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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.1 São Paulo jan./mar. 2013

 

INTERFACE

 

Método e loucura da teorização em psicanálise: a busca de figurabilidade

 

Method and madness of theorising in psychoanalysis: a quest for figurability

 

Método y locura de la teorización en el psicoanálisis: la búsqueda de la figurabilidad

 

 

Thamy Ayouch

Psicanalista, Professor de Psicopatologia Clínica na Universidade Lille 3 - Lettres et Sciences Humaines, Professor visitante na Universidade de São Paulo USP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a examinar o encontro, na escrita teórica, das lógicas do conhecimento e do desejo. Se a psicanálise pretende revelar o substrato pulsional de qualquer conhecimento e as implicações metafísicas, inclusive patológicas, de qualquer teorização, como isentaria desta crítica a sua própria construção teórica? Trata-se de considerar a postura discursiva na teoria analítica, abordando a sua crítica do conhecimento e inscrevendo a sua especificidade na enunciação. O pleno valor da enunciação surgirá através da metáfora. Numa isotopia entre cura e escrita analítica, a metáfora permitirá vincular a teorização, a ficção e a prática analítica.

Palavras-chave: teorização; afetividade; loucura; método; discurso psicanalítico; metáfora.


ABSTRACT

This article aims to examine how the logics of knowledge and desire are intertwined in theoretical writing. If psychoanalysis intends to reveal the drives underlying every perspective of knowledge and the metaphysical or even pathological dimension of the very act of theorisation, how can this exact theoretical construction be free of this critique? This paper gives an account of the discourse position of psychoanalytical theory, dealing with its critique of knowledge and inscribing its specificity in enunciation. The value of enunciation will appear through the metaphor. Through a constant parallel between cure and analytical writing, the metaphor enables the articulation of theorisation, fiction and analytical practice.

Keywords: theorisation; affectivity; madness; method; psychoanalytical discourse; metaphor.


RESUMEN

Este artículo se propone examinar el encuentro, en la teoría escrita, de las lógicas del conocimiento y del deseo. Si el psicoanálisis pretende revelar el substrato pulsional de cualquier conocimiento, y las implicaciones metafísicas, e incluso patológicas de cualquier teorización, ¿cómo podría exentar de esta crítica su propia construcción teórica? Se trata de explicar la postura discursiva en la teoría analítica, abordando su crítica del conocimiento e inscribiendo su especificidad en la enunciación. El pleno valor de la enunciación surgirá a través de la metáfora. En una isotopía entre la cura y la escritura analítica, la metáfora permitirá vincular la teoría, la ficción y la práctica analítica.

Palabras clave: teorización; afectividad; locura; método; discurso psicoanalítico; metáfora.


 

 

"Como um Swedenborg pode ser possível?" (Valéry, 1957, p. 878), perguntava Paul Valéry em seu texto sobre o cientista, teólogo e filósofo sueco. Como dar conta do fato de que o autor do sistema decimal monetário ou da primeira teorização da formação nebulosa do sistema solar entrasse, aos 56 anos, numa fase espiritual, na qual conversava com anjos, espíritos, Jesus, e visitava o Paraíso e o Inferno?

Filósofo, matemático e físico, conhecido por sua teoria da gravidade e pelos princípios da inércia e das ações recíprocas, Newton realizou, paralelamente, uma exegese da Bíblia para descobrir as leis divinas ocultas no Universo. No seu Tratado sobre o Apocalipse, determinou cientificamente a data do Dia do Juízo: 2060.

Mais recentemente, Fechner, conhecido por ter introduzido a medida na psicologia, numa relação matemática entre excitação e sensação, tentou, em 1825, estabelecer um vínculo entre o mundo científico e o mundo espiritual, escrevendo uma Anatomia comparada dos anjos.

Como assevera Maurizio Balsamo (2006), para estes três pensadores, o dispositivo científico vem acompanhado de uma construção louca, que não o perturba, mas radicaliza a paixão de conhecer e teorizar. Caberia aqui reverter a fórmula de Polonius, que perante a fúria fria de Hamlet, exclamava: "Ainda que isto seja loucura, há método nela" ("Though this be madness, yet there is method in't") (Shakespeare, 1587/1914, ato ii, cena ii) - "Porque isto é um método", diríamos, "há loucura nele".

Por ter herdado a interrogação nietzchiana do desejo na base do conhecimento, Freud instituiu a psicanálise numa posição particular no que diz respeito ao conhecimento e à teorização. Desvelando a pulsão de saber como sublimação da pulsão de domínio, a psicanálise revela o fundamento pulsional de todo conhecimento e profere uma crítica generalizada das implicações metafísicas de toda teorização. Porém, com que legitimidade os teorizadores da psicanálise podem criticar a ciência ou a filosofia, e em que medida a sua própria teorização pode se isentar desta sua crítica? Em outros termos, como funciona a teorização psicanalítica e como escapa (ou não) do deslize pulsional que ela acusa nas outras teorias?

