. Já no assassinato do tempo, como manifestação da compulsão à repetição, nas palavras de Green, "não somente nos recusamos a crescer, mas ainda temos a louca fantasia que nos diz que podemos parar a marcha do tempo" (Green, 2008, p. 224).

Green explica que em situações de grave dificuldade de integração dos sentimentos de amor e ódio, as representações ligadas a um determinado objeto seriam destruídas numa manobra extrema de sobrevivência psíquica, mas também se destruiria junto os processos temporais a ele aderidos. Dessa forma, com o tempo fixo, congelado, há uma impossibilidade de processar o luto pelo objeto. O indivíduo fica preso numa situação em que a morte do objeto é buscada e repelida ao mesmo tempo, já que o amor à presença desse objeto segue sendo de vital importância. A única maneira de satisfazer essa exigência contraditória é cristalizar, congelar a experiência do tempo e negar a vida de fantasia.

Se há diferenças teóricas e clínicas em ambas as situações, há também semelhanças. Em ambas as situações, por exemplo, o analista precisa estar muito conectado para identificar quando algo novo ou surpreendente emerge na sessão.

No texto "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", Freud (1912/1978a) aponta que

... os casos mais bem sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se os enfrenta com liberalidade, sem quaisquer pressuposições (p. 153).

Assim, perguntamo-nos sobre o valor do novo, da surpresa, da eventual sensação de nos encontrarmos com um paciente que nos acena com a possibilidade de sentir, identificar e falar sobre assuntos que talvez sejam novos para a dupla, algo que nasça do encontro entre as mentes do paciente e do analista.

Cabe aqui fazer a distinção entre o inesperado e o novo, uma vez que nem sempre o inesperado precisa ser novo. O fato de o paciente repetir pela enésima vez um comportamento pode ser inesperado para o analista, mesmo após a dupla ter analisado exaustivamente um assunto. Não saber como abordar um tema já muito falado pode ser por demais antigo, apesar de inesperado para o analista, mas não novo. Cabe ao analista estar aberto e preparado para diferenciar entre o inesperado e o novo, a fim de enfrentar a compulsão à repetição a favor do trabalho da dupla ou construir junto com seu paciente o caminho novo a ser trilhado por ambos.

Com o propósito de discutir alguns aspectos já mencionados, pretendemos partir de uma vinheta clínica e comentar as possíveis relações entre baluarte, surpresa e comunicação no campo analítico.

 

O surpreendente desconhecido no analista

O fato de sabermos que algo novo e pertencente a ambos (paciente e analista) pode acontecer durante a sessão não evita a surpresa ou o incômodo quando surge algo desconhecido ou que não esperávamos no encontro com nosso paciente em análise.

No trabalho "O estranho" (1919/1978b), Freud fala de como as características infantis de animismo e onipotência do pensamento são determinantes na sensação de estranheza que sentimos ao ver uma imagem ou experimentar uma sensação inesperada e aparentemente desconhecida, mas que se revela, ao exame aprofundado do inconsciente, muito conhecida do sujeito. Assim, apesar do termo ter sido traduzido para o português como "estranho", no sentido de não-familiar, trata-se literalmente de um "desconhecido inconsciente". Esse trabalho exemplifica e detalha a definição da palavra unheimlich e seus usos em várias línguas para mostrar como a palavra significa a uma só vez desconhecido e familiar. A raiz etimológica, sua definição e a evolução do seu uso mostram que, com efeito, "o estranho" não é nada estranho, mas algo que sucumbiu à repressão infantil. Dessa forma emerge na consciência como algo que não queremos perceber, ver ou sentir e surge como algo "estranho" (desconhecido, não-familiar ao consciente).

Considerando a relação de estranho (desconhecido-conhecido) com o inconsciente infantil, se a sensação de surpresa ou de incômodo a que nos referimos neste artigo é algo que ocorre somente quando o analista está conectado emocionalmente com o seu paciente é, portanto, uma questão que merece ser incluída. Pensa-se, à luz da teoria do campo e dos baluartes, que sim, que é necessário que o analista esteja emocionalmente envolvido, o que equivale a dizer que seu inconsciente esteja de fato trabalhando junto com o do paciente para que tais fenômenos, ainda que incômodos ao analista, surjam, mas principalmente que possam ser pensados após a sessão pelo analista.

