Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012
ARTIGOS TEMÁTICOS: PRIMEIRAS ENTREVISTAS
Equipe Editorial da Revista Brasileira de Psicanálise
Na intimidade da cumplicidade masculina, que só se realiza plenamente na ausência das mulheres, em nossa segunda conversa não constou a menor alusão à literatura. Só falamos de lembranças de sua juventude. Dessa vez, foi uma verdadeira confissão psicanalítica apenas velada (Green, 1994, p. 296).
O texto acima refere-se a um segundo encontro entre André Green e Jorge Luiz Borges, quando em 1974 o psicanalista esteve em Buenos Aires e fez uma visita ao poeta. O primeiro encontro havia ocorrido uma semana antes, e ao final dele, Borges convidou Green a voltar e este, com alegria, aceitou o convite.
De que se tratou no primeiro encontro? Que palavras, atos, silêncios abriram caminho para que esses dois homens criassem a cumplicidade que permitiu e propiciou um segundo encontro?
Em um primeiro encontro entre um psicanalista e alguém que o procura para realizar uma análise, que terrenos são explorados? O que pode surgir entre essas duas pessoas para que possam desejar voltar a se encontrar?
É a primeira entrevista já psicanálise?
No início dos anos 1950, Paula Heimann, ouvindo as associações de seus pacientes, perguntou-se: "Quem está falando? Com quem esta pessoa está falando? Sobre o quê está falando e por que agora?". Ao levantar essas questões, introduz a ideia do processo transfe-rencial implicar diferentes sujeitos, que exigem diferentes escutas. Algum tempo depois, no meio dos anos 1950, Margaret Little acrescenta à encenação da transferência a contratrans-ferência do analista, sugerindo que ele também se perguntasse o que sentia e por que sentia aquilo naquele momento (Bollas, 1992).
Estas perguntas, importantes durante todo o processo analítico, são já necessárias desde o primeiro contato entre o analista e seu potencial paciente.
Encontro analítico inicial, primeiras entrevistas, entrevistas preliminares. Falamos aqui do momento inaugural do par analítico (que pode se confirmar nessa possibilidade, ou em inúmeras outras formas de encontro), momento que se instaura já antes do telefone tocar e envolve seus participantes como elementos da configuração de um campo transferencial.
A essas indagações, introduzimos outras: como cada analista pensa as primeiras entrevistas? Qual o lugar que esses encontros ocupam em sua maneira de pensar a psicanálise?
Cada par cria seus próprios caminhos; no entanto, o psicanalista, com sua história pessoal e sua formação, oferece uma trilha inicial e pessoal que irá balizar a chegada do "outro". Um fragmento do desejo do paciente impõe-se à escuta do analista, e sobre este traço convergem outros, que explicitam uma forma de escrita que ganha, ao olhar do analista, um sentido, e que pode ou não ir em direção a um processo analítico.
"Faço análise - diz Winnicott (1962/1983, p. 152) - porque é o que o paciente necessita. Se o paciente não necessita de análise, então faço outra coisa".
Em resposta à pergunta: em análise, quanto se deve fazer? Winnicott (1962/1983, p. 152) coloca outra: em análise, quão pouco é necessário para ser feito? Isso porque, para ele, não há sentido em uma análise efetuada sob a exigência de ser uma análise. E apresenta-se como alguém que em vez de realizar uma análise padrão, trabalha como um analista que se ajusta às necessidades de cada paciente.
Ogden (2002) relembra que esse "outro" que chega incita no analista sentimentos que não são lineares. Diz ele:
Tal como o paciente tem o (fantasiado) analista antes da primeira sessão, o analista também tem um paciente (mais acuradamente, ele tem muitos pacientes) na sua própria mente antes do encontro inicial. [...] Para ambos, analista e paciente, o perigo colocado pelo primeiro encontro nasce em grande parte da perspectiva de um encontro vigoroso com o próprio mundo interno e o mundo interno de outra pessoa (p. 3).
Propõe, então, que um drama nunca antes imaginado seja criado pela dupla, que já se esboça na tensão que surge no primeiro encontro; tensão que cabe ao analista sustentar, para que aquele que chega possa ouvir sua própria voz. Deste modo, para ele a interação do encontro inicial não envolve avaliação, mas um esforço conjunto para gerar significado analítico.
Seguindo esta linha, lemos em Bion (2000) que no momento da entrevista cabe ao analista perguntar-se que tipo de sombra esta pessoa que me procura projeta sobre meu espírito? Que língua ela fala que, como analista, devo aprender a decifrar e traduzir? Este processo ativa o vínculo K e movimentos contraditórios nos registros de L ou H, e assim poderá o contato ser tedioso, vibrante, explosivo ou mortífero.