Estas questões implicam tanto a clínica como a teoria psicanalítica. Para abordá-las, evocarei primeiro a posição de Freud sobre a filosofia como doutrina representativa do processo de conhecimento e teorização. Tentarei, a seguir, analisar a postura discursiva singular da psicanálise, para finalmente abordar o valor central da metáfora na teorização analítica.

 

1. A crítica do saber: o paradigma da filosofia

A atitude de Freud com respeito à filosofia é ambivalente. Se a princípio ele revela uma atração por esta disciplina - nas cartas a Silberstein (Freud, 1990) ou a Fliess (Freud, 1956) - ou designa as congruências entre a psicanálise e as perspectivas de Nietzsche ou Schopenhauer (Freud, 1904/1978), mais tarde ele rejeita a filosofia com vigor na correspondência com Jones (Paskauskas, 1998) ou com Binswanger (Fichtner, 1995). Os sistemas filosóficos são considerados como metafísicos: são projeções de percepções endopsíquicas (Freud, 1976), que não interrogam a sua própria vontade de saber. A psicanálise, na perspectiva freudiana, pretende dirigir a atenção para as motivações inconscientes de toda construção filosófica, que aparece então como sintoma do filósofo.

Além disso, Freud estabelece uma aproximação entre a filosofia e certas características da psicose. Em Totem e tabu (Freud, 1913/1923), o delírio paranoico é considerado como uma "caricatura do sistema filosófico" (pp. 114-115). No texto inaugural sobre o narcisismo (Freud, 1914/1969), a filosofia é comparada às tendências paranoicas de construir sistemas especulativos. Em "O inconsciente", Freud (1915/1968) compara o delírio esquizofrênico à filosofia em seu uso da linguagem, que faz prevalecer as representações de palavras sobre as representações de coisas (pp. 120-121). No texto "A questão de uma Weltanschauung" (Freud, 1932/1984, pp. 214-215), afirma que a filosofia conservou manifestações do animismo: ela sobre-estima a onipotência do pensamento para dar uma visão unitária do mundo, uma Weltanschauung. A psicanálise, no entanto, não é um sistema fechado como a filosofia, separado da experiência, mas uma ciência empírica (Freud, 1923/1985, p. 72).

Cabe então à psicanálise dirigir uma crítica à filosofia (Freud, 1913/1984): só a psicanálise dá uma "psicografia" da personalidade do trabalhador científico e permite desvelar a motivação subjetiva e individual das doutrinas filosóficas que procedem supostamente de um trabalho lógico e imparcial. Aqui, acredita-se que a originalidade da experiência analítica da cura permita alcançar uma relação diferente com o conhecimento.

Entretanto, se a crítica da construção sistematizadora da filosofia pretende identificar a afetividade ou a pulsionalidade na base da teorização, esta crítica há de ser estendida à própria psicanálise. Surge, assim, a questão do lugar de enunciação do discurso psicanalítico: de onde pode ser formulado um discurso criticando a motivação inconsciente na base da racionalização e como isentar desta crítica o próprio discurso que a formula?

Trata-se de interrogar o lugar do saber. Formular um discurso do saber oculta a motivação pulsional deste saber, e revela, parafraseando Nietzsche, uma vontade de potência. Como então o discurso crítico, que aponta esta vontade de potência, evita proceder, ele mesmo, da sua própria vontade de potência? O que legitima a psicanálise a dirigir esta crítica aos outros discursos, sem que ela caia na mesma armadilha? Ou seja, como o discurso psi-canalítico evita ser um discurso do saber? Para tentar responder a estas perguntas, é preciso examinar a relação da psicanálise com o saber.

 

2. Além do conhecimento

O conhecimento teórico

A perspectiva freudiana introduz uma verdadeira relativização do conhecimento. Por um lado, a consciência dirige sua atenção para a vida psíquica apenas secundariamente, e as primeiras informações de natureza endopsíquica estão relacionadas ao prazer-desprazer, isto é, ao afeto. Por outro lado, o desejo de saber voltado para os objetos exteriores se vincula à curiosidade sexual e às teorias sexuais infantis (Freud, 1908/1969). O inconsciente é irredutivelmente inconhecível (Freud, 1915/1968); a vida inconsciente se revela somente através de falhas e faltas da vida consciente - somente a partir desta.

Assim, a revolução epistemológica do método psicanalítico consiste precisamente em anular o poder da consciência, desfazendo a equação de psíquico e consciente. A lógica prevalente no psiquismo - lógica dos processos primários que ignoram a contradição, a tem-poralidade, a finitude, a morte e o princípio de realidade - não pode ser apreendida pelos processos secundários. As consequências são radicais: há uma lógica pulsional por trás de qualquer manifestação da razão, que não pode ser exaustivamente esclarecida. O conhecimento se mostra, então, dependente de uma pulsionalidade que a crítica psicanalítica tenta tematizar.

 

Cura e conhecimento

A cura reproduz esta recusa do conhecimento. A elaboração não consiste em um conhecimento pleno e positivo de representações anteriormente inconscientes, mas na inclusão de moções afetivas numa vida afetiva. É uma reescritura que visa, mais do que à coerência ou ao resgate das representações, a uma ligação afetiva.

