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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013
ARTIGOS TEMÁTICOS: O PENSAMENTO CLÍNICO E O CONTEMPORÂNEO
O pensamento clínico contemporâneo: revisitando a técnica1
Contemporary clinical thought: revisiting the technique
El pensamiento clínico contemporáneo: revisitando la técnica
Norberto MaruccoI; Tradução Claudia Berliner
IMembro titular da Asociación Psicoanalítica Argentina APA
RESUMO
Este trabalho é parte de uma apresentação feita em 2012, no II Encontro Internacional André Green, realizado na Asociación Psicoanalítica Argentina. O texto retoma alguns conceitos fundamentais de Green, particularmente os conceitos de pulsão, representação e pulsão de morte. Desenvolvem-se, a partir daí, algumas ideias sobre as reformulações da técnica, interpretação, construção, contratransferência imaginativa e silêncio do analista.
Palavras-chave: psicanálise contemporânea; clínica atual; psiquismo aberto; pensamento clínico; enquadre interno do analista; estruturas não neuróticas.
ABSTRACT
'This article is part of a presentation shown in 2012, during the II International André Green Meeting, which took place at the Asociación Psicoanalítica Argentina. The text considers some of Greens basic concepts, particularly the ideas of drive, representation and death drive. From this, ideas on the reformulations of the technique, interpretation, construction, imaginative countertransference and silence of the analyst are developed.
Keywords: contemporary psychoanalysis; current practice; open psyche; clinical thought; internal framing of the analyst; non-neurotic structures.
RESUMEN
Este trabajo es parte de una presentación realizada en el II Encuentro Internacional André Green del año 2012, en la Asociación Psicoanalítica Argentina. El texto retoma algunos conceptos fundamentales de Green, en particular los conceptos de pulsión, representación y pulsión de muerte. De ahí se desarrollan algunas ideas sobre las reformulaciones de la técnica, interpretación, construcción, contratransferencia imaginativa y silencio del analista.
Palabras-clave: psicoanálisis contemporáneo; clínica actual; psiquismo abierto; pensamiento clínico; encua dre interno del analista; estructuras no neuróticas.
Vinte e cinco anos de intenso trabalho fizeram com que as metas imediatas da técnica psicanalítica sejam hoje totalmente diferentes das do princípio
(Freud, 1920/1975).Na análise, os efeitos da pulsão de morte mudam de maneira favorável ou desfavorável segundo o ser e o fazer do analista ... Não obstante, é totalmente injustificado atribuir a responsabilidade de todos os fracassos da análise à pulsão de morte; esta não é uma explicação autossuficiente nem uma desculpa para eximir de responsabilidade o analista
(Green, 2002/2010).
Para começar, gostaria de fornecer algumas referências sobre o que entendo por "psicanálise contemporânea", para em seguida tecer alguns comentários sobre a técnica revisitada, e dentro dela, especialmente o que concerne ao agir do analista ante a pulsão de morte.
A psicanálise contemporânea origina-se dos efeitos que Freud produz com a introdução, em 1920, do conceito de pulsão de morte. Green chamará de "virada dos anos loucos" aquele momento em que Freud propõe uma mudança na dualidade pulsional. Essa "virada" implica tanto a conceituação de uma segunda tópica que inclui o Eu inconsciente, com seus mecanismos de defesa, quanto o primado de uma compulsão repetitiva que passa a ocupar o lugar, até então hegemônico, do princípio de prazer. A partir dali, uma série de fatos clínicos encontrarão teorização: o masoquismo, o sentimento inconsciente de culpa e a reação terapêutica negativa, entre outros. Em que se apoia essa compulsão "feroz", "mortífera" - como a qualifica Green -, a repetir a dor, que torna quase impossível a abordagem terapêutica? Que força propulsiona esse devastador sentimento inconsciente de culpa, capaz de pôr em xeque toda possibilidade de êxito da análise, bem como a própria análise? É esse o contexto clínico que deu lugar à geração de teorias de distintos autores, que constituíram a essência da psicanálise contemporânea e que giram em torno de três variáveis: (1) a que se apoia em um núcleo freudiano, assimilando contribuições de desenvolvimentos pós-freudianos para gerar um "pensamento clínico" (nas palavras de Green) que permita pesquisar em psicanálise; (2) a que reconhece a existência de uma "clínica atual", para além das neuroses, que exigiria um analista clínico com dedicação em "tempo integral" - novamente segundo expressão de Green - para abordá-la; e (3) a que impõe a necessidade prioritária de uma revisitação da teoria, da metapsicologia e da técnica psicanalíticas.