Seria esta a razão para o desconforto, para os fenômenos surpreendentes do campo que nos assustam, apesar de sabermos teoricamente que eles poderão surgir? A emergência do inconsciente do analista, então, seria sua explicação? As sensações desconhecidas, não--familiares ao consciente do analista na sessão seriam manifestações do fenômeno descrito por Freud em 1919?

Segundo Green (2007), o estranho representa estados de não-ligação, de não-significação, nos quais a ansiedade é grande e não se pode reconhecer nada. O significado só pode advir atendendo-se à necessidade de algum tipo de vinculação, de ligação psíquica. Necessita-se coragem do paciente, e nós acrescentamos, também do analista, para a elaboração do estranho.

Admitindo que sim, a diferença entre analista e paciente ao se depararem com tais situações seria que o primeiro, avisado teoricamente da possibilidade de ocorrência desses fenômenos e analisado o suficiente para não evitar a conscientização dos mesmos, teria mais condições de identificar, conter e processar em si o que se passou entre ambos?

Voltando aos baluartes, sabemos que são áreas de difícil acesso na análise, nas quais o analista evita determinados assuntos porque ele próprio talvez não tenha coragem de se enfrentar com este ou aquele tópico. Além da identificação com o sofrimento e dificuldade do paciente, são assuntos ou sensações por vezes temidas pelo analista como pessoa. Evidentemente, seria simplista pensar que todas as áreas de difícil acesso para o analista seriam do tipo "estranho", mas talvez algumas possam estar a ele ligadas. Outra possibilidade, a qual não invalidaria a anterior, é de que algo realmente novo surja na análise, algo que não se encontre no campo da repressão.

Recentemente, Droit (2010) destacou que Heráclito era chamado de "o obscuro", porque fez duas observações contraditórias, e ambas relevantes: por um lado, disse que tudo o que existe na natureza pertence a uma unidade. Mesmo o que se opõe e contradiz ainda assim faz parte de um conjunto geral único; por outro, ressaltou que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Não só a água não é a mesma, como as margens se modificam, e o banhista se modificou. Ora, poderíamos conceber a situação analítica de forma semelhante: uma invariância que é a estrutura geral do setting e o próprio método, e o campo analítico, em constante transformação. Da mesma forma, teríamos a coexistência da compulsão à repetição em determinados aspectos e o surgimento do novo, do inesperado, do surpreendente no campo analítico em constante devir.

Supondo que assim seja, seria necessário transmitir ao paciente o ocorrido em algum grau? Ou seria suficiente que o analista pudesse identificar o fenômeno como legítimo e como sinalizador de que algo inconsciente da dupla estaria presente no campo, balizando sua reflexão acerca do caso dali em diante?

A vinheta clínica a seguir ilustra uma situação na qual justamente o inesperado e a surpresa foram elementos que permitiram uma nova compreensão que auxiliou a dupla a identificar um baluarte e seguir o curso da análise que parecia travada num certo aspecto.

 

Ilustração clínica

O sr. T. procurou análise quando estava com 71 anos. Profissional de destaque em sua área, ele estava aposentado. Imaginara para si uma velhice tranquila ao lado da esposa, porém "as coisas vinham acontecendo de forma diversa" (sic). O filho mais jovem era portador de uma doença degenerativa e o sr. T já não podia continuar negando tal patologia. Também já não conseguia suportar as solicitações da esposa e se ressentia do distanciamento que existia entre os dois. Sentia-se absolutamente desanimado, desesperançado e muito sozinho.

