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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: O PENSAMENTO CLÍNICO E O CONTEMPORÂNEO

 

Mudança psíquica à luz do pensamento clínico contemporâneo

 

Mudança psíquica à luz do pensamento clínico contemporâneo

 

Cambio psíquico a la luz del pensamiento clínico contemporáneo

 

 

Gley P. Costa

Membro titular e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA

Correspondência

 

 


RESUMO

Por meio deste trabalho, propõe-se o modelo do palco para entender o processo de mudança psíquica na clínica psicanalítica atual, repleta de problemáticas narcísicas, depressões e fenômenos limítrofes, que se mesclam ou se associam às patologias neuróticas clássicas sob a forma de correntes psíquicas. O modelo do palco se insere na concepção contemporânea da psicanálise, a qual, de acordo com Urribarri (2012), baseia-se em uma leitura renovada de Freud, que revaloriza a metapsicologia e o método freudianos como fundamentos da psicanálise, a apropriação crítica e criativa das principais contribuições pós-freudianas, juntamente com um diálogo com autores contemporâneos de diversas correntes, e a ampliação da clínica aos desafios da prática relativa aos quadros não neuróticos.

Palavras-chave: modelo do palco; mudança psíquica; psicanálise contemporânea; enquadre interno; patologias não simbolizadas; experiência traumática da sexualidade; o lugar do analista hoje.


ABSTRACT

In this article, the stage model is proposed for the understanding of the process of psychic change in the current psychoanalytic clinic, full of narcissistic problems, depressions and borderline phenomena which mix or associate with classic neurotic pathologies in the form of psychic currents. The stage model is inserted in the contemporary conception of psychoanalysis, which, according to Urribarri (2012), bases itself in a new interpretation of Freud which revalues Freud's metapsychology and method as foundations of psychoanalysis, the critical and creative appropriation of the main post-Freudian contributions, together with a dialog with contemporary authors of different currents, and the expansion of the clinic to the challenges of the practice related to non-neurotic cases.

Keywords: stage model; psychic change; contemporary psychoanalysis; internal setting; non-symbolized pathologies; traumatic experience of sexuality; the place of the analyst today.


RESUMEN

A través de este trabajo se propone el modelo de escenario para entender el proceso de cambio psíquico en la clínica psicoanalítica actual, colmada de problemáticas narcisistas, depresiones y fenómenos limítrofes que se mezclan o se asocian a las patologías neuróticas clásicas bajo la forma de corrientes psíquicas. El modelo del escenario se inserta en la concepción contemporánea del psicoanálisis, la cual, de acuerdo con Urribarri (2012), se basa en una lectura renovada de Freud que revaloriza la metapsicología y el método freudianos como fundamentos del psicoanálisis, la apropiación crítica y creativa de las principales contribucionesposfreudianas, juntamente con un diálogo con autores contemporáneos de diversas corrientes, y la ampliación de la clínica a los desafíos de la práctica relativa a los cuadros no neuróticos.

Palabras clave: modelo de escenario; cambio psíquico; psicoanálisis contemporáneo; encuadre interno; patologías no simbolizadas; experiencia traumática de la sexualidad; el lugar del analista hoy.


 

 

Introdução

As teorias, na maioria das vezes, são fortemente abstratas e formais. Para se tornarem mais compreensíveis, necessitam de um modelo capaz de explicá-las por meio de uma linguagem mais acessível, destacando-se a visual (Holt, 1981).

Um modelo é bem mais do que uma metáfora, consiste em um sistema que serve para entender outro sistema (Mora, 2002).

Com o objetivo de explicar o funcionamento mental, desde o princípio a psicanálise empregou inúmeros modelos. Influenciado pelo contexto cientificista e positivista da época, Freud fez várias tentativas nesse sentido. Inicialmente utilizou o modelo quantitativo, descrito no "Projeto" (1950/1977). Sucederam o modelo ótico, conforme se encontra no último capítulo de "A interpretação dos sonhos" (1900/1972), o hidrostático, o termodinâmico, o econômico, o dinâmico e, finalmente, o topográfico, quando o funcionamento psíquico se faz representar na primeira (1915/1976) e na segunda (1923/1976) tópica como um aparelho espacial. Freud (1905/1972, 1912a/1976, 1912b/1976, 1913/1976, 1930/1976, 1937/1976) ainda utilizou os modelos militar e do jogo de xadrez, e comparou o analista a um escultor que revela a obra oculta na pedra, a um arqueólogo, a um cirurgião sem sentimentos e a um espelho neutro, ou seja, que apenas reflete o que o paciente projeta.