Tomemos, então, a primeira aproximação: considero haver um núcleo que reconhece profundamente a obra e a metapsicologia freudiana (reconhecimento que, longe de ser reverencial, caracteriza-se por tomar Freud como referência) e interroga as contribuições pós-freudianas. Menciono apenas as mais significativas: a kleiniana, a winnicottiana, a bioniana, a da psicologia do ego e a lacaniana. Parece-me que essas teorizações, independentemente de seus valores ponderáveis, embora partam sem dúvida nenhuma de alguns aspectos da obra de Freud, escotomizam outros, ao mesmo tempo, de maneira chamativa. Portanto, creio que aderir isoladamente a uma ou a algumas delas poderia ser reducionista. A intenção dos autores provavelmente não é esta, mas há certa dogmatização nas leituras exegéticas que seus seguidores realizam. Assim, a psicanálise acabaria transformando um "ponto de partida" em um "ponto de chegada". Por isso, gostaria de sublinhar, especialmente neste encontro, que esperamos que o mesmo não ocorra com a obra de Green. Essa advertência é um convite para honrarmos o espírito vivaz de seu pensamento teórico e clínico, sem dogmatizações estéreis ou tentativas de apropriação tribal de seu legado.
Voltemos, então, para a primeira variável por mim mencionada: Freud e os pós-freudianos. É aqui que situo, como elemento central da abordagem da psicanálise contemporânea, a perspectiva epistemológica da complexidade, como a entende Edgar Morin. Isso permite sustentar as aparentes contradições, "fazê-las trabalhar" em vez de superá-las; e permite considerar um psiquismo aberto, recursivo2, em constante reversibilidade de causas e efeitos. Considero que é a partir dessas premissas que se pode ensaiar, contemporaneamente, um "pensamento clínico".
Passemos à segunda variável a que me referi no princípio: a clínica atual. A clínica, hoje em dia, é evidentemente diferente da de séculos atrás, por assim dizer. A sexualidade recalcada não parece ter hoje a força e o poder transformador de seus sintomas. Embora isso não queira dizer que a sexualidade desapareceu da psicanálise, ou das problemáticas psicopatológicas, é evidente que outros funcionamentos psíquicos - as patologias narcisistas, psicossomáticas, as do ato, algumas ditas sociopatias etc - passaram a ocupar um espaço predominante, tal como, a meu ver, pensa Green. Esse "capital clínico" permitiu desenvolver teoricamente a ideia de que nem todo o psíquico é representação ou deriva da tentativa de realização de um desejo recalcado; e, na técnica, de que não existe uma única modalidade de enquadre a partir do modelo metapsicológico do sonho, nem a associação livre e a atenção flutuante são as únicas vias de acesso ao inconsciente. Ocorre que essas outras áreas, que denominei de "zonas psíquicas" (Marucco, 2005), e às quais Green (1990) aludiu com o conceito de "estruturas não neuróticas", exigem uma metapsicologia que dê conta, como indiquei muitas vezes, da importância da pulsão no Isso e do conceito de compulsão à repetição mortífera. Green propõe, com bom critério, denominar a pulsão de morte de "pulsão de destruição" para acentuar o polo autoagressivo que é muito significativo nas patologias atuais. É essa ação da pulsão destrutiva que qualifica o movimento pulsional nas estruturas não neuróticas e, em particular, no quadro da depressão. Sempre digo que assim como a histeria foi a expressão da patologia sobre a qual a psicanálise se debruçou fundamentalmente no século XX, as depressões parecem ser a manifestação de que a psicanálise terá de dar conta neste século XXI.