Durante a avaliação, adotou uma postura arrogante, desdenhando o profissional que lhe atendera anteriormente e sugeriu que mais cedo ou mais tarde precisariam ter uma conversa em que ele poderia saber um pouco mais da nova analista, uma espécie de avaliação "ao contrário". Ao final da avaliação o sentimento da analista era de irritação e rechaço, embora estivesse muito presente o sofrimento desse homem que aparentemente tinha trabalhado a vida toda, mas esquecendo todos que o rodeavam, a família em especial.

Cabe salientar que à época do início do tratamento a analista se recuperava de uma cirurgia oftalmológica que transcorrera bem, mas que a havia colocado em risco de perder a visão.

O clima que foi se estabelecendo ao longo das sessões era de distanciamento. O sr. T queixava-se do filho e da esposa, num relato detalhado e estéril das reações de cada um deles. Descrevia os fatos como se não estivesse presente nas cenas relatadas. Aliás, esta era a sensação da analista, a de que estava assistindo a um filme e não à vida real. O mesmo se passava na sessão. Havia um paciente e uma analista que trocavam palavras e falavam de algo que não o que se passava verdadeiramente dentro da sessão.

Como de fato a vida "real" do sr. T. estava bastante conturbada, em alguns momentos discutia-se na análise o que fazer em relação ao tratamento de seu filho, por exemplo. Isto parecia necessário e importante, mas embutia outra função: dava vida à sessão. Era o momento em que falavam um com o outro. Por outro lado, gerava tensão na analista que se sentia fazendo um trabalho superficial e pobre - e pior - a sensação de estar caminhando no sentido antianálise, um caminho que os levaria ao nada.

Foi a partir da morte do irmão mais velho e da aparente indiferença do sr. T à perda que foi ficando mais claro o brutal sofrimento que existia e a incapacidade de T. de pensar, sentir e elaborar as emoções que eram descritas por ele como "percalços da vida". Mantinha uma postura de constante indiferença à analista, inclusive rechaçando todo e qualquer as-sinalamento feito por ela a esse respeito. O que a analista pensava é que esse homem estava velho, a vida estava terminando e não teriam tempo para ajudá-lo. Sentia-se de mãos atadas com alguém que a desprezava; rumavam para o túmulo. Não havia luz no fim do túnel, não havia o que fazer. Estava sozinho e assim ficaria. Mas ele procurara ajuda. Não faltava às sessões e não se atrasava.

Neste ponto do trabalho ambos passaram por situações delicadas de saúde: o sr. T. teve uma isquemia e passou uma semana sem vir às sessões. A analista, por sua vez, recebera o diagnóstico de um problema na visão, desta vez crônico, o que a deixou triste e assustada. No dia em que o sr. T. voltaria às sessões, ela releu suas anotações sobre ele. Imaginou separar as folhas que estavam impressas e lê-las aleatoriamente. Que história se formaria? Por um instante imaginou as folhas caminhando pela mesa, que eram seguradas por pequenas pessoas, como formigas a carregarem folhinhas nas costas. Pensou no sr. T. Estaria melhor? Sentiu alívio ao pensar que não fora nada grave e muito cansaço ao imaginar que ele chegaria. Ele "chegou", e nessa sessão trouxe seus dois primeiros sonhos, para surpresa da analista, assim relatados: No primeiro, "eu chegava no meu escritório e vários funcionários escreviam sobre a minha vida. Espalhavam os papéis que continham anotações. Espalhados daquela forma, eles poderiam avaliar melhor o que tinha sido a minha vida e, então, fazer um resumo mais fidedigno. Então eu resolvia que também ia escrever e decidi escrever sobre o meu avô. Comecei a escrever no tempo presente e lá pelas tantas me dei conta de que se alguém lesse aquilo poderia pensar que ele estava vivo, só que ele está morto há muitos anos. Resolvi avisar a todos que estavam ali. Avisei, mas continuei escrevendo do mesmo modo". No segundo sonho, "eu chegava em casa e encontrava vários homens trabalhando. Ficava muito irritado com aquela intromissão. Fui para o meu outro apartamento. Comecei a organizar umas coisas antigas e quando fui para o cômodo ao lado dei de cara com uma moça. Ela estava lá para me ajudar".

