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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo jan./mar. 2012
RESENHAS
Talya Candi
Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP e autora do livro O duplo limite: o aparelho psíquico de André Green, Editora Escuta, 2010
André Green
Editora: Artmed, São Paulo, 2010, 313 pp.
Resenhado por: Talya Candi
O trabalho do negativo em André Green: do que se trata?
Ampliar a metapsicologia freudiana tem sido um constante empenho dos psicanalistas mais criativos, refletindo sobre a utilidade clínica da noção de "reversão da função alfa" formulada por W Bion. Meltzer (1986, p. 116) diz que as novas teorias psicanalíticas devem poder exercer duas funções para se estabelecer na literatura: organizar os fenômenos clínicos e as experiências emocionais em uma forma simbólica mais estética do que a anterior, e capacitar o analista com novos instrumentos que permitam observar fenômenos que se mantinham invisíveis até o momento. Acreditamos que André Green concordaria com essa posição, acrescentando a necessidade de encontrar conceitos-chave que permitam fazer dialogar entre si as diferentes escolas psicanalíticas de maneira a reforçar as convergências e reunir em um mesmo conjunto as descobertas de autores de diferentes tradições psicanalíticas. O termo trabalho do negativo, introduzido na literatura ao longo dos anos 1970-1980 pelo próprio André Green, insere-se nesta categoria de conceitos metapsicológicos que organizam mais esteticamente os fenômenos, permitem enxergar novos aspectos da clínica, integram as diferentes tradições e consequentemente acabam revitalizando a tradição freudiana. A comunidade psicanalítica de língua portuguesa deve parabenizar José Carlos Calish, diretor de publicações da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre pelo lançamento, em 2010, da edição brasileira do livro O trabalho do negativo e agradecer o empenho da diretoria científica em fazer uma tradução de qualidade dessa importante obra.1
Falar no campo teórico psicanalítico em "trabalho do negativo" é, no entanto, uma velha novidade, pois Freud já fez uso do termo negativo tanto na sua forma adjetivada, para descrever as formações de resistências (de tal maneira que estamos bem familiarizados com a reação terapêutica negativa), como na sua forma substantiva, no seu artigo "A negativa", de 1925. Após Sándor Ferenczi, coube a Melanie Klein a tarefa de insistir na importância da interpretação da transferência negativa (inveja, ressentimento, ódio...), vendo nesta modalidade de transferência o campo que permitiria a abertura necessária para a dissolução dos conflitos edípicos. Wilfred. Bion, por sua vez, inseriu na literatura psicanalítica uma ampla nomenclatura negativa, chegando a falar em - H, - L, - K. Cabe dizer que Jacques Lacan também se debruçou longamente sobre a negatividade no seu período hegeliano para enfocar os aspectos reflexivos da relação do sujeito com seus objetos. Assim, atrás da bela expressão "o trabalho do negativo", forjada originalmente pelo filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), abre-se um extenso campo de pesquisa ligado à problemática de um trabalho do e em negativo que ronda mais ou menos implicitamente o pensamento psicanalítico e que, ao ser explicitado e reunido, pode ser revisitado.
O que haveria de novo? Qual seria a novidade trazida por André Green? Acreditamos que a novidade seja o fato de ele ter olhado para o trabalho do negativo a partir de uma noção da dialética, que, diferentemente daquela proposta por Hegel, não alcança uma síntese. Lembremos rapidamente que, para Hegel, é ultrapassando as contradições que vai se dar a marcha da humanidade; o motor do movimento é a própria dialética, que surge a partir da negação da tese; com a reconciliação dos opostos na síntese, o patamar do processo pode se elevar e continuar o seu percurso. Com a introdução da noção de dialética no campo da psicanálise, André Green nos confronta com um sujeito em movimento de transformação, um sujeito à procura de si mesmo, em processo de vir a ser, que se constitui basicamente pelo jogo de oposição e complementaridade que surge a partir dos efeitos de reflexividade e de ressonância vindas de dentro e de fora2. Ora, se para Hegel em algum momento os opostos chegam a uma conciliação possível, e consequentemente a uma resolução temporária do conflito entre o Espírito e a Coisa através da síntese, no sujeito da psicanálise, por sua vez, o movimento dialético do conflito é permanente, impreterível e irredutível; é esse movimento que vai incidir na temporalidade psíquica.