Herrmann (2003) percebe de maneira diversa o momento inicial. Como afirma:
Consideremos que ele (o paciente) conta quem é, seja lá o que diga, e que também conta quem somos para ele. Mais ou menos como a clave de uma partitura musical, suas primeiras palavras fornecem o registro no qual havemos de ler a sequência, quase sempre (p. 57).
Sugere ele:
[...] a entrevista inicial não deveria fazer com que ninguém se sentisse louco. Se possível, haveria de ser uma conversa amena, de caráter cotidiano, inversamente proporcional à magnitude da estranheza sobre que versa e à quantidade de angústia que já deve ter despertado, antes mesmo de se dar. Um bom lema seria: o entrevistador despercebido (p. 63).
Em "Sobre o início do tratamento" (1913/1969), Freud esclarece que em um primeiro momento solicita ao possível paciente um tempo de experiência de duas a três semanas, para que possa conhecê-lo e verificar se tem condições de iniciar o tratamento. E acrescenta: "Este experimento preliminar, contudo, é, ele próprio, o início de uma psicanálise e deve conformasse às regras desta" (p. 165).
Podemos pensar que assim procedendo, Freud, além de verificar se o paciente tem condições para ser analisado, dá a ele a chance de verificar o que exatamente é a regra básica, e o que pode ser a psicanálise, a partir da própria experiência.
De fato, Quinodoz aponta a importância de o analista ousar ser criativo no enquadre analítico, de modo a saber ser, desde o primeiro encontro, analista. Cabe a ele despertar no paciente o desejo de realizar o que não conhece, uma vez que só é possível ao paciente descobrir o que é análise se sentir internamente o que pode acontecer entre analista e analisando no processo analítico. Pois, diz a autora, se esperarmos que cheguem até nós pacientes "com boas indicações de análise, corremos o risco de, realmente, nos tornarmos analistas sem pacientes" (Quinodoz, 2002, p. 414).
Vemos que os diversos autores entendem que o processo analítico acontece já a partir, ou até antes, desse primeiro encontro, por meio das fantasias dos dois seres nele envolvidos. Mas são muitas as indagações que esse momento suscita, o que nos leva a abrir um espaço para a discussão da psicanálise, a partir do que chamamos de primeiras entrevistas.
Assim como no primeiro encontro de Green com Borges, no qual o poeta fala de poemas, seus e de outros poetas, e depois da mãe que está à morte, de sua origem anglo-saxônica, e que faz Green vê-lo como um velho Édipo cego que tateia os livros em sua biblioteca, e em sua escuta, naturalmente psicanalítica, Green se pergunta: "Que percurso fizéramos em apenas alguns minutos? Teria sido eu, o psicanalista, que havia levado Borges inconscientemente a me falar por associações (quase livres) da mãe morta viva?"... Uma transferência havia sido efetuada silenciosamente.
Teria sido esta leitura psicanalítica que Green elabora mentalmente, sem dizer dela uma palavra ao poeta, mas que de alguma forma o alcança, que o faz convidar Green para um segundo encontro. Este, sim, uma velada confissão psicanalítica?
A RBP convida os colegas a um encontro e a uma conversa sobre o tema da primeira entrevista que possa, em um diálogo com os leitores, gerar ideias que promovam o desejo de outros encontros.
Referências
Bion, W. (2000). Autour de léntretien préliminaire. Revue Française Psychanalise, 64(4),1217-1229. [ Links ]
Bollas, C. (1992). A sombra do objeto. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Freud, S. (1969). Sobre o início do tratamento. In S. Freud, Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1913). [ Links ]
Green, A. (1994). O progresso e o esquecimento. In A. Green, O desligamento (pp. 291-395). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Herrmann, F. (2003). Diagnóstico. In F. Herrmann, Clínica psicanalítica: a arte da interpretação (pp. 51-64). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Ogden, T. H. (2002). O encontro analítico inicial. São Paulo: SBPSP. [Tradução para uso exclusivo dos Membros da SBPSP e Membros Filiados ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da SBPSP. Texto original: The primitive edge of experience (pp. 169-194). New Jersey: Jason Aronson, 1989] [ Links ].
Quinidoz, D. (2002). As entrevistas preliminares ou como despertar o desejo de fazer uma análise em um paciente que não sabe em que isso consiste. Revista Psicanálise, SBPPA, 4(2),413-434. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983). Os objetivos do tratamento psicanalítico. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965[1962] [ Links ]).