Associou o primeiro sonho a uma conversa que teve com a esposa. Esta o advertiu sobre os planos inverossímeis que estava fazendo para o filho. A resposta dele foi "me deixa sonhar". A analista assinalou que o paciente também se incomodava com a presença dela (analista) em sua vida. Embora quisesse revisar a sua vida, como aqueles homens reunidos, precisava de sua ajuda e ficava ambivalente quanto a isso. Vinha às sessões, mas se incomodava com a necessidade delas. Ele, surpreendentemente, concordou. Comentou que de fato às vezes se irritava com o fato de precisar de ajuda "a estas alturas, com esta idade". Por um instante parecia que estavam "se entendendo", mas era um diálogo óbvio. A imagem de alguém que olha um quadro de perto e depois se distancia, portanto, tem outra visão, ocorreu à analista que lembrou sua "brincadeira mental", do cansaço e do avô que "já estava morto há anos". E então comentou que ele passara por um "sufoco" porque estivera hospitalizado, ao que ele desdenhou. Acrescentou que ambos desdenharam esse "sufoco", porque mal chegara e se puseram a falar dos dois ali, vivos. Ele até concordara! Deixaram de lado o risco de morte, o medo. Ele disse que se sentia desanimado há muito tempo, não via sentido nas coisas, se sentia acovardado para fazer novos planos. A analista assinalou que o sentimento era de já estar morto e que por isso parecia que nada mais valia a pena, nem mesmo estar ali. Afinal, parecia que a cada movimento só encontravam tristeza. Ao mesmo tempo ele seguia brigando como se essa fosse a única forma de poder tolerar tanto sofrimento - a morte do irmão, a doença do filho, a distancia da mulher, os planos que não deram certo, o tempo que já passou.

Na sessão seguinte o sr. T. foi para o divã: ao contrário do que parecia, existia vida no campo analítico, que se revelou no encontro do devaneio da analista, no sonho do paciente e na própria ida para o divã. Esse movimento do paciente, pode-se supor, traduz um novo momento da dupla, o de arriscarem-se rumo ao desconhecido, desfazendo o baluarte de imobilidade compartilhada que vinha predominando entre ambos.

 

Discussão

Como se pode observar no relato da vinheta acima, o clima de cristalização com o qual analista e paciente se enfrentavam no início pôde ser percebido e abordado pela analista após o retorno do paciente às sessões. Podemos pensar que havia se instalado um baluarte que impedia que o fluxo da análise pudesse ser mais franco, e que talvez esse baluarte estivesse ligado à ideia de que não havia vida possível para a análise. Teria se instalado, por assim dizer, a fantasia compartilhada de que "chegamos ao nosso limite, não falaremos de morte". O clima semimorto das sessões era a tradução da impossibilidade da dupla em abordar o que era, inconscientemente, sentido como intolerável. Diante da ameaça de morte, entretanto, surge a mudança, carregada do impacto provocado pelo novo. Talvez o problema de saúde em comum (ainda que fossem muito diferentes em intensidade e seriedade) tenha levado ambos a buscarem a pulsão de vida que estava reprimida pelo baluarte de que haviam chegado ao limite de ambos e que não haveria mais tempo hábil para a analista auxiliar aquele paciente.

A surpresa foi a descoberta de uma sintonia entre ambos materializada pelo relato do sonho do paciente e pelo devaneio da analista. A experiência emocional de terem "sobrevivido" cada um à sua ameaça concreta possibilitou que o campo "minado" de doença e das limitações (baluarte da dupla) se transformasse num campo de vida.

