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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014
COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA
Fashion, desire, transience
Moda, deseo, transitoriedad
Magda Guimarães Khouri
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
A partir das reflexões desenvolvidas na entrevista concedida por Lilian Santiago Ramos, a autora destaca o caráter de mudança da moda, alinhado à dinâmica de flutuações sucessivas. Delimita seu comentário às relações específicas com a vestimenta, focalizando, sobretudo, a questão da transitoriedade no desejo e na moda.
Palavras-chave: moda; desejo; transitoriedade; cultura.
ABSTRACT
From the reflections developed in the interview with Lilian Santiago Ramos, the author highlights the constantly changing character of fashion, aligned with the dynamics of its successive fluctuations. The comments are delimited to the specific relationships with clothing, focusing mainly on the issue of transience in desire and in fashion.
Keywords: fashion; desire; transience; culture.
RESUMEN
A partir de las reflexiones desarrolladas en la entrevista concedida por Lilian Santiago Ramos, la autora destaca el carácter de cambio de la moda, alineado a la dinámica de fluctuaciones sucesivas. Delimita su comentario a las relaciones específicas con la vestimenta, resaltando, principalmente, la cuestión de la transitoriedad en el deseo y en la moda.
Palabras clave: moda; deseo; transitoriedad; cultura.
A escolha da equipe editorial da Revista Brasileira de Psicanálise pelo tema da moda reafirma a permanente abertura para a investigação de fenômenos da atualidade e convoca a pensar sobre um campo pouco explorado pela psicanálise. Como aponta Lilian Santiago Ramos:
A moda é objeto de estudo porque ela éparte do campo da cultura e da subjetividade. [...] Consequentemente, ela vai se tornar objeto de todas as ciências ou, pelo menos, ela vai permear todas as áreas do conhecimento, porque ela é cultura.
A abordagem feita pela autora oferece diversos pontos de vista, traça um panorama dos pensadores que se dedicam ao tema, indica fontes de leituras preciosas, além de expor suas inquietações quanto às formas da contemporaneidade. Deixa evidente que o tema impõe, como aponta Lipovetsky, novas perspectivas conceituais da moda. Lilian indica que a tendência, do fim do século XIX até os dias de hoje, é a investigação sobre a sensibilidade em torno da moda (Lipovetsky, 2009).
As diversas reflexões desenvolvidas na entrevista sinalizam um aumento do interesse da crítica acadêmica pelo fenômeno da moda. De acordo com Lipovetsky, podemos relacionar com a pós-modernidade o aparecimento de mais estudos sobre práticas culturais, antes desdenhadas pelos pensadores. A modernidade estava profundamente ligada à questão da história, do futuro, da revolução ou das grandes ideologias e luta de classes. Quando as questões ideológicas deixam de ser o objeto maior da reflexão filosófica ou teórica, os campos da vida privada, da individualidade, assim como da identidade da aparência, se tornam muito mais centrais (Lipovetsky, 2009). Nesse contexto, entra o desafio de redinamizar a investigação e até a problemática da moda, quebrar a monotonia do conceito baseado na estratificação social, já que todo o nosso ambiente cotidiano é organizado pela lógica da moda.
Uma particularidade essencial da moda é seu caráter de mudança, através de sucessivas flutuações. Dentro do vasto campo das transformações periódicas marcadas pela moda, delimitei meu comentário às relações específicas com a vestimenta por ser uma das formas de forte expressão da subjetividade. A roupa indica o momento histórico-cultural vivido pela pessoa, e, nesse sentido, como Lilian nos mostra, todos os adornos, ornamentos, texturas, combinações são decifráveis, porque esses símbolos são históricos, mesmo em composições que nos pareçam bastante enigmáticas, como aquelas com que muitas vezes nos deparamos nos atuais centros urbanos. Como prossegue a autora, trata-se das linguagens inscritas/escritas no corpo.
Assim, os modos de esconder e revelar o corpo pela vestimenta têm suas variações na história, e o sistema da moda não é universal. Como escreve Gilda de Mello e Souza:
De maneira geral, podemos dizer que os povos primitivos a desconhecem (talvez a grande significação religiosa e social atribuída à roupa e aos enfeites represente empecilho às manifestações de mudança), que entre os gregos e os romanos ela se limita a alguns setores, como a variação dos estilos de penteado, e que na Idade Média praticamente não existe. (Souza, 1987, p. 20)
A lógica da moda é centrada no presente, é reciclagem das formas do antigo e do contemporâneo, mas faz o passado perder sua força de imposição. As flutuações da moda podem servir como brecha para encontrar uma noção de tempo do sujeito que ocupa diferentes posições subjetivas, da sua não linearidade, da inconstância do desejo. Souza nos conduz a pensar nesse movimento ao mencionar que “sob a rígida organização das sociedades, fluem anseios psíquicos subterrâneos, de que a moda pressente a direção” (p. 25).