Outros autores fizeram o mesmo. Bion (1962/1966, 1963/1966) criou o modelo conti-nente/conteúdo, o qual se baseia na função digestiva. Inspirado na matemática - por meio do uso do sistema cartesiano de coordenadas - e na química - por meio da aplicação da tabela periódica dos elementos de Mendeleiev -, elaborou o modelo da grade. Lacan concebeu modelos tirados da semiótica, da física, da ótica e da álgebra. Além desses, ele também utilizou modelos topológicos para ilustrar o funcionamento da mente, como a fita de Moebius, o toro, o grafo e o nó borromeu, com o qual se entrelaçam o real, o simbólico e o imaginário (Moresco, 2011). Tustin (1981/1984) empregou o modelo do buraco negro, tirado da física cósmica, ao descrever a patologia do vazio.

Ainda dispomos de outros modelos para pensar o funcionamento mental, como é o caso do espaço potencial, que Winnicott (1951/1975) formulou a partir da concepção de criatividade como um elemento humano primário; o modelo do telescópio, de Faimberg (2001), para explicar a comunicação transgeracional; e o modelo que Bollas (1989/1992) denominou de "idioma da personalidade", por meio do qual procura expressar as peculiaridades individuais dos potenciais geneticamente predispostos, das vivências fetais e das escolhas e dos usos dos objetos à disposição. Os Baranger (1969), por seu turno, introduziram o modelo do campo, concebido como um espaço dinâmico e criativo, resultante da permanente interação paciente-analista. Na mesma linha, Ogden (1986/1989) referiu que paciente e analista constituem um espaço no qual se podem criar significados pessoais e jogar com eles. De acordo com o seu ponto de vista, trata-se de um espaço potencial cuja existência não se pode de nenhum modo dar por estabelecida.

Por último, lembramos McDougall (1987), que tomou a arte cênica como modelo da mente, a qual, segundo a autora, alberga um determinado número de personagens polifacéticos que fazem parte de nós mesmos e que, com frequência, atuam em completa contradição uns com os outros, provocando conflitos e sofrimento para o self consciente, uma vez que em parte desconhecemos esses intérpretes ocultos e os papéis que representam. Diz McDougall: "Queiramos ou não, nossos personagens internos estão constantemente em busca de um cenário para representar suas tragédias e comédias" (1987, p. 12). Na mesma linha, em nosso meio, Cassorla (2007) publicou um artigo no qual também enfatiza a importância dos modelos em psicanálise e se refere ao "teatro da sala de análise", no qual, pelo fato de ser "ao vivo", tudo pode ocorrer, incluindo a possibilidade de as cenas extrapolarem o cenário, quando então, do nosso ponto de vista, como veremos adiante, não teremos um diálogo, mas dois monólogos.

 

Objetivo

A fim de entender o processo de mudança psíquica na visão da psicanálise contemporânea, por meio deste artigo enfatizamos a importância de um modelo que evidencie o trabalho desenvolvido, simultânea e reciprocamente, pelo e no aparelho psíquico do paciente e do analista, pois, segundo Borgogno (1999/2004), a mente não é mais, como para Freud e Klein, essencialmente intrapsíquica, mas relacional, isto é, necessita, para mudar, de um partner, de confiança - um ato de fé - e de uma esperança, possibilitados pela participação da pessoa do analista. Na mesma linha, nos diz Green que "a pulsão é a matriz do sujeito, mas o objeto é seu revelador, e constituem um par pulsão-objeto que é fundamento do psiquismo" (2012, p. 216). Com isso, Green firma o acento tônico do trabalho analítico no funcionamento em dupla, o qual coloca em comunicação o mundo psíquico do paciente e o do analista. Essa comunicação configura a base do processo de mudança psíquica que afeta tanto a mente do paciente quanto a do analista.