 

De volta ao campo analítico

Do ponto de vista teórico temos, portanto, de um lado uma descrição de uma nova forma de visualizar o trabalho analítico, que apesar de ter sido proposta em 1961, somente aos poucos foi ocupando um lugar mais central na teorização da teoria da técnica, por exemplo, a partir dos trabalhos de Ferro, inclusive seu recente livro com Basile (Ferro, 2009) sobre o tema e a recente publicação, pela primeira vez em inglês, de seu clássico trabalho no Inernational Journal of Psycho-Analysis (Baranger & Baranger, 2008). Por outro lado, percebe-se a necessidade de legitimar o surgimento da surpresa no campo analítico como uma ferramenta comunicativa de algo novo, emergente da relação, oriundo do campo analítico e, portanto, pertencente somente àquela dupla.

Se a noção de campo pode ter sido revolucionária (embora na forma de trabalhar de Freud, conforme vários livros sobre seus pacientes, já se percebia claramente um campo analítico em marcha), ao mesmo tempo, como qualquer conceito ou proposta, à medida que o tempo passa, corre o risco de se tornar um elemento do establishment, ou seja, algo aceito com naturalidade, como um fato do processo analítico, o que a destituiria de sua essência disruptiva e, portanto, propulsora de mudança.

Pensamos que se trata de uma luta dialética entre duas tendências: uma que aposta no novo, no não-conhecido ou reprimido, no unheimlich, e outra que busca se refugiar logo que possível no conhecido, que acalma e tranquiliza. Esta segunda posição destacará sempre a natureza assimétrica do campo, os diferentes objetivos entre paciente e analista, e resvalará sutilmente para a tradicional ideia de que há um analista treinado para tal e um paciente que busca tratamento para sua doença ou sofrimento. No entanto, o que os Baranger propunham e o que Ferro parece muitas vezes levar até as últimas consequências (gerando críticas por sua audácia e aparente pouco embasamento factual) é justamente o caráter bipessoal do campo e a inevitável participação do analista com todo o seu mundo interno, sua personalidade e sua neurose.

Se resistirmos à tentação do bom comportamento, seremos obrigados a admitir que nunca sabemos o que vai acontecer a cada novo dia de trabalho com cada paciente, e tampouco sabemos, tanto no início como no curso de uma sessão, o que pode surgir na sequência da mesma. A proposta bioniana de "sem memória nem desejo" (Bion, 1973) é relevante para este ponto, tanto quanto a da capacidade negativa. Assim, por essa forma de olhar o que se passa numa sessão ou numa análise, teremos que aceitar a ignorância, acompanhar o que vai ocorrendo entre nós e o paciente e esperar que algo surja, de surpresa, a qualquer momento. Trata-se, naturalmente, de uma situação muito incômoda e angustiante, face à qual podemos usar várias defesas que, num primeiro momento, podem ser exitosas: uma interpretação plausível, uma teorização sobre o que está acontecendo, um silêncio vazio e supostamente compreensivo, perguntas ansiosas, uma atitude ou intervenção moralizadora, e assim por diante. Contudo, se se trata de um campo analítico que possa receber esse nome, isto não vai dar certo e dentro em pouco estaremos atolados e atados com o paciente, como no quadro de Breughel Um cego conduzindo outro cego. Aí, sim, teremos uma situação de campo que poderá nos ajudar a pensar e tentar entender o que está ocorrendo, junto com o paciente.

A julgar pelo movimento seguinte (a ida para o divã) ao exame pela analista do inesperado, na vinheta aqui relatada, esse caminho acenou com a possibilidade de desfazer o baluarte de que "não havia luz no fim do túnel", criando-se um encontro baseado no trabalho de pessoas-formigas, as quais, levando fragmentos da vida do paciente, encontraram alguém para escutá-los da maneira em que se apresentassem, ordenada ou desordenadamente.

 

Referências

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Correspondência:
Ana Cristina Azambuja Tofani
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Recebido em 04/07/2011
Aceito em 13/02/2012

 

 

1 Este trabalho é fruto de um grupo de estudos sobre o campo analítico, sob coordenação do dr. Cláudio Laks Eizirik. Esta é uma versão ampliada e revisada do trabalho de mesmo nome apresentado no XXVIII Congresso latino-americano de psicoanálisis: transferencia, vínculo y alteridade, de 23 a 25 set. 2010, Bogotá, Colômbia.

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