Assim, a noção de trabalho do negativo trazida por Green nos permite visualizar claramente o funcionamento paradoxal do aparelho psíquico, pois coloca lado a lado as noções de trabalho de elaboração e de resistência, e concomitantemente dá ênfase não à deflagração e à aniquilação das resistências, mas ao hiato (tempo e espaço) que vai se instalar entre a elaboração e a resistência. O movimento psíquico necessário para a apreensão e a simbolização da experiência emocional (que provocou a manifestação da resistência) vai acontecer no espaço de respiração do conflito, nas bordas do self. Do ponto de vista metapsicológico, o pensamento negativo da dialética também deixa sua marca, pois, ao ampliar a lógica do jogo de força que tensiona os conflitos psíquicos e ao dar ênfase ao espaço e ao tempo de respiração do conflito, André Green reorganiza a teoria psica-nalítica, instalando no centro da metapsicologia duplas de conceitos que se trabalham mutuamente, um em conjunção ao outro, um em oposição ao outro: consciente-inconsciente, fantasia-realidade, pulsão-objeto, transferência-contratransferência, narcisismo-relação de objeto, pulsão de vida-pulsão de morte, ligamento-desligamento, principio de prazer-princípio de realidade...3
No campo da psicanálise, o psiquismo humano (a alma) é inelutavelmente um trabalho das resistências (internas e externas), que agem através de uma ampla gama de mecanismos de defesa. São esses mecanismos de defesa (cisão, clivagem, recalque, negação, alucinação negativa, identificação projetiva.) que ativam o jogo pulsional dialético do sim/não, dentro/fora, e que no final das contas possibilitam a discriminação, a classificação , a escolha e o julgamento que André Green reúne sob um único carro-chefe chamado de trabalho do negativo.
Cabe, contudo, perguntar: Por que mecanismos de defesa? Do que o sujeito, ao nascer, precisaria se defender dando lugar ao que foi chamado de psiquismo? André Green se junta à tradição metabiológica4 que diz que todas as defesas são defesas fundamentalmente contra os excessos de pulsão e de seu representante mais bem conhecido, que é a paixão5. A pulsão, que é despertada nos primeiros encontros da criança com seus objetos de necessidade e de cuidado, produz um intenso impacto frente à presença e, concomitantemente, um profundo desamparo frente à ausência. Ora, a qualidade dos primeiros encontros é crucial, pois tanto a presença quanto a ausência possuem potencialmente a capacidade de enlouquecer o sujeito em devir. É esse excesso pulsional (excesso tanto da/na ausência, quanto da/na presença), essa paixão cega e silenciosa, sem limite de tempo e espaço, que obriga a criança a se defender usando ferramentas precárias, mecanismos de defesas que lhe permitem se livrar dos excessos de excitação e de afeto. Como ver o que nos cega? Como narrar, falar do instante e do lugar do qual as palavras derivam? O psiquis-mo precisa eliminar parte de si mesmo para poder sobreviver. A humanidade surge a partir de um não, uma negativação da pulsão, que demanda um interminável trabalho de expulsão e de re--integração, de tal maneira que todo e qualquer movimento pulsional precisa ser re-apresentado para poder ser apropriado pelo Eu e tornar-se parte ativa da subjetividade. Nessa perspectiva, o sujeito é o operador de um incansável trabalho do negativo, um trabalho de morte que serve para preservar a vida. É esse árduo trabalho, o qual pressupõe um gradual estabelecimento de defesas, mais ou menos rígidas e patológicas, que vai instituir limites (uma geografia psíquica) que regulam o nível de excitação e angústia e ativam o ir e vir do processo de simbolização.
Como bem nos diz José Carlos Calish na apresentação da edição brasileira do livro: "O trabalho do negativo é uma imersão no funcionamento psíquico normal e patológico, à luz do pensamento de André Green" (Calish, 2010, p. XI).
O livro é composto por oito capítulos: os três primeiros se dedicam a apresentar a questão da dialética da negatividade e a revisitar essas noções na filosofia, na linguística e na cultura, passando por Hegel, Freud, Winnicott, Bion e Lacan. Nos outros cinco capítulos, Green se dedica a pesquisar a metapsicologia das defesas e do trabalho psíquico à luz da dialética da negatividade. O sétimo capítulo é especialmente valioso, pois descreve uma das vicissitudes mais importantes do trabalho do negativo: a alucinação negativa. Com a noção de alucinação negativa, Green nos propõe pensar que existe um mecanismo psíquico que negativa os excessos de percepção do objeto e possibilita representar a ausência de representação. Esta defesa, que elabora a internalização do objeto na sua ausência, é constitutiva do psíquico, pois vai permitir a edificação de um primeiro espaço psíquico vazio: o espaço da realização alucinatória do desejo, característico do sonho.
A incursão na metapsicologia das defesas se encerra com um curto texto que possui um tom confessional muito característico do estilo greeniano6. Foram ainda incluídos na edição original quatro anexos que reproduzem palestras proferidas sobre o tema. Esses anexos são recomendados ao leitor pouco familiarizado com o estilo greeniano. O último anexo é a primeira versão do famoso artigo "A analidade primária", que descreve o funcionamento da dialética da negatividade na fase anal, e que será ampliado e retomado em 2002, no livro La pensée clinique.
