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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo jan./mar. 2013

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Bernardo Tanis

Editor

 

 

Medo

Do que se tem medo? Da morte foi sempre a resposta. E de todos os males que possam antecipá-la, recordada aos mortais... De todos os entes reais e imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder de vida e de extermínio: da natureza desacorrentada, da cólera de Deus, da manha do Diabo, da crueldade do tirano, da multidão enfurecida... Da loucura que rouba a placidez... Do feminino, do mistério da fecundidade e da maternidade... Temos medo do esquecimento e de jamais poder deslembrar... Temos medo do ódio que devora e da cólera que corrói, mas também da resignação sem esperança, da dor sem fim e da desonra... (M. Chauí, 1985).

Permeando todas as esferas da nossa existência, o medo se nutre da nossa condição de desamparo, Hilflosichkeit, que comporta, como tematizado por Freud em Mal-estar na civilização, não apenas a condição de imaturidade da cria humana ao nascer, matriz fundante do desejo alienante face ao amor do outro, mas também a debilidade do eu face à intensidade das pulsões.

A escolha do medo como núcleo temático visa estimular a reflexão em torno de alguns dos assuntos que serão abordados no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, que terá lugar em Campo Grande, cujo tema é: Ser contemporâneo: medo e paixão.

Iniciamos este número com a entrevista concedida à RBP por Jaime Ginzburg. Professor de literatura e pesquisador que nos coloca, a partir da literatura de testemunho, perante a questão da possibilidade da representação vinculada a situações de destruição coletiva e individual. Até que ponto experiências de natureza devastadora podem se converter em linguagem, em narrativa compartilhada nos contextos dominados pelo impacto do trauma e da violência? Para Ginzburg, o medo, ao se fazer presente como elemento constitutivo destas narrativas, destaca-se pela introdução da tensão levando à quebra da sintaxe e do encadeamento do pensamento; uma invasão da dimensão corporal e do processo primário. Na sequência, sua proposta de uma "antropologia do medo" é um convite para que nós, psicanalistas, possamos nos aprofundar a respeito da natureza do pacto social na contemporaneidade. O diálogo com as teses de Totem e tabu (1912-13/1996), comemorando os cem anos de sua publicação, se faz imperativo. Abrem-se as perspectivas de uma interlocução privilegiada para a clínica atual com os elementos masoquistas do que chama de "cultura sacrificial".

Agradecemos muito especialmente ao escritor Mia Couto, pelo belo texto gentilmente cedido para nossa publicação. Couto denuncia o sentimento criado de que: "a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos - como cidadãos e como espécie - em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa". A lucidez de sua análise e de suas metáforas revela a fragilidade ilusionista das fáceis representações midiáticas, e nos convida a não termos medo de avançar em nossa reflexão.

Ignacio Gerber coloca o medo da perda do amor como articulação central na configuração dos desdobramentos subjetivos do medo e suas representações. Nos fala do medo no período medieval, lembrando o clássico trabalho de Jean Delumeau, História do medo no ocidente. Dedica especial atenção ao intenso medo da exclusão, e sustenta a tese de que o ódio e a violência têm raízes na ameaça à integridade e ao medo.

O trabalho de Camila Salles Gonçalves mergulha no amago da experiência transfe-rencial-contratransferencial na qual o medo será vivenciado. Winnicott, Freud, Pontalis, Dayan e Herrmann são convocados pelo potencial de instrumentalizar a reflexão em torno da própria experiência clínica da autora. Nada melhor que deixar Camila falar: "A análise, na transferência, traria a nós, analistas, a experiência, totalmente ou até certo ponto, intrans-missível, com outro, que nos faria migrar".

A infância é cenário e origem de muitos de nossos medos. Das cantigas de acalanto, passando pelas ameaças das "babás" vitorianas, aos contos infantis, revelam-se angústias e ameaças inerentes à dinâmica da constelação edípica que dá forma a nossa subjetividade. Dois trabalhos abordam de modo complementar e com extrema riqueza este panorama. O primeiro, de Maria Thereza da Barros França, apresenta, a partir de sua vasta experiência clinica em psicanálise e psiquiatria, um painel dos afetos de pânico, terror e medo na infância e sua presença na clínica. O segundo, de René Diatkine, trata do lugar e função do conto infantil, assunto hoje bastante estudado, no qual são tematizados diferentes aspectos da angústia e medos infantis em sua articulação narrativa. Publicado originalmente em 1983, estamos republicando por sua relevância temática e em homenagem a sua importante contribuição na extensão institucional da clínica com crianças, como descrito na esclarecedora introdução de Claude Avram.

Objeto de acalorados debates e controvérsias, o estatuto da teoria em psicanálise permanece sempre aberto a redefinições. Para o conhecimento produzido pela psicanálise já foram propostas versões de sistematização empirista e outras de cunho mais idealista, mas a dimensão pulsional da experiência psicanalítica e seu aspecto transformador da subjetividade do analisando e analista recusa uma fácil domesticação na classificação geral das ciências. Examinando com rigor o problema, sem recorrer a reducionismos mas partindo da complexidade da questão, Thamy Ayouch coloca para si o desfio de investigar a natureza da teorização em psicanálise. Concede à metáfora um lugar central e daí deriva um serie de considerações importantes, que visam manter sempre em funcionamento a natureza crítica do conhecimento psicanalítico.

Publicamos, na seção de intercâmbio, um instigante trabalho do analista argentino Luis Kancyper, no qual procura discriminar aspectos distintos e complementares das transferências e contratransferências narcisista, edípica, fraterna e a amizade de transferência-contratransferência que, desde sua perspectiva, permitem obter um entendimento mais abrangente da multifacetária situação analítica com crianças e adolescentes.

Na seção artigos, apresentamos os trabalhos de Thaís Helena Thomé Marques, Celia Fix Korbivcher, Hevellyn Ciely da Silva Corrêa e Mauricio Rodrigues de Souza, Marion Minerbo e Abigail Betbedé, e Alessandra Affortunati Martins Parente. Embora de uma diversidade temática muito grande, percebe-se nestes trabalhos um esforço dos autores na apresentação do exercício de um pensamento clínico vivo e criativo, que busca ir além do já conhecido, ampliando as fronteiras da reflexão psicanalítica.

Antes de nos despedir, gostaríamos de anunciar com muita satisfação a criação da primeira edição do Prêmio Revista Brasileira de Psicanálise. A premiação ocorrerá a partir do XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise e terá continuidade a cada futuro congresso dessa instituição. O tema para os trabalhos concorrentes nesta edição é: "Os afetos e seus destinos na clínica atual". Convidamos e incentivamos a todos a consultar o site do Congresso, no qual se encontram divulgadas as normas para participação.

Como sempre, não deixem de ler nossas resenhas e consultar os lançamentos.

A todos, uma boa leitura.

 

Referências

Chauí, M. (1985). Sobre o medo. In A. Novaes (org.), Os sentidos da paixão. São Paulo: Schwartz.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas. (Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912-13).         [ Links ]

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