O modelo que nós propomos é o do palco, o qual amplia o modelo alegórico de McDougall para a questão específica da mudança psíquica. No modelo do palco, identificamos o cenário, as cenas e a cortina que esconde, revela, surpreende e encerra o espetáculo, funcionando como uma cesura com a realidade. Nesse conjunto, a diferenciação e a relação entre o cenário e as cenas apresentam um caráter de fundamental importância, como veremos na sequência. Mas, antes, queremos lembrar que, acima de tudo, o palco é um lugar. Tomado como modelo, corresponde ao "lugar psíquico" que Freud (1912c/1976, 1915/1976) atribuiu ao inconsciente e que, anteriormente, em "A interpretação dos sonhos" (1900/1972), dissera constituir a verdadeira realidade psíquica. O inconsciente também é um sistema que possui conteúdos e uma energia. Essa energia, que se origina no corpo, movimenta as cenas que brotam do cenário, razão pela qual podemos equiparar este último à fronteira somatopsíquica.

 

Psicanálise contemporânea

De acordo com Urribarri (2012), sustentam a psicanálise contemporânea três pilares, a saber:

1º pilar: leitura criativa de Freud que revaloriza a metapsicologia e o método freudiano como fundamentos da psicanálise;

2º pilar: apropriação crítica das principais contribuições pós-freudianas, o que inclui um diálogo com autores contemporâneos de diversas correntes;

3º pilar: ampliação da clínica aos desafios da prática relativa aos quadros não neuróticos, predominantes na atualidade.

Com base no modelo do sonho, Freud criou a tríade "enquadre (externo)-associação livre-interpretação", válida para patologias representadas e simbolizadas. Contudo, a perspectiva metapsicológica contemporânea, tendo em vista particularmente as patologias não simbolizadas, enfatiza a importância do enquadre interno do analista e a complexa pluralidade de seu funcionamento na sessão. Esse ponto de vista é reforçado por Green (2012), ao conceber o movimento da sessão como efeito do encontro analítico estabelecido pelo enquadre interno e afirmar que a escuta analítica busca a inteligibilidade do material fora de qualquer linearidade. Para esse autor, o enquadre interno corresponde a um trabalho suplementar do analista, tendo em vista viabilizar o processo de simbolização e elaboração no trabalho analítico. Ele considera o enquadre interno como resultado da interação de dois fatores, sendo o primeiro a análise pessoal do analista, durante a qual obteve a experiência de um enquadre "externo" vivenciada com o seu próprio analista; e o segundo, o resultado do descentramento de sua própria análise a partir do acúmulo de experiências com seus pacientes, possibilitando a constatação de que o que ele viveu em sua análise se reproduz com uma parte de seus pacientes e que, com outros, as coisas se passam de modo diferente. Por fim, ele pondera que o enquadre interno do analista é imprescindível para possibilitar um diálogo, dando lugar a um processo de transformação e, até mesmo, de estruturação, podendo ser considerado uma interface entre o intrapsíquico e o intersubjetivo.

Para Labarthe (2012), o conceito de enquadre interno se origina da rêverie de Bion e da espontaneidade proposta por Winnicott e Klauber, destacando que, a contrario sensu, a rigidez deve ser entendida como expressão da parte psicótica do analista. Junto com a concepção "enquadrada" da contratransferência, a historização passou a ocupar um lugar central na psicanálise contemporânea - ao mesmo tempo em que, sem que se perca o conceito de pulsão, diminuiu a importância da relação de objeto e da ênfase na destrutividade que caracterizaram a psicanálise pós-freudiana -, resgatando-se a dimensão traumática da sexualidade da psicanálise freudiana, como procuraremos ilustrar com a descrição de um caso clínico.