Se isso já aparece no uso do método catártico, o objetivo da análise não é tematizar os conflitos, mas reconstruir uma continuidade. Trata-se de restaurar a capacidade de agir e gozar (Freud, 1916/1974, p. 430) e permitir uma mobilidade dos investimentos psíquicos, que não vem acompanhada, necessariamente, de uma representação conhecedora destes investimentos. Na elaboração das resistências, substituindo-se a impulsão à lembrança por uma compulsão à repetição na transferência (Freud, 1914/1953), efetua-se um trabalho sobre a afetividade distinto de qualquer forma de conhecimento.

Se a perspectiva do conhecimento é descartada tanto na teoria quanto na cura, como pode, então, a psicanálise dar conta de seu objeto, sem que ela mesma resvale nos excessos do conhecimento aqui denunciados? A psicanálise não participa da constituição dos saberes positivos, mas funciona como a sua inversão crítica e introduz o princípio de uma suspeita crítica do conhecimento psicológico. Portanto, como fazer com que o discurso da psicanálise, como discurso que articula processos secundários, possa dar conta de seu objeto, sem traí-lo nem ser ininteligível?

A talking cure parece convocar o discurso tanto nas suas modalidades técnicas como na sua teorização, e esta dimensão discursiva, linguística, é central na postura da teorização analítica. Tentemos, assim, apreender esta questão de como o discurso psicanalítico evita ser um discurso do saber - sem cair na inefabilidade da loucura - através de um estudo da linguagem teórica.

 

3. Nomeação, enunciação e discursos

Segundo Assoun (1993), Freud retomou uma nomeação da dimensão sexual do inconsciente que tinha ficado suspensa. "Segredos de alcova", dissera Breuer; "coisa genital", falara Charcot; "impotência do marido", afirmara Chrobak (apud Assoun, 1993, pp. 87-91), representações de palavra que remetiam a um inominável, apontado pelo inconsciente psicanalítico. O objeto epistemológico da psicanálise consiste, portanto, nesta designação linguística. Mas será este objeto reduzido à mera nominação? Há, obviamente, outras evidências da coisa sexual, além da sua nomeação: o discurso neurótico na talking cure apresenta uma clínica intermediada pela linguagem.

Na definição da psicanálise como busca de um objeto inacessível diretamente, em que a abordagem, o método do tratamento e o tipo de cientificidade estão fusionados, a teorização e o objeto teorizado surgem juntos. O objeto da psicanálise, constituído em objeto teorizado, é primeiro um objeto do discurso.

De que perspectiva discursiva se trata? A significância de um discurso, na psicanálise, não jaz nos diversos sentidos articulados pelos seus conteúdos, mas na sua origem e na sua direção: "quem fala", pergunta-se, "e a quem está dirigida esta fala"? Interrogar-se, não a respeito do enunciado, mas do lugar de enunciação do discurso é o que define a psicanálise como um discurso não sobre o conhecimento, mas sobre a verdade, como insiste Lacan (1965). À postura de conhecimento da ciência, constituída através de um relacionamento do sujeito com o mundo, Lacan opõe a postura do/a psicanalista, introduzindo a questão do desejo e do desejo de conhecer (libido sciendi). Ele define, contra este objeto do conhecimento, o objeto de todo desejo, o objeto a, localizável na fórmula do fantasma $ à a (Lacan, 1965/1966). A psicanálise visa a ser uma "ciência da verdade", que se exprime no sujeito do Cogito, sujeito subvertido, dividido entre enunciado e enunciação: ele pensa onde não está e está onde não pensa (Lacan, 1957/1966).

A psicanálise visa a um outro tipo de saber, saber da repetição que o/a analisando/a opera na busca do gozo, saber dependendo de um "dizer", mas que "fala só", num "meio-dizer", e procede do inconsciente (Lacan, 1991). O que mais importa no processo de teorização analítica é, mais do que o conteúdo do discurso, o lugar do qual ele é emitido: a enunciação. Daí o interesse, para Lacan, em recorrer a matemas, quase esvaziados de qualquer conteúdo, para apontar a especificidade do discurso analítico. O intuito é achar uma estrutura do discurso além da palavra, que permita dar conta de vários discursos e diferenciar deles o discurso analítico, garantindo-lhe assim uma postura enunciativa que escape à ameaça pulsional que caracteriza os outros discursos.

Para explicitar quatro modelos discursivos básicos, Lacan introduz um jogo dialético entre lugares, posições e funções. Quatro significantes, o significante mestre (S1), o saber (S2), o sujeito ($) e o gozo (a), ocupam alternativamente os lugares do desejo, da verdade, do Outro e da perda.

O matema comum aos quatro discursos é:

Acima da barra, o desejo corresponde à posição do agente, causa eficiente, que responde à demanda do Outro. Trata-se do que o agente acredita estar fazendo. Embaixo da barra aparece a verdade no seu vínculo com a perda como "plus-de-gozo": é "o que não é sabido, mas é indispensável para a operação" (Lacan, 1991, p. 121).