Com respeito à terceira variável: revisitar a técnica. Por tudo o que foi dito anteriormente, considero que o psicanalista que lida com a clínica atual encontra-se ante o inevitável desafio de repensar e reformular a técnica na psicanálise contemporânea. O enquadre clássico mostra-se insuficiente para dar conta da clínica nas "estruturas não neuróticas", mas serve, de certo modo, como "detector delas" quando elas se revelam inacessíveis por meio desse dispositivo. Precisamos, então, pensar em outros dispositivos. Será, acaso, necessário denominar de "psicoterapia analítica" os dispositivos que saem do tratamento clássico? Será necessária essa divisão entre "psicanálise" para o enquadre clássico e "psicoterapia psicanalítica" para enquadres diferentes? Prefiro pensar, tal como faz Green, em uma psicanálise com um enquadre adaptado à situação clínica que se está analisando.
Para isso, o enquadre não se definiria pela frequência ou duração das sessões, nem pela localização espacial de paciente e analista na sessão, mas por um enquadre interno do analista (Green, 2002/2010), produto, basicamente, da exploração de seu próprio inconsciente. Isso reforça a necessária análise e autoanálise do analista para poder manter a "permeabilidade" de seu inconsciente em relação aos pensamentos terciários.
A interpretação deverá ir além do desejo e de sua realização, e dos significantes que estes "marcariam": ou seja, ir "além" do princípio de prazer. As construções permitiriam ressituar o inconsciente soterrado, "prévio" à linguagem, para aquém do recalque (isso que em algum momento denominei de "embrião pulsional"). Momentos "hipotéticos" que apontam para a origem mítica do encontro entre a pulsão e o objeto. O analista não poderá ser "neutro" nem "abstinente" ante a repetição desse embrião pulsional; terá de servir de "suporte" da pulsão de vida - ou, dito de outra maneira, é preciso um analista que dê provas, como objeto, de sua aliança com "Eros" e sua luta representativa contra a autodestruição. Green (2001/2001) denominou esses efeitos da pulsão de morte de fenômenos de "desligamento" e, fundamentalmente, de "desobjetalização". Essa perspectiva revisitada da construção é que exigirá um analista capaz de utilizar sua própria mente - ou, nas palavras de Green (2002/2005), sua "contratransferência imaginativa" - para construir um fantasma que dê conta de uma conjetura sobre a verdade histórica e, ademais, de uma reconstrução apoiada na memória do processo analítico. Então, o que importará não será o limite resistencial de cada sessão, e sim o processo que vai sendo gestado em uma associação ininterrupta, apesar das escansões que uma análise inevitavelmente tem.
Insisto: topamos com patologias que vão além da neurose, e implicam a emergência da pulsão destrutiva voltada tanto para fora, como no caso do sadismo quase puro, da criminalidade, da violência, quanto para dentro, como no masoquismo, nos que fracassam ao triunfar etc. Pois bem: essa presença da pulsão destrutiva (sem entrar no debate sobre sua produção) intervém, por um lado, partindo do Isso (e emergem os curtos-circuitos pulsio-nais); por outro, como formação inerente ao Supereu - temos, então, os traços destrutivos agindo sobre o Eu, com a ocorrência de crises depressivas ou, até mesmo, da depressão essencial. Avançando mais um passo, essa pulsão destrutiva também age no Eu: encontramos, então, defesas movidas por essa pulsão destrutiva. Nesse ponto, Green (1993) abre um grande leque: o trabalho das defesas, incluindo o recalcamento, transforma-se no "trabalho do negativo", e este condiciona os modos como se negativiza a pulsão e o objeto. Suas expressões clínicas são o descompromisso subjetal, as problemáticas da realidade e as crenças.
A técnica do analista contemporâneo muda pela clínica, e a teoria tenta dar conta da técnica, revisitá-la. A atenção flutuante - a "matriz do enquadre", como a chama Green (1979) - pode não ser suficiente pela impossibilidade de o paciente "associar livremente" quando começam a aparecer ataques ao pensamento, a atividade mais flagrante, para Green, da pulsão destrutiva voltada para dentro. Ante esses ataques ao pensamento, será que o paciente pode tolerar a ausência do objeto que o enquadre clássico impõe? Não será necessária uma presença perceptual do analista no "face a face"? Esses trechos de análise se transformam em "tratamentos de encontro", nos termos de Green (2012), nos quais é a realidade que predomina. O trabalho analítico consistiria em interpretar e construir um continente que permita o acolhimento daqueles pensamentos que a pulsão destrutiva atacou ou destruiu.