Conforme Urribarri, acima citado, a interpretação não é apenas decifração, mas também poiesis, criação de sentido, edição do inédito. O objetivo de uma interpretação, para Green (2005), não é produzir insight, mas sim facilitar o funcionamento psíquico que pode ajudar o insight a emergir. Seguindo esse pensamento, Busch (2007) salientou que o que a psicanálise pode oferecer é a capacidade de ganhar acesso à própria mente, advertindo que o que muda em psicanálise não é o que os pacientes pensam ou sentem, mas como os pacientes pensam sobre o que pensam e como se sentem a respeito do que sentem. Diz:

Basicamente, nós não mudamos fantasias inconscientes fundamentais, não dissolvemos conflitos inconscientes nem erradicamos medos básicos. O que ocorre em psicanálise - e nenhum outro tipo de tratamento pode fazer essa afirmação - é uma nova habilidade de produzir processos de pensamento mais altamente desenvolvidos para dar conta de conflitos e fantasias inconscientes (Busch, 2007, pp. 155-156).

Ao conceber o modelo do palco para explicar o processo de mudança psíquica no contexto da psicanálise contemporânea, levamos em consideração a possibilidade de relacionar e integrar vários conceitos psicanalíticos - freudianos, pós-freudianos e de autores atuais de diversas correntes -, com a vantagem de tornar mais visíveis os profundos conhecimentos neles implicados mediante a utilização de uma linguagem iminentemente visual. Por essa característica, o modelo do palco representa um instrumento que possibilita pensar o espectro de patologias que vai além das resultantes da repressão, cujo tratamento visa a restabelecer as funções egoicas que conferem ligação à pulsão, criando representações do objeto e do conflito no caminho da simbolização. Além disso, o modelo contempla as mudanças observadas na postura do analista frente ao seu paciente, independentemente do diagnóstico, configurando, do nosso ponto de vista, o duplo vértice da psicanálise contemporânea.

 

Palco da sessão analítica

No proscênio, temos uma parte invariável - o cenário - e uma parte variável - as cenas. O cenário, ainda que imaginário, é indispensável para o entendimento das cenas. Transposto o modelo para o teatro analítico, o cenário é representado pelo mundo interno do paciente e do analista, e as cenas, pelo diálogo paciente-analista. A mudança psíquica surge em decorrência do diálogo, portanto, das cenas, resultando em uma alteração do mundo interno (cenário). A partir desse momento, confrontadas com o novo cenário, as mesmas cenas são modificadas em seu conteúdo. No entanto, não se trata de algo que acontece instantaneamente, fruto de um insight, mas sob a forma de um "percurso", durante o qual, como diz Borgogno (1999/2004),

... a subjetividade do analista - por longo tempo um tabu para a comunidade psicanalítica - não concerne exclusivamente à sua reação afetiva, a qual, frequentemente, precisa ser calibrada e reajustada; mas concerne também, de modo mais geral, ao uso de teorias e de modelos dos quais se serve, às funções que expressa ao tentar entrar em sintonia com o paciente, às suas singulares capacidades para instaurar, conduzir, zelar e promover as condições adequadas a uma escuta e a uma comunicação eficazes. Concerne, inclusive, às muitas censuras que até hoje impedem o falar com franqueza e sinceridade, não obstante o notável avanço que poderia se originar de se fazê-lo: do expor com maior liberdade aquilo que surge na própria mente e no contato com a do paciente, desafiando os aspectos fóbicos, paranoicos e opressivos do "credo psicanalítico institucionalizado" (p. 68).

Na ideia do palco, paciente e analista protagonizam, em cada sessão, uma peça única cujo roteiro não é conhecido previamente nem encontrará repetição ou fixidez possíveis. Embora se trate de um diálogo, como assinalou Busch, antes citado, o que muda não são as palavras, mas a experiência emocional que elas promovem. Isso se deve ao fato de que o que precisa ser mudado são as experiências emocionais vividas previamente por paciente e analista e que, no encontro analítico, são revividas e ressignificadas, sendo esse o sentido da mudança psíquica. Por conta disso, não deveria o analista evitar a vasta gama de emoções e sentimentos experimentados no encontro com o paciente, porque ela fundamenta autenticamente a sua compreensão do que acontece na sessão. Conforme Heimann (1975),

... um analista que se permite abertamente pensar "em voz alta" - mostrando o seu esforço de compreensão e a sua busca passo a passo do significado - indica ao paciente que ele não se considera onisciente e o convida a dividir com ele os seus pensamentos, trazendo as suas próprias contribuições ao trabalho de descoberta da verdade (p. 474).