Pela sua estrutura, ...

... o discurso do mestre esconde a divisão do sujeito: a sua verdade consiste nesta divisão. Ele produz, como resultado não consciente, o objeto a, mas exclui o fantasma (Lacan, 1991, p. 124). A sua verdade é um saber clivado: "saber sem cabeça [...] que existe, mas ninguém compreende nada dele" (Lacan, 1991, p. 102).

O discurso da universidade produz também a divisão do sujeito e a sua submissão ao discurso do mestre. O discurso do/a histérico/a, porém, almeja interrogar o saber e revela, assim, o objeto a.

É o discurso do/a analista que está encarregado de revelar a verdade do saber. Contraponto exato do discurso do mestre, ele recebe este matema:

Deste modo, o discurso do/a analista coloca a questão do objetivo do saber. O seu agente é o objeto a; ele recolhe o discurso do inconsciente e o traduz na sua forma de "meio-dizer".

Se o/a analista não fala como o mestre, mas num "meio-dizer", cabe apontar, ainda, que o discurso que tenta apreender as modalidades de sua própria produção, o discurso de teorização da psicanálise, não pode obedecer, ele também, às leis estruturais do discurso do mestre ou do discurso da ciência. O sujeito do inconsciente, visado pela teorização psicanalítica, é bem distinto do sujeito da ciência. Porém, na instituição da psicanálise como corpus teórico, não é só este sujeito do inconsciente que teoriza. Se fosse o caso, a teoria viraria forma-sentido, tradução de um discurso de oráculo que se caracterizaria apenas pelo hermetismo. Sendo o agente do discurso do/a analista o objeto a, embora o teorizador da psicanálise tenha que se abrir a este discurso, ele o reorganiza no momento de teorizar, num movimento de organização racional. Sem isso, a transmissão da psicanálise como conteúdo teórico ficaria comprometida ou reduzida ao rito iniciático de uma prática independente de qualquer teoria.

Aparece de novo aqui a questão do vínculo irredutível da teorização da análise com o saber. Uma teorização que pretende dar conta do que escapa ao discurso do saber terá que desafiar todas as regras deste discurso? Terá o discurso do/a analista que adotar a forma "incompreensível" da verdade? Abrir-se-ia, assim, a possibilidade para muitos excessos esotéricos, herméticos, iniciáticos ou meramente psitacistas, reproduzindo um discurso opaco e umas fórmulas não entendidas por serem incompreensíveis.

Obviamente, o discurso teórico analítico não pode obedecer às leis racionais do discurso do mestre ou da universidade e pretender ser transparente e evidente. Porém, acentuar só o "meio-dizer" conduz à mera repetição de um discurso de mestre, cuja escuridão apenas mascara seu obscurantismo.

Além disso, trata-se aqui também do uso político desta classificação dos discursos. Definir o próprio discurso como "discurso do/a psicanalista" e os outros discursos como discursos do mestre corresponde, às vezes, a uma recusa em aplicar a crítica do discurso do mestre à própria psicanálise. Um exemplo disso seria a posição de alguns psicanalistas franceses da Ecole de la Cause Freudienne, que negando as mudanças sociais atuais nos vínculos de aliança e filiação, se encontram numa polêmica com o dito "movimento gay" (unitariamente e indistintamente identificado por eles). Eles veem nas reivindicações das comunidades lgbti (Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender and Intersex) a aparição de um novo significante mestre, que se oporia a qualquer perspectiva almejada pela psicanálise. Contudo, a designação do discurso ou da postura do outro como busca do significante mestre procede de um verdadeiro dispositivo de poder, permitindo reduzir ao silêncio este discurso em nome de uma autêntica posição psicanalítica. Qualificar o discurso do outro como discurso do mestre não isenta de uma leitura psicanalítica o próprio discurso psicanalítico que fala aqui. Ironicamente, ao se reivindicar uma postura lacaniana de crítica do discurso do mestre, institui-se o discurso lacaniano como discurso de um mestre: Jacques Lacan, Jacques-Alain Miller, ou outros gurus.

Por conseguinte, nesta busca de uma especificidade do discurso analítico, é preciso não esvaziar totalmente o conteúdo teórico, bem como não substituí-lo apenas por fórmulas meramente formais. Continuemos a nossa busca, colocando, de novo, a mesma interrogação: que outra forma de linguagem pode servir ao discurso da psicanálise, evitando o duplo risco de engessá-lo, como um discurso da razão, ou deixá-lo sem voz, como um discurso da loucura?

Precisa-se, talvez, sair da primazia ontológica da linguagem: embora a linguagem preceda e produza o inconsciente, este não se reduz à linguagem. Em outros termos, a enun-ciação não remete só à estrutura linguística que a produz, e precisamente por isso ela se distingue do enunciado. Trata-se, então, de implicar uma corporeidade, além da materialidade do significante só, por mais que esta corporeidade convoque um grau de imaginário, uma vez que nunca se pode sair dele. Esta corporeidade e a encarnação da linguagem aparecem, a nosso ver, na metáfora.

