Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014
EDITORIAL
Editorial
Bernardo Tanis
Editor
Narcisismo
Talvez minha mulher tenha percebido muito melhor do que eu a minha irritação, pois acrescentou logo em seguida que, se eu estava tranquilo na certeza de não ter defeitos, podia ir desfazendo minhas ilusões, porque meu nariz caía para a direita, assim...
(Luigi Pirandello, Um, nenhum, cem mil)
Há, no pensamento psicanalítico, noções cuja fecundidade e cujo poder heurístico denotam sua extrema relevância para a clínica e para a metapsicologia. Elas carregam o potencial de modificar nosso modo de conceber a subjetividade humana e seus determinantes. Sem lugar a dúvidas, o narcisismo, exposto por Freud em sua metapsicologia Introdução ao narcisismo (1914), quando ainda era um conceito em formação, constitui uma dessas teorizações. O narcisismo transforma a compreensão sobre as teorias das pulsões, a natureza do eu, a origem das instâncias e outras ideias; joga uma feixe de luz sobre o processo defensivo, abre as portas para compreensão da agressividade e das psicoses, e trilha o caminho para o segundo dualismo pulsional e a segunda tópica. Comemorando cem anos da publicação desse ensaio pioneiro, dedicamos este número da Revista Brasileira de Psicanálise a alguns dos valiosos desdobramentos que este conceito teve no nosso campo.
Damos início aos artigos do eixo temático com o trabalho de Luciane Falcão, que, além de apresentar uma excelente revisão da teoria freudiana sobre o assunto, destaca a importante contribuição do André Green, que permite a compreensão do narcisismo destrutivo à luz da segunda teoria pulsional. O trabalho seguinte, de Leticia Tavares Neves, descreve com clareza o importante desenvolvimento clínico e teórico do narcisismo em Heinz Kohut, um autor menos estudado entre nós, e depois amplia a discussão com referências à psicologia analítica do self e aos teóricos da intersubjetividade e da psicanálise relacional, importantes trilhas inauguradas nos Estados Unidos.
A noção de narcisismo ganha especial destaque no pensamento de Lacan já desde seus primeiros trabalhos sobre o estádio do espelho e a agressividade vinculada à natureza paranoica do Eu. O preciso e esclarecedor trabalho de Alan Victor Meyer ajuda-nos a compreender o alcance desta “nova ação psíquica” como formadora do eu. Além disso, destaca a visão trágica do humano, já que “a identificação à imagem primordial será sempre exterior e, portanto, a um outro de si mesmo e alienante, implicando uma agressividade interna ab initio” - uma visão trágica apresentada também por Freud, em O mal-estar na civilização.
Bion é outro dos grandes pensadores que oferecem leituras originais aos mitos de Édipo e Narciso. A relevância do mito com elemento interpretante e esclarecedor na clínica psicanalítica é apresentada de modo instigante pelo texto de Raul Hartke. Tanto os mitos como os sonhos possibilitam um ganho representativo graças à função alfa, que opera sobre a experiência emocional. Hartke oferece-nos uma rica ilustração da dimensão narcísica do complexo de Édipo e um texto aberto no qual ele, mais do que um pensamento dogmático sobre um autor, coloca em ato o vínculo K, convidando o leitor a acompanhá-lo na aventura do conhecimento.
Alberto Eiguer aborda a conceituação de Racamier da perversão narcisista e a desenvolve como um conceito em evolução e de extrema relevância clínica. Sua rica descrição clínica, as similitudes e diferenças com as configurações psicopáticas, apontam a tentativa fecunda do desenvolvimento compreensivo de uma psicopatologia complexa dos desafios clínicos. Os impasses transferenciais e contratransferencias na tarefa clínica são destacados no seu trabalho. Muitas vezes se critica a ideia de psicopatologia como se viesse a categorizar ou reduzir a singularidade de cada experiência analítica. A reflexão de Eiguer, longe disso, aponta para importância do estudo de certas estruturas. Nas suas palavras, “O desafio está lançado: como superar os obstáculos ligados às resistências do caráter?”.
Rodolfo Moguillansky, conhecido por seus estudos sobre o vínculo, amplia a perspectiva do narcisismo para a reflexão sobre a ética 1 psicanalítica. O desafio está em conceber a existência do outro e da alheidade a partir de um eu que, nos seus inícios, supõe-se autossuficiente. Reconhecer a absoluta diversidade do outro faz parte do que é necessário elaborar e atravessar para sair da esfera totalizante do eu narcísico.
Na seção Intercâmbio, e também ligado ao nosso tema central, publicamos o trabalho de René Roussillion, “O trauma narcísico-identitário e sua transferência”. Um dos grandes pensadores atuais do movimento psicanalítico, Roussillon há duas décadas vem fazendo importantes contribuições ligadas aos primeiros traumatismos, que denomina narcísico-indentitários; contribui de forma decisiva para a compreensão de patologias acompanhadas de déficit nos processos de simbolização primária e esclarece de modo muito interessante os caminhos das transferências paradoxais com analisandos desse tipo. Confluência de um pensamento freudiano com as contribuições de Winnicott, Green e outros, suas propostas vêm inspirando muitos analistas. O texto de Roussillon que publicamos constitui a base do seu pensamento e um ponto de partida para novos aprofundamentos, e somos gratos ao autor por autorizar sua publicação na RBP.
Dois trabalhos complementam o tema principal: a entrevista com Lilian Santiago Ramos, comentada ricamente por Magda Guimarães Khouri e por Marion Minerbo, e o texto de Maria do Carmo Teixeira Rainho, intitulado “Caetano Veloso: corpo, roupa e música desafiando a ditadura militar no Brasil”. Ousamos com estes convites penetrar num território não muito estudado pelos psicanalistas: a moda. A pertinência da moda à cultura e aos sistemas de identificação, bem como sua dimensão semiótica e sociológica, estudada por destacados pensadores como Barthes, Bourdieu e Agamben, tem como estudo pioneiro sobre o tema no Brasil o trabalho de Gilda de Mello Souza: O espírito das roupas, que inspirou nossa equipe a perceber o potencial de interface destes estudos com a temática do narcisismo. Acreditamos que oferecemos aos nossos leitores uma instigante abertura para um campo pouco estudado entre nós, mas imensamente rico de significações.
Integram este número também os artigos: “Sobre o destino das pulsões sexuais nos jovens atuais: vicissitudes da latência à adolescência”, um interessante trabalho sobre os desafios da adolescência nos nossos dias, fruto de um grupo de estudos de colegas de Porto Alegre, e os ricos desenvolvimentos dos analistas Pedro Sobrino Laureano, David Léo Levisky e Ligia Maria Durski & Nadja Nara Barbosa Pinheiro.
As resenhas e os lançamentos mais uma vez testemunham a vitalidade e a diversidade das novas publicações psicanalíticas.
Convidamos nossos leitores a mergulhar na leitura dos trabalhos publicados, nosso tributo à ousadia e à criatividade de Freud e àqueles que, partindo das suas descobertas, ampliaram nosso conhecimento no campo do narcisismo e seus destinos na nossa cultura e na produção da subjetividade.
A todos, uma boa leitura!
Referências
Pirandello, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Trad. Mauricio Santana Dias. São Paulo: Cosacnaify, 2001. (Título original Uno, nessuno e centomila, lançado na Itália em 1926) [ Links ]
1 Sugerimos consultar o volume 46:1 da RBP, de 2012, dedicado ao tema Ética e Psicanálise.