Para terminar, gostaria de citar Green:
... certos pacientes movidos por uma compulsão a tentativas de suicídio comprovam, depois de anos de trabalho analítico, e sem que se produza ainda uma verdadeira cura, que o desejo de morrer já não exerce nenhuma atração para eles. Em outras palavras, já não são [movidos] a se matar (Green, 2002/2010, p. 300).
Ou seja, a estrutura suicida ainda não foi curada; o que desapareceu após vários anos de análise foi a vontade de morrer. Essa mudança não deriva apenas de um movimento no intrapsíquico - decorre também da análise do intersubjetivo e do outro do objeto; aparecem no tratamento novos investimentos significativos em contraste com a retração que a pulsão de destruição havia operado neles. Pode-se aludir, então, à criação de investimentos de afeto que posteriormente se transformarão, como diz Green, em objetos psíquicos. Isto é, algo novo surge no encontro entre dois intrapsíquicos e um intersubjetivo. Em um "entre" paciente e analista aparecerá o objeto analítico como um terceiro; e nessa terceiridade vão se construindo novas representações, mais como criações do que como desvelamentos de estruturas representativas preexistentes.
Em suma, na neurose tínhamos representações deslocadas que mascaravam um desejo recalcado, ante as quais a tarefa analítica consistia em desmantelar o "equívoco". As estruturas não neuróticas exigem um analista que dê relevância ao encontro, à transferência sobre o objeto (e não tanto sobre a palavra) e à sua contratransferência imaginativa para, a partir daí, encontrar a possibilidade de construir o não representado. Talvez estejamos topando com a emergência do objeto primário na atualidade da transferência (outra teorização importante de Green), o que permitiria a criação de algo inédito no encontro analítico; ou seja, a construção de "funcionamentos psíquicos" que permitem a criação de "objetos psíquicos" e - por que não dizer - talvez também uma neocriação da pulsão de vida (talvez estejamos perto, aqui, do que Laplanche propõe, em 1996, com seu conceito de implantação).
Creio que todas essas contribuições de Green constituem um marco fundamental para repensar e recriar a técnica; mas, fundamentalmente, constituem um estímulo para se comprometer "em tempo integral" com a tarefa de analisar - tarefa que impõe grandes desafios, entre os quais o mais difícil talvez seja o de apostar a própria pulsão de vida para suportar a ação da pulsão destrutiva, para poder entendê-la, ligá-la e, finalmente, representá-la.
Referências
Freud, S. (1975). Más allá del principio del placer. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol. 18, pp. 1-62). Buenos Aires: AE. (Trabalho original publicado em 1920). [ Links ]
Green, A. (1979). Le silence du psychanalyste. Topique, 23, 5-26. [ Links ]
Green, A. (1990). De locuras privadas (J. L. Etcheverry, trad.). Buenos Aires: AE. [ Links ]
Green, A. (1993). El trabajo de lo negativo (I. Agoff, trad.). Buenos Aires: AE. [ Links ]
Green, A. (2001). El tiempo fragmentado (I. Agoff, trad.). Buenos Aires: AE. [ Links ]
Green, A. (2005). Ideas directrices para un psicoanálisis contemporáneo (L. Lambert, trad.). Buenos Aires: AE. (Trabalho original publicado em 2002). [ Links ]
Green, A. (2010). El pensamiento clínico (C. E. Consigli, trad.). Buenos Aires: AE. (Trabalho original publicado em 2002). [ Links ]
Green, A. (2012). El encuadre psicoanalítico: su interiorización en el analista y su aplicación en la práctica (en L'Avenir dune desillusion). Revista de Psicoanálisis, 69(1). [ Links ]
Laplanche, J. (1996). La prioridad del otro en psicoanálisis (S. Bleichmar, trad.). Buenos Aires: AE. [ Links ]
Marucco, N. (2005). Las zonas psíquicas y los procesos de inconcientización. In S. Lewkowicz & S. Flechner (Eds.), Verdad, realidad y el psicoanalista (pp. 185-206). Londres: Asociación Psicoanalítica Internacional. [ Links ]
Correspondência:
Norberto Marucco
San Luis 3364 (1186)
Argentina
marucco@fibertel.com.ar
Recebido em 16.1.2013
Aceito em 19.2.2013
1 Trabalho apresentado no II Encuentro Internacional André Green: el pensamiento clínico contemporáneo.
2 O produto é produtor do que produz em um círculo recursivamente autoprodutor.