Para pensar na questão do desejo, retomo um dos pontos da entrevista. Na sua reflexão, a autora recorre à ideia de Giorgio Agamben que confere uma assinatura teológica ao tema da moda. Agamben diz que é no momento em que se dá a queda do paraíso que se origina a moda, abrindo uma leitura sobre a formação da subjetividade. Nessa linha de indagação, encontrei um livro do psicanalista Mauro Mendes Dias, publicado em 1997, que se vale do texto bíblico para apresentar miticamente o início da questão da moda e da roupa. Com o suporte da teoria de Lacan, Dias escreve um trabalho cujo título é justamente Moda divina decadência: ensaios psicanalíticos.
São muitas e complexas as articulações com a psicanálise desenvolvidas neste estudo, as quais, sem dúvida, ampliam consideravelmente a discussão em pauta. Elegi apenas alguns pontos para dar sequência às aproximações com o pensamento psicanalítico.
No seu projeto, Dias escreve que, no decorrer das elaborações, “pôde-se constatar que a moda permite recontar, pela roupa, a aventura da constituição humana” (1997, p. 14). Acompanhando o mito da criação do homem pela tradição bíblica, o autor descreve algumas passagens que, de forma mítica, inauguram o homem como ser de linguagem: Adão e Eva estavam a princípio nus no paraíso, e não se envergonhavam. Após cederem à tentação da serpente, seus olhos se abrem e ambos constatam que estão nus. É nesse tempo de tentação e queda que encontramos a primeira menção à roupa: ao se verem nus, cosem folhas de figueira e delas fazem umas cintas.
Uma vez expulso do paraíso sem sexualidade, o homem haverá de se conformar com sua condição sexuada, desde sempre associada à vestimenta. Por isso mesmo a nudez paradisíaca nada mais faz senão revelar uma condição de impossibilidade. Impossibilidade que atesta, com diferentes nomes - natureza, nudez etc. - uma condição ausente de simbolização. (Dias, 1997, p. 27)
Moda, roupa e sexualidade se veem entrelaçadas nesse tempo em que tudo começou. De acordo com o autor, a queda do paraíso e a costura das folhas de figueira indicam que “a operação da moda é divina, é pura criação. Criação essa que decai em produto, sob a forma de roupa, a ser usada com o semelhante. Nada mais adequado do que nomear seu processo como 'divina decadência'” (Dias, 1997, p. 27).
Nesse sentido, a descoberta da sexualidade introduz o homem na cultura, mediado pelo olhar do outro, e a moda ganha um valor simbólico, materializada na roupa. Por haver desejo, o homem decaiu do paraíso, nascendo a subjetividade em conflito, que não lhe dará sossego. Como aponta Dias, torna-se impossível ficar totalmente nu; a moda introduz, pela roupa, um ser que é vestido por linguagem e desejo. Toda essa análise propõe uma abertura para pensarmos que o efêmero da moda pode ser interpretado como a expressão daquilo que é específico do desejo: sua transitoriedade.
No seu belíssimo texto “Sobre a transitoriedade”, Freud aponta que a percepção do caráter transitório de todas as coisas evoca uma antecipação da morte, o que remete a um luto a ser superado. No contraponto da exigência de imortalidade, escreve que “o valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição” (1916/1996, p. 317).
Na descrição clínica, observamos o que mais chama a atenção no modo como a pessoa se apresenta, o que a vestimenta quer dizer. Podemos pensar nas posições em que o sujeito se coloca diante da transitoriedade da moda e do desejo.
Um sujeito que adere à moda, que é escolhido pela moda, perde sua singularidade. Sobre esse lado mortífero da moda, Lilian levanta questões que tocam o centro da problemática contemporânea - um achatamento do sujeito, corpos destituídos de subjetivação, com o desejo sendo aplacado e a moda tomando uma forma imperativa.
Se a moda for o modo da subjetividade sustentada pela conexão com o corpo real, encontramos o sujeito, o estilo e o desejo. Usar a roupa da melhor maneira possível significa, de alguma forma, um saber de si.
A roupa funciona como uma segunda pele, tem forma, tem cheiro, tem temperatura. Criar um estilo pode ser um trabalho psíquico de uma vida, tensão permanente para se reconhecer naquilo que se veste.
Referências
Dias, M. M. (1997). Moda divina decadência: ensaio psicanalítico. São Paulo: Hacker/Cespuc. [ Links ]
Freud, S. (1996). Sobre a transitoriedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 317-319). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916). [ Links ]
Lipovetsky, G. (2009). O império do efêmero: a moda e seus destinos nas sociedades modernas (M. L. Machado, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Souza, G. de M. e. (1987). O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Correspondência:
Magda Guimarães Khouri
Rua da Consolação, 3.741/22
05679-065 São Paulo, SP
Tel.: 11 3083-3002
magdakhouri@uol.com.br
Recebido em 12.08.2014
Aceito em 22.08.2014