No entanto, é preciso ficar bem estabelecido que isso não deve ser confundido com a revelação dos aspectos pessoais do analista.

A dificuldade desse processamento decorre do fato de que tanto paciente quanto analista possuem, cada um, inicialmente, o seu próprio cenário, o seu próprio umbigo, e é olhando para ele que contracenam com o outro, que por conta disso, é sempre uma projeção. A pergunta que se impõe é como sair desse ferrolho que impede o surgimento do sentido na relação e, a partir dele, a mudança psíquica. Para que ocorra essa sintonia, é indispensável a participação do paciente hospedado no mundo interno do analista, ou seja, que o analista interaja com o paciente, colocando em jogo todos os seus sentimentos para que se crie um cenário único, uma verdade única, base da compreensão e da mudança psíquica. Em outras palavras, a mudança se opera simultaneamente na mente do paciente e do analista. Muda, inclusive, a impressão inicial que o analista tem do paciente e vice-versa.

 

Processo de mudança psíquica

O elemento principal do processo de mudança psíquica chama-se empatia, a capacidade de sentir em si ou, de acordo com Freud (1921/1976), sentir-se dentro do outro, e também sentir o outro dentro de si, correspondendo, do nosso ponto de vista, ao que Kohut (1971/1988) apropriadamente denomina de ressonância empática. O modelo desse processamento emocional é a devoção materna primária (Winnicott, 1960/1967), um estado de intensa sensibilidade, quase doença, do qual o analista deve se recuperar quando o paciente lhe permitir. Sem isso, dificilmente acontece mudança psíquica, na medida em que não se trata de um evento que ocorre uma, duas ou várias vezes, mas que deve ser entendido como uma nova experiência psíquica - no sentido de uma abertura, de uma possibilidade de substituição e de uma busca de sentido -, a qual equiparamos ao estabelecimento do "terceiro intersubjetivo" ou, ainda, do "pensamento transformativo" de Ogden (2012), quando então, diferentemente do pensamento mágico e do pensamento onírico, "o indivíduo cria novas maneiras de ordenar a experiência que geram não somente novas significações mas também novos tipos de sentimentos, novas formas de relações de objeto e novas qualidades de vida emocional e corporal" (p. 195).

Um caso clínico ilustra a importância da capacidade de o par analítico sonhar aspectos da experiência do paciente e do analista, antes não sonháveis.

Trata-se de Luana, uma mulher elegante e feminina de 36 anos, solteira, advogada e professora universitária. Graças aos esforços do pai, que fazia hora extra para arcar com as despesas familiares, Luana e seu único irmão, mais velho dois anos, puderam estudar em bons colégios e realizar um curso superior. Por conta disso, nutria grande admiração pelo pai e com ele se identificava, particularmente na forma reta de se conduzir na vida. Opostamente, em relação à mãe, sentia uma grande distância, determinada pela maneira nada convencional com que esta abordava os aspectos ligados à sexualidade, revelando sem pudor suas vivências nessa área desde quando a filha era ainda uma criança. Acredita que essa experiência fez com que acabasse sentindo nojo do ato sexual, o qual também se revestia de uma expectativa de violência não bem definida, que relacionava com as cenas da mãe matando galinhas e com as cadelas da casa no cio sendo cobertas por enormes e agressivos cães de rua.

Luana iniciou sua análise há dois anos, movida por sentimentos de fracasso e desilusão em seus relacionamentos amorosos, os quais se encontravam em franco contraste com o sucesso profissional e acadêmico alcançado. Na situação analítica, inicialmente mostrou-se bastante protegida: cumprimentava o analista com simples movimento de cabeça, não apertava a mão nem na entrada nem na saída, não costumava relatar alguma coisa que promovesse a mínima aproximação com a pessoa do analista, e quando este lhe apontava algum desejo nesse sentido, ela, expressando uma usual competitividade, costumava dizer: "Isso é o que tu pensas!" firmando bem o "tu". Também procurava deixar claro, em todas as situações, dentro e fora da análise, que sempre se encontrava com a razão, não sendo raro se sentir não entendida no trabalho.

