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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

RESENHAS

 

Entrevistas preliminares em psicanálise: incursões clínico-teóricas

 

 

Sandra Gonzaga e Silva

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 

Autor: Fernando J. B. Rocha
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 219p.
Resenhado por: Sandra Gonzaga e Silva

Um aviso ao leitor incauto: este não é um livro sobre Entrevistas preliminares em psicanálise. É claro que Fernando Rocha não os está enganando, como bem nos alerta Sergio Zaidhaft em seu prefácio ao livro; no entanto, é da viagem - análise, seus inícios, mas também seu percurso - que nos fala o autor.

Se "navegar é preciso" e a vida não tem precisão, o cuidado no manejo do enquadre de que fazem parte as entrevistas iniciais e seus atributos é fundamental para conter a inelutável errância do material clínico.

Necessário é dizer, seguindo Fernando, que o diário de bordo desta viagem só poderá ser escrito a posteriori, sendo - em suas palavras - "a articulação teórica que não diz a vivência do analisando, mas é sobretudo um mapeamento desta"(p.17).

A afirmação é importante para refletirmos sobre o engessamento da escrita que vemos ocorrer com frequência nos institutos de formação em psicanálise. A ilusão da fidedignidade entendida como tradução simultânea pode estar entre os fatores que inibem a produção dos relatos psicanalíticos.

 

Ainda no Cais

Rocha justifica e enfatiza o tempo das entrevistas preliminares como campo de investigação dos critérios de analisabilidade e definição da possibilidade de um dado analista empreender o processo psicanalítico com um dado paciente. Em outras palavras, às interrogações feitas ao candidato à análise corresponderiam perguntas que o analista se faria sobre seu lugar de analista em relação a determinado analisando.

Tendo sempre como norte a dupla singular analista-analisando, são discutidas, dentre outras, as noções de pedido de ajuda e demanda de análise, diagnóstico flutuante e divã temperado, balizas para o processo a ser iniciado. É na escuta das entrevistas preliminares que o analista poderá perceber as possibilidades do candidato à análise abrir-se para a construção de novos sentidos no que tange a seu sofrimento psíquico. A construção de um esboço diagnóstico nesse momento orientará as adaptações que porventura sejam necessárias no enquadre analítico. Incluído nessa etapa estará o desejo de analisar do analista, tributário de seu próprio processo analítico.

 

Soltando as âncoras

O livro de Fernando Rocha foi elaborado a partir de seminários ministrados em instituições psicanalíticas e em grupos de estudo. Acompanhando os seminários, verificamos que ali pelo segundo já embarcaram os analisandos presentes nas vinhetas clínicas e os autores que, a partir de Freud e a ele retornando em releituras iluminadoras, colaboram com o autor na apresentação dos conceitos do arcabouço psicanalítico, que vão sendo revisitados em uma integração teórico-clínica exemplar.

É dessa maneira que a apresentação do caso de "Monsieur M", e a eclosão de um ato falho (espada/escada) em uma de suas entrevistas preliminares, põe em evidência o conceito de retificação subjetiva, entendida como a mudança de posição do analisando, que ao se implicar na formação de seu sintoma, muda a relação com sua demanda e retifica seu lugar diante de seu sofrimento, sendo esta a mudança que inaugura sua entrada em análise (p.55). O conceito intuído por Freud, quando lança a Dora a pergunta sobre sua participação na desordem de que se queixa, é nomeado posteriormente pela releitura que lhe dá Lacan.

Essa forma de integrar a vivência clínica com a reflexão teórica de maneira clara e didática a cada seminário permite-nos tomar contato com temas seminais da psicanálise, como a transferência, a castração, experiência de satisfação, recalque, ego ideal e ideal de ego, as organizações psíquicas e suas consequências no manejo clínico, as teorias pulsionais etc. A transmissão da psicanálise ancorada nas leituras de Freud e dos autores pós-freudianos, depuradas ao longo da sólida experiência profissional do autor, traduz-se em escrita a um só tempo densa e simples, propiciando uma leitura extremamente prazerosa.

Acompanhar a viagem que Fernando Rocha empreende com seus analisandos, tendo como ponto de partida as entrevistas preliminares, possibilita inúmeras reflexões sobre o fazer psicanalítico, seus impasses, sua potência.

Se pensarmos as resistências que a contemporaneidade oferece à psicanálise com seus atributos de eficácia, imediatismo, satisfação plena, o tudo poder, tudo ser - fenômenos sobre os quais Bauman, citado por Rocha, se debruçou em seu livro O mal-estar na pós modernidade (p.161-162) -, poderíamos afirmar que a dimensão ética da psicanálise instaura-se quando caminha na contramão da lógica do gozo ilimitado, expressão da pulsão de morte nos tempos atuais.

Ao desenhar o enquadre analítico como representante da Lei que interdita, limita e propicia o acesso ao simbólico, Rocha sublinha o caráter estruturante do desejo, que permite representar ao invés de agir, e que discrimina o agir concreto do agir simbólico. "Somente quando nos encontramos interditados, limitados é que podemos aspirar ao ilimitado" (p.67), fala-nos o autor, enfatizando o encontro do sujeito com sua incompletude, "submetido à temporalidade que o circunscreve em sua dimensão finita" (p.69).

 

Em que porto ancoramos?

Guardando a especificidade de cada viagem, as tormentas, as calmarias e as tantas surpresas que enfrentam analista e analisando, chegar ao término do percurso analítico, para Fernando Rocha, diz respeito a um aspecto formal, pois leva em conta que a experiência analítica uma vez introjetada é uma aventura interminável. Uma análise que termina encontrará o sujeito cuidando de seu desejo, bem acompanhado de si e dos novos laços que construirá em suas novas viagens.

 

 

Correspondência:
Sandra Maria de M. Gonzaga Silva
Praia de Botafogo, 210 sala 1102
Botafogo, Rio de Janeiro, RJ
sagon@globo.com

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