 

5. A metáfora: entre teoria e loucura

A teoria recebe vários estatutos na psicanálise:

♦ ela apresenta uma crítica do modo de conhecimento e da pulsionalidade no fundamento do conhecimento;

♦ pode reivindicar um estatuto hipotético e, inclusive, fictício: é a "bruxa metapsicolo-gia" (Freud, 1915/1968) e as suas fantasmatizações;

♦ através dos escritos técnicos, a teoria psicanalítica produz um saber "pragmático", técnico, característico dos estudos de casos e da direção da cura.

Estes três níveis (crítica do conhecimento, ficção teórica e saber técnico) são vinculados de dois em dois através de uma concepção particular da metáfora.

A metáfora funciona como operador daquilo que nomeio "figurabilidade do afeto". Este é um processo fundamental, a partir do qual pode ser proposta uma releitura da sessão analítica e, por isotopia entre a clínica e a teoria, também da teorização. A noção de "figurabilidade do afeto" articula a questão do que passa do corpo à psique, em função das estruturações psíquicas; sugere que todo movimento de elaboração implica primordialmente um destino afetal1. Mais importante do que a ideia (Vorstellung), nesta passagem simbolizadora do soma à psique, o encaminhamento do afeto (Affekt) é central. Há vários modos de o afeto efetuar esta passagem, cada um implicando um destino diferente para a ideia que acompanha o afeto, desde o retorno do recalque mascarado (através de mecanismos de defesa) até o acting out (ainda relativamente simbolizador) ou a passagem ao ato (sem simbolização nenhuma, em organizações psíquicas não neuróticas, que não recorreram a um recalque prévio).

Não definiria esta busca de figurabilidade como representação, Vorstellung, mas como apresentação, Darstellung. A representação, herdada da ontologia clássica, é uma imagem mental que remete a uma outra realidade, enquanto a apresentação é direta, imediatamente perceptível, sem delegação. Esta apresentação corresponde a um trabalho de figurabilidade do afeto. O modelo teórico desta busca por figurabilidade pode ser encontrado, a meu ver, na intersubjetividade, tal como é teorizada por Merleau-Ponty e Winnicott, e no ato psíquico de Phantasia (nem percepção nem imaginação, mas mistura destes dois atos psíquicos). É a figurabilidade do afeto que aparece em toda elaboração, em toda simbolização ou na noção de "verdade histórica".

Entre teoria e clínica analítica, a metáfora encarna uma figurabilidade do afeto. Estritamente falando, a metáfora é um erro linguístico: se as palavras fossem definidas com sentidos delimitados e invariáveis, a metáfora introduziria um absurdo e um sem-sentido total. Não faria sentido, por exemplo, dizer "Este rapaz é um sapo" se, além dos significados definidos de rapaz e de sapo - que, em princípio, não se associam -, não se encarasse a semelhança estabelecida entre eles: feiura e possibilidade de se transformar em príncipe. Portanto, a metáfora procede à desconstrução do sentido inicial e à construção de um novo sentido: ela introduz uma ruptura sintagmática entre as unidades comparadas, mas a compensa com uma ressignificação paradigmática.

Nesses versos de Eugénio de Andrade (1990)...

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua

... a ruptura do sentido literal de um corpo que sabe a lua, água, alegria da lua de mel, mas também a cal, luz e brisa - uma série de incorreções lógicas - permite capturar um novo sentido. A metáfora apresenta este corpo como uma celebração amorosa em que estalam os quatro elementos - água, terra, fogo e ar -, dessignificando este corpo para ressignificá-lo gloriosamente. A metáfora aparece, então, como transferência do sentido de um nível para outro (μετα - φερω, em grego, e trans-fers, em latim, compartilham a mesma etimologia de transporte). Ela é que providencia aqui uma possibilidade de figurar o afeto.

Vejamos agora como os três níveis da definição da teoria psicanalítica - crítica do conhecimento, ficção teórica e saber técnico - são vinculados de dois em dois através de uma concepção particular da metáfora.

 

Entre crítica do conhecimento e técnica

Entre a crítica do conhecimento e o saber pragmático, a metáfora funciona como transporte. A especificidade da escritura analítica vem da particularidade da sessão analítica: um texto analítico não se aborda só de uma forma especulativa, mas revela um nível distinto para os que passaram por uma análise. A razão disso é a reorganização afetiva movida pela análise: a cura não permite adquirir um novo saber, mas faz experimentar uma série de novos posicionamentos afetivos, dando ao texto analítico outro teor. Pelo mesmo isomorfismo, a teoria é, em outro sentido, uma prolongação do campo analítico do/a analista: é a análise que continua trabalhando.

Obviamente, não se trata aqui de uma exclusividade iniciática, pretendendo limitar o texto analítico tão somente aos analistas - o que aproximaria a psicanálise de um esoterismo. Porém, não se pode negar que a prática analítica, como analisando e analista, permite reorganizar um texto cujo sentido se revela num trabalho de elaboração. O texto é interpretado graças ao trabalho da análise no/a analista: a metáfora transporta aqui a evolução afetiva da cura na teorização.