Na opinião do analista, Luana era uma paciente com uma fixação fálico-uretral que apresentava um quadro clínico de fobia defensivamente bem-estruturado, configurando uma caracteropatia de difícil acesso terapêutico. Em função disso, colocou como meta inicial do tratamento estabelecer uma aliança de trabalho razoável com a paciente a fim de viabilizar a abordagem de seus conflitos inconscientes, aparentemente fechados a sete chaves. Contudo, com o passar do tempo, ele sentiu que perdera totalmente a sua espontaneidade quando percebeu que mais se preocupava com a forma de falar - as palavras a serem usadas - do que com o que falar, ou seja, com o conteúdo de suas interpretações, comentários, observações e perguntas. Com frequência, a paciente, irritada, dizia que a sua intervenção havia sido totalmente inoportuna, justificando a interrupção do aparente fluxo associativo e, por duas vezes, levantando-se para ir embora. Ela parecia uma pessoa intocável e voltada integralmente para si.

Devido a isso, em alguns momentos, o analista chegou a pensar em desistir por não ver futuro no tratamento. De fato, quem assistisse às cenas desse palco analítico provavelmente não entenderia os diálogos proporcionados por esse intercurso, tendo em vista que, no cenário do analista, Luana competia com a mãe pelo amor do pai, a quem procurava seduzir; porém, ameaçada pela ansiedade de castração, simultaneamente o rechaçava. No entanto, como foi visto mais tarde, o mundo interno, ou seja, o cenário da paciente era bem outro: algo anterior à etapa edípica havia ocorrido. Luana tinha dormido no quarto dos pais até os cinco anos de idade - uma experiência que construiu um cenário traumático, marcado por uma simultaneidade de excitação e medo aterradores.

O analista somente se deu conta dessa realidade psíquica - até então inacessível pela abordagem clássica - em uma sessão em que a paciente, como fazia com alguma frequência, contou não ter conseguido dormir bem na noite anterior. Dessa vez, revelando mais empatia com as dificuldades da paciente, ele deixou de lado a tentativa habitual de vincular essa ocorrência ao tratamento e passou a investigar com ela o que poderia ter acontecido em sua vida real que lhe perturbara o sono. Luana contou que assistira na tv a um antigo filme cujo nome não lembrava, mas que logo o analista se deu conta de se tratar de O dia do gafanhoto, de 1975, do diretor John Schlesinger, que traça um panorama de Hollywood e de diversos personagens e estereótipos da indústria cinematográfica dos anos 30. A lembrança que o analista tinha desse filme era da angústia que lhe causara, razão pela qual o viu mais de uma vez. Trata-se de uma história que começa com excitação e desejo e acaba com uma trágica cena de violência, como aparentemente Luana havia vivido a cena primária. Tendo como tema o filme, que de acordo com o modelo de mudança do palco corresponde a um cenário comum a paciente e analista, pela primeira vez eles puderam conversar fluentemente sobre um assunto, revelando o estabelecimento de uma "sintonia empática" entre ambos. Como diz Ogden (2012), são necessárias duas pessoas para que alguém possa sonhar suas experiências mais perturbadoras. A partir desse momento, uma mudança psíquica começou a se processar no percurso analítico de Luana, que deixou de dizer ao analista o que, acertadamente, até então costumava dizer: "Isso é o que tu pensas!" frase que poderia ser substituída por "Falta poiesis no que tu pensas".

O título do filme alude à violenta devastação promovida por uma nuvem de gafanhotos que, por onde passa, não deixa inscrição, apenas desorganização e trauma, correspondendo a um fragmento traumático não representado na mente da paciente e à passagem de um conflito sexual para um conflito de existência. Nesse sentido, Green (2012) chama a atenção para o fato de haver, no mundo interno, um "objeto-trauma" que ameaça os alicerces narcísicos do paciente, contra o qual este se defende desobjetalizando seu próprio funcionamento psíquico. Vê-se, nessa situação, a importância do enquadre interno do analista, próprio da psicanálise contemporânea, que conforme Urribarri (2012), concebe o trabalho psíquico do analista como um eixo conceitual terciário, que procura incluir a atenção flutuante e a contratransferência como dimensões parciais e complementares de um processo complexo, que ainda leva em consideração a imaginação, a criatividade, a sensibilidade e a regressão formal do pensamento do analista como modos de dar representabilidade ao não representado do paciente.