No seu mais recente livro, publicado em 2010 e intitulado Ilusões e desilusões do trabalho psicanalítico, André Green retoma a noção de trabalho do negativo articulando-a com uma síndrome que pode se manifestar ao longo do trabalho de análise. Essa síndrome, denominada de "síndrome de desertificação psíquica" (Green, 2010, p. 104), instala-se justamente quando as vivências de excesso atacam o processo de ligação pulsional, inviabilizando o jogo dialético entre a resistência e a elaboração e produzindo zonas mortas no interior do self do paciente. Foi a constatação clínica de intensas angústias de separação e ataques sistemáticos ao enquadre analítico que resultou na hipótese de que esses pacientes estavam submetidos à presença excessiva do objeto primário que não se deixou esquecer, tornando ainda mais intoleráveis as ausências do objeto. Nesses casos, em que tanto a ausência quanto a presença em potencial não se constituem, a separação Eu/não-Eu se encontra seriamente ameaçada, e o pensamento, prejudicado. Essa síndrome terá consequências na prática clínica, pois a hipótese formulada por ele é a de que o dispositivo analítico padrão não permitiu que o enquadre analítico se constituísse como espaço virtual de simbolização e precisará ser repensado. A desertificação psíquica é especialmente esclarecedora, uma vez que nos permite visualizar o que foi chamado por Figueiredo e Cintra (2004) de "extravio do trabalho do negativo" (Green fala em viciação do trabalho do negativo). Quando o movimento (o ir e vir) inerente à dialética do trabalho do negativo se estanca, o analista se transforma em um objeto-fetiche morto, e a vida afetiva se congela. O movimento do processo analítico gira em falso, um nada disfarçado de história sem-fim se instala sub-repticiamente na análise.
Com a noção de trabalho do negativo, André Green nos relembra que na psicanálise contemporânea não podemos perder de vista o fato de a vida psíquica ser tecida por defesas contra o drama da condição humana, no qual os excessos de afetos, a dor e as angústias são os principais protagonistas, no começo, no meio e no fim.
Referências
Calish, J. C. (2010) Apresentação. In Green, A. O trabalho do negativo. São Paulo: Artmed. [ Links ]
Figueiredo, L. C., & Cintra, E. M. U. (2004). Lendo André Green: o trabalho do negativo e o paciente limite. In Cardoso, M. R. (Org.), Limites. São Paulo: Escuta. [ Links ]
Green, A. (1980). Passions et destins des passions: sur les rapports entre folie et psychose. In La folie privée: psychanalyse des cas limites. Paris: Gallimard. [ Links ]
Green, A. (1983). Narcissisme de vie, narcissime de mort. Paris: Minuit. [ Links ]
Green, A. (1997). As cadeias de Eros: atualidade do sexual. Portugal: Climepsi. [ Links ]
Green, A. (2002). La pensée clinique. Paris: Odile Jacob. [ Links ]
Green, A. (2010). O trabalho do negativo. São Paulo: Artmed. (Trabalho original publicado em 1993) [ Links ]
Green, A. (2010). Ilusions et desilusions du travail psychanalytique. Paris: Odile Jacob. [ Links ]
Meltzer, D. (1986). Clinical application of Bion's concept "reversal of alfa-function". In Studies in extended metapsychology. London: Clunie Press. [ Links ]
Correspondência:
Talya S. Candi
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Pedroso de Alvarenga, 565, casa 9
04535-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 3070-0070
talyasc@uol.com.br
1 Vale ressaltar que o próprio André Green diz numa entrevista outorgada ao psicanalista argentino Fernando Urribarri, gravada ao longo do ano de 2011, que o livro O trabalho do negativo é a sua obra mais importante.
2 "A identidade não é um estado, é uma procura do ser que pode somente receber sua resposta refletida pelo objeto e pela realidade que a reflete" (Green, 1983, p. 40).
3 Nesta nova maneira de organizar a metapsicologia, a noção de limite ocupa um lugar de destaque, pois é nos limites que vai acontecer o processo de simbolização da experiência emocional.
4 Em relação à questão da metabiologia, remeto o leitor ao nono capitulo do livro de André Green As cadeias de Eros: atualidade do sexual.
5 Remeto o leitor interessado sobre os destinos da paixão enlouquecida pelo seu objeto ao artigo de 1980, intitulado "Paixões e destino das paixões: sobre os vínculos entre loucura e psicose" (Green).
6 O texto se intitula "Em um caminho escarpado". Destacamos uma frase do texto entre muitos trechos que valeria a pena citar: "O homem, segundo a psicanálise, situando-se de um lado ou outro do divã, é concebido essencialmente em sua relação com a desordem que habita intrinsecamente a condição humana, e que pode, em certos casos, evoluir de tal maneira que aquele que a vive por sua própria conta tem o sentimento de que as consequências incrivelmente complexas, resultantes disso, não poderiam encontrar soluções nos meios, nas oportunidades ou nas situações colocadas à sua disposição no tempo em que ele vive" (Green, 1993/2010, p. 279).