 

Entre crítica do conhecimento e fantasmatização

Entre a crítica do conhecimento e a fantasmatização, a metáfora é o que garante a ficção contra a loucura. A teorização analítica é ligada ao conjunto de afetos do/a analista - do/a teorizador/a - e assim procede de sua fantasmatização. Da elaboração destes afetos resulta um intercâmbio com o/a analisando/a, que se revela transferencial - e a teoria visa a captar esta transferência.

Como evitar a transformação da teoria em dogma? Observemos que a teoria psicanalítica se aproxima da loucura quando chega a dois extremos - duas caras do mesmo fenômeno:

1. um engessamento dogmático, que impede qualquer interrogação;

2. uma elucubração rapsódica: pretendendo absurdamente expressar o movimento do inconsciente, a teoria acaba ressoando como a fala absconsa de um oráculo.

1. No que diz respeito ao engessamento dogmático, a escrita psicanalítica não se alinha às outras teorias porque não funciona como elas. Na verdade, não se pode falar de teoria formal, racional, mas, antes, de movimentos teóricos, operações analíticas, aos quais parece preferível denominar método ou interpretação analítica. Portanto, toda metapsico-logia fixada é uma "resistência à psicanálise". Na sua intervenção sobre os "Estados Gerais da Psicanálise", Derrida (2000) distinguiu a resistência da sociedade à psicanálise da resistência própria da psicanálise, uma resistência autoimune a si mesma e ao seu exterior.

Na teoria, a desconstrução é mais fundamental do que qualquer construção: o método psicanalítico trabalha "per via di levare" mais do que "per via diporre" (Freud, 1905/1953, p. 13). Se a teoria constrói, é só um "andaime", que não há de ser confundido com o "prédio" (Freud, 1900/1967, pp. 455-456). Toda construção teórica permanece, como ressalta Freud, hipotética, por se arrimar no valor metafórico do andaime. Mais ainda: para evitar o dogmatismo de uma teoria engessada, Freud propõe atribuir à metapsicologia o pensamento mais especulativo - o do mito. Pensamos aqui no "mito científico" de Totem e tabu (Freud, 1913/1923), mas também em qualquer momento da teoria das pulsões (Freud, 1932/1984) ou, de maneira mais geral, na metapsicologia que aparece, em Freud, como uma cena da tragédia grega. A metáfora faz ressoar esta palavra mítica.

O mito representa um modo de atestação similar ao do inconsciente: ele apresenta-se como narrativa das origens, invocação alucinatória entre o oral e o visual, relatório antirrealista e teatro da afetividade. A "validade" da teoria, portanto, vincula-se à sua capacidade de oferecer uma figurabilidade do afeto do/a analista que teoriza. Se há uma irredutível dimensão afetiva e afetal por trás de qualquer busca de conhecimento, a teoria analítica é a que faz questão de levar isso em conta na sua própria teorização. Mais radicalmente, Freud insiste, em "Além do princípio de prazer", que qualquer teorização emerge necessariamente de uma "preferência pessoal" (Freud, 1920/1981, p. 109).

Contudo, cabe fazer uma observação: nesta formalização freudiana, a teoria não é uma forma-sentido que expressa, pelas suas confusões e escuridões, as incoerências do inconsciente. A diferença principal entre este modo de teorizar e um hermetismo que pretende reproduzir o inconhecível do inconsciente jaz na diferença entre ideia e afeto. A analogia entre enunciado e enunciação, entre conteúdo teorizado e forma teorizadora, está no movimento do afeto, e não das ideias. A metáfora pretende precisamente captar esta analogia afetiva e propor uma figurabilidade ("apresentação", Darstellung) do afeto que atravessa a clínica, o objeto teorizado e a teorização: ela não intenta dar uma representação ( Vorstellung) cujo alvo seriam ideias e conteúdos.

A metapsicologia, portanto, reintroduz a atividade metafórica no conceito (ao contrário da metafísica clássica, em que o conceito pretende ser uma antimetáfora). A metáfora permite presentificar um sentido, sem impô-lo nem ontologizá-lo. A metáfora do bloco mágico para figurar o aparelho psíquico (Freud, 1924/1985, pp. 119-124), por exemplo, dá conta da dupla capacidade de percepção renovada e retenção mnésica do aparelho psíquico. Esta metáfora não afirma que a dualidade sistema Pc-Cs e sistema mnésico é a dualidade da folha de papel e do bloco de cera. Ela só coloca em perspectiva estas duas dualidades. O que vem unir o bloco mágico e o aparelho psíquico é a convicção, ou melhor, o afeto do teorizador. Freud sente, afetivamente, que este modelo do bloco mágico vale para apresentar o funcionamento do aparelho psíquico, sem acreditar na sua identidade ontológica. A teoria, através da metáfora, torna inteligível o que Freud sente sobre o aparelho psíquico, sem que este precise ser constituído. De forma mais geral, a noção mesma de aparelho psíquico é uma metáfora: ontologizá-la seria instituir um péssimo positivismo reducionista.