Em síntese, a obtenção de um "psiquismo para dois corpos" (McDougall, 1978/1987), configurando um vínculo que, segundo Puget (2009), gera experiência a partir de uma "pre-sentação", que produz conhecimento e não apenas o reproduz, como na representação. A isso chamamos de cenário convergente, quando então é possível paciente e analista criarem uma cena que finalmente pode ser entendida: não são mais dois indivíduos falando sozinhos. Esse momento de grande criatividade do par analítico configura o que Bion (1987) definiu como "unidade humana". Em outras palavras, o pensamento psicanalítico atingiu um estágio em que não se pode mais conceber um analista e um paciente que tomam um ao outro como objetos; é preciso encará-los como uma unidade, e tudo o que se passa na análise deve ser considerado decorrente da inter-relação paciente-analista. Para Ogden (2004/2006), esse movimento dialético de subjetividade e intersubjetividade no setting analítico, que tem como interface o enquadre interno, constitui um aspecto central da psicanálise contemporânea.

 

Comentários finais

A título de conclusão, podemos dizer que a mudança psíquica é a construção de um sentido no percurso analítico que, utilizando um modelo de Bion (1962/1966), vai ao encontro de O, tomado como infinito, e que, para Levinas (1961/1988), é a face do outro. Diz esse filósofo que a presença do outro nos põe diante do infinito da alteridade, o território da hospitalidade de Derrida (2003/2004). É neste contexto que Nosek (2009) situa a genitali-dade - não no sentido concreto da ação adulta sexual, mas do encontro de duas subjetividades, aberto a infinitas possibilidades, inclusive de mudança psíquica. Precisamos imaginar um momento do teatro psicanalítico no qual se descortina uma cena em que o sentido nasce para o paciente e para o analista porque o cenário é o mesmo para ambos. Esse momento configura uma mudança psíquica, a qual depende da totalidade do funcionamento mental do paciente e do analista. De acordo com Green (1975/1986), historicamente a atividade do analista desenvolveu-se em três etapas: freudiana, pós-freudiana e contemporânea, mais ampla e complexa, na qual a contratransferência está enquadrada e subordinada ao trabalho de representação do analista. Como diz Urribarri (2012),

... a posição do analista [hoje] é múltipla e variável, não pode ser predeterminada nem fixa: nem como pai edípico nem como mãe-continente: a performance do analista - em sentido teatral, musical e lúdico - deverá se basear nos roteiros revelados na singularidade polifónica do campo analítico (p. 62).

De acordo com essa linha de compreensão do processo analítico, devemos considerar a sessão relatada uma produção conjunta de paciente e analista, que resultou na criação do filme como um "objeto analítico" (Green, 1975/1986). Essa experiência intersubjetiva de abertura, de busca de sentido e possibilidade de substituição, criada pelo "terceiro analítico" (Ogden, 2004/2006), é o que permite o estabelecimento do cenário único ou convergente no palco analítico. Esse trabalho se mostra indispensável na análise de estruturas não neuróticas e também na análise dos aspectos não neuróticos das estruturas neuróticas, configurando correntes psíquicas distintas, conforme assinalou Freud no Caso Dora (1905/1972) e no Homem dos Lobos (1918/1976). Ao mesmo tempo, seguindo o que destacamos inicialmente, a psicanálise contemporânea voltou a iluminar os fundamentos freudianos da experiência traumática da sexualidade - experiência que, em situações como a descrita, pode atuar na mente do indivíduo como se fosse um corpo estranho, encapsulado, que obstrui o funcionamento psíquico e que não pode ser expressa em palavras, pois não passou pelo processo de simbolização. Nos casos, como o de Luana, em que predomina a sintomatologia proveniente do inconsciente do trauma, o enquadre clássico pode ser intolerável, além de manter oculto o "objeto-trauma".

 

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Recebido em 5.1.2013
Aceito em 15.3.2013

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