Aqui, a metáfora traduz a complexidade do seu objeto (os processos primários) por uma forma-sentido afetal, afetivamente ligada à tentativa do teorizador de dar conta deste objeto. Ela serve, assim, à busca da figurabilidade do afeto do teorizador.

2. A segunda função da metáfora é a de garantir contra o delírio de uma teoria que ficaria somente desconstruindo. Laplanche destacou um duplo estatuto das teorias psicanalíticas: elas articulam um nível metapsicológico com um nível de teorias infantis espontâneas (1999, p. 178). O nível metapsicológico contém (no duplo sentido de comportar e circunscrever) o nível das teorias infantis espontâneas. A metáfora é o que permite ao nível metapsicológico, autorreflexivo, vincular-se ao nível teórico-espontâneo. Ela presentifica as fantasias do nível teórico-infantil-espontâneo, dá uma figurabilidade à sua afetividade, mas não as ontologiza. Ela apresenta, assim, fantasias próprias do teorizador sem impô-las como única realidade, deixando-as funcionar na sua criatividade e operatividade evocativa. O mito da horda originária em Totem e tabu (Freud, 1913/1923), por exemplo, além das pesquisas antropológicas de Freud e das teorias que convoca, dá relevo às próprias fantasias de Freud quanto ao pai morto, à sua posição na instituição analítica e à transmissão da psicanálise. Isso não quer dizer que este mito teórico não valha em sua teorização do vínculo entre os complexos da psique e as duas proibições universais. Porém, a própria forma de mito indica que não se trata aqui de acreditar que existiu realmente um estado acultural de horda primitiva. A inteligibilidade do Édipo a partir deste mito é profundamente ligada às fantasmatizações de Freud, mas também àquelas que aparecem na clínica, ao escutar seus pacientes falarem do pai. Considerar esta teoria como metáfora permite evitar que esta fantasia e o nível teórico-infantil-espontâneo se substituam ao nível metapsicológico. Admite-se, portanto, que nenhuma representação pontual poderia satisfazer a busca de figurabilidade do afeto do teorizador.

Na teoria analítica, haveria então um núcleo pulsional, passional, procedendo do material infantil do teorizador, um punctum caecum, definido por Fédida como o "eixo narcisista" da teoria (1978, p. 268). A teorização passa a ser, assim, um processo autoerótico, cancelando toda alteridade. O que permitiría evitar este narcisismo seria uma dimensão intersubjetiva, garantida pela transferência. Toda a produção teórica do/a analista aparece como resultado de uma operação movida pela transferência - transferência do/a analisando/a -, formando uma teoria. Como as teorias sexuais infantis, o sonho ou o delírio, a transferência é uma teoria, enquanto escrita do mito pulsional do sujeito na cura, como se o/a analisando/a redigisse um texto ignorado. A transferência na cura é, portanto, o ato a partir do qual a teoria pode ser escrita. Esta transferência, escutada a partir da (contra)transferência do/a analista, acompanha-se, para o/a analista, de uma metatransferência, elaboração escrita da teoria numa obra cultural. A teoria analítica é uma reinterpretação, pela escrita, do trabalho do/a analista. Ela há de estar sempre aberta à reorganização e à reescritura, confrontando as certezas conceituais do/a analista com a transferência (do/a analisando/a e do/a analista).

Acrescentemos que esta intersubjetividade da teoria, assegurada pela transferência, depende também da abertura da teoria à clínica mais ampla da História e das mudanças sociais, e ainda à frequentação de outras disciplinas e teorias (sem as quais a psicanálise passaria a ser um discurso autístico). Estas dinâmicas transferenciais com analisandos, a abertura para a História e a sociedade, e a transdisciplinaridade são garantidas graças à metáfora. A operação metafórica da escrita é autenticamente metatransferencial: ela é que transporta do divã, da sociedade e das outras disciplinas para a escrita analítica.

 

Entre fantasmatização e técnica

Finalmente, os dois últimos níveis da teoria, a fantasmatização do teorizador e a técnica analítica, são vinculados pelo estilo do/a analista. O mesmo estilo define a teorização e a prática analítica, e este estilo é figurado pela metáfora.

A metapsicologia participa da criatividade do/a analista, da sua capacidade de brincar, graças à metáfora. O brincar (playing winnicottiano, sem regras) define tanto a prática na cura quanto a escritura analítica. Ele implica a metáfora no que diz respeito à corporalidade do/a analista e à dessignificação.

 

A corporalidade

Na cura, a presença do corpo do/a analista é garantida pela metáfora, definida como inclusão do corpo na palavra. A metáfora traduz a corporeidade do/a analista e a da palavra, além de uma petrificação meramente simbólica da linguagem (linguagem falada, não falante).

Se, numa concepção winnicottiana, a psicoterapia se situa entre duas áreas do brincar, o/a analista deve descobrir nele/a mesmo/a esta cena ou área corporal do brincar. A área corporal do/a analista acolhe o brincar com o/a analisando/a. Este brincar é a metáfora corporal de um ato de escritura da teoria: o gesto de brincar torna a metáfora visível. Reciprocamente, a escritura analítica, através da metáfora, tenta achar esta presença do corpo no brincar e na cura.

 

A dessignificação

Fédida (1977) inscreve o espaço analítico numa ruptura: uma dessignificação do enquadre sociocultural, dos seus modelos de comportamento, do seu código simbólico, dos seus paradigmas de percepção. Esta dessignificação caracteriza o brincar, apagando perpetuamente o que inventa, produzindo sentido na medida em que cria a ausência.

Tanto brincar como escrever a teoria criam sentido por uma dessignificação dos conteúdos da consciência. A teorização começa notando um signo diferencial, procedendo de uma dessignificação operada sobre o conteúdo da observação/escuta. O que antes era insignificante começa a criar sentido através do brincar, que dessignifica as significações codificadas na língua do/a analisando/a. A metáfora permite esta ruptura no sentido e o transporte de um sentido para outro. Os conceitos da psicanálise traduzem a escuta do paciente em metáfora e são produzidos por dessignificação lexical, metafórica - "pulsão", "prazer", "narcisismo", "sexualidade" não procedem do sentido habitual atribuído a estes termos. Por isso, a teoria psicanalítica nunca deve ser psicologizada. A desmetaforização da metapsicologia, a tentativa de verificá-la "cientificamente", acabaria com esta dessignificação essencial ao brincar na teoria analítica.

 

Conclusão

O modelo teórico da psicanálise recusa toda formalização definitiva por uma dupla razão:

♦ as suas ferramentas conceituais são metáforas temporárias, construções hipotéticas necessárias, mas nunca definitivas;

♦ ele questiona todo corpus teórico fechado, definitivo, sistemático. A psicanálise faria uma petição de princípio se isentasse o seu próprio processo da crítica que dirige às outras teorias e fundasse uma teoria definitiva.

A metáfora parece garantir o funcionamento da teoria analítica no vínculo que estabelece entre os três níveis: o da crítica do conhecimento, o da fantasmatização do teorizador e o da técnica analítica. Isso implica admitir a historicidade do discurso teorizador, como afetividade do/a analista em busca de figurabilidade - um discurso que participa de formações discursivas, que está inscrito numa época. Repitamos de novo este elemento que nos parece fundamental: o funcionamento da teoria só pode ser validado pela sua intersubjetividade, garantida pela transferência, na sessão clínica, pelo contato com a História e pelo diálogo com outras disciplinas.

Que fenômenos, na psicanálise, provocariam atualmente esta "intrassubjetivação" da transferência na teoria? Entre vários exemplos, o fato de alguns psicanalistas se recusarem a repensar certas categorias metapsicológicas das estruturas, do gênero ou da sexualidade em função de fenômenos novos. O que se deve fazer é interrogar certos conceitos analíticos na sua pretensão de componentes intemporais do sujeito, que instituem o que Foucault (1976) chamou de "dispositivos de sexualidade". Acontece aqui uma literalização da teoria: a castração é perda do pênis; a diferença de sexos é operador real, a-histórico e acultural da psique; a homossexualidade é fracasso na internalização do outro sexo, fixação e regressão; a perversão é recusa da diferença dos sexos; o sexual-infantil é sexo mesmo; a transexualidade é psicose. Estas afirmações caricaturais aparecem tanto na produção científica quanto em posições midiáticas de psicanalistas pretendendo falar em nome da psicanálise, como foi recentemente o caso, na França, durante o debate sobre matrimônio igualitário e adoção homoparental. Porém, pretender, em nome da teoria psicanalítica, assentar perguntas feitas por uma sociedade que reelabora as possibilidades de articulação dos vínculos entre sujeitos é nada menos do que impor preferências pessoais pouco analisadas e reproduzir estereótipos revestidos de uma metapsicologia eterna e imutável. Esta é uma posição de onipotência, em nome da psicanálise, que se recusa a submeter à crítica o próprio discurso da psicanálise. Quando a psicanálise pretende ser garantia da "Lei Simbólica", a teorização se desmetaforiza e se impõe como dogma sistemático, pretendendo reger o indivíduo e a comunidade.

A teoria pode - e às vezes deve - enlouquecer, delirar, por ser vinculada à criatividade da fantasmatização. O problema, porém, é este delírio ser ontologizado, sistematizado e imposto como forma dominante. É da responsabilidade dos psicanalistas evitar a fascinação narcisista de uma teoria fechada a toda refutação ou a refutação sistemática de toda teoria. Loucura e método estão aqui indissociáveis, e o processo discursivo metafórico da psicanálise é o que evita passar da loucura de Hamlet à de Ricardo III.

 

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Correspondência:
Thamy Ayouch
18, Avenue du Président Hoover
59000, Lille, França
(+336 11) 34-50-26
thamy.ayouch@gmail.com

Recebido em 27.2.2013
Aceito em 11.3.2013

 

 

1 Reservo este termo para designar o que diz respeito ao afeto, no sentido freudiano de representante da pulsão.

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