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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014
ARTIGOS TEMÁTICOS: NARCISISMO
A metamorfose do narcisismo: Lacan, o estádio do espelho e a agressividade
The metamorphosis of narcissism: Lacan, the mirror stage and aggressiveness
La metamorfosis del narcisismo: Lacan, la fase del espejo y la agresividad
Alan Victor Meyer
Psicólogo clínico pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), psicanalista membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Corpo Freudiano
RESUMO
A temática do narcisismo em Lacan é abordada neste artigo a partir de dois textos iniciais do autor, publicados nos Escritos - um sobre o famoso estádio do espelho e outro sobre a agressividade. Em ambos, temos a importância da imagem, tanto através do espelho como do outro, o semelhante (semblable). Para a influência marcante da etologia na elaboração da problemática da imagem, recorremos a um artigo de Bento Prado Jr., que aborda o tema a partir dos dois primeiros seminários de Lacan. Trata-se no seu conjunto da formação do Eu e da própria constituição do sujeito humano.
Palavras-chave: narcisismo; imagem; eu (je); Eu (moi); etologia; agressividade; prematuração.
ABSTRACT
In this article, two texts of Lacan's initial writings, published in Écrits - on the mirror stage and on aggressiveness -, are analysed from the perspective of narcissism. In both we have the importance of the image in the mirror and in relation to the other (semblable). In order to show the importance of ethology for the establishment of the image, we consider an article by Bento Prado Jr. in which the author analyzes the first two seminars of Lacan. The establishment of the I and the origins of the human subject constitute its broader perspective.
Keywords: narcissism; image; I (je); me (moi); ethology; aggressiveness; prematurity.
RESUMEN
La temática del narcisismo en Lacan es abordada en este artículo a partir de dos textos iniciales del autor, publicados en los Escritos - uno sobre la famosa fase del espejo y otro sobre la agresividad. En ambos tenemos la importancia de la imagen tanto a través del espejo como del otro, lo semejante (semblable). Para la fuerte influencia de la etología en la elaboración de la problemática de la imagen, recurrimos a un artículo de Bento Prado Jr., que trata el tema a partir de los dos primeros seminarios de Lacan. Se trata en su conjunto de la formación del Yo y de la propia constitución del sujeto humano.
Palabras clave: narcisismo; imagen; yo (je); Yo (moi); etología; agresividad; prematuridad.
Atribui-se a Ovídio, autor das Metamorfoses, nosso conhecimento do mito de Narciso. Nesse mito, dois aspectos chamam nossa atenção: o espelho formado pela água límpida da fonte, no qual Narciso contempla e se apaixona pela sua imagem, e sua metamorfose, ou transformação na flor narciso. Não pretendo aqui entrar nos detalhes ou analisar esse mito complexo e suas inúmeras transformações ao longo da literatura e da pintura. As duas características mencionadas são importantes ao considerar a temática de Narciso que Freud introduziu na psicanálise, dando início a outro longo percurso na história da disciplina. Essa temática remete à questão das origens da própria constituição do ser humano - em Freud, que postulou um narcisismo primário como fundamento do humano; e em Lacan, com seu famoso artigo sobre o estádio do espelho, condição imprescindível para a constituição do sujeito. Nesse artigo, Lacan, mesmo sem se referir ao mito, vai abordar a relação entre o sujeito e a imagem, seja através do espelho ou no olhar do próximo, podendo ser considerado no seu todo, o estádio do espelho, como inserido no campo narcísico.
O texto de Freud de 1914, “Para introduzir o narcisismo”, comemora hoje 100 anos. Lacan o examina em detalhes no Seminário 1, de 1953-1954, Os escritos técnicos de Freud, especialmente nos capítulos 9, “Sobre o narcisismo”, e 10, “Os dois narcisismos”, numa discussão apaixonante com alunos que se tornaram expoentes na psicanálise francesa, como Serge Leclaire, Wladimir Granoff, Françoise Dolto e outros. Nessas discussões, o texto do estádio do espelho, publicado em 1949, está constantemente presente. Pois bem, antes de procurarmos fazer uma apresentação do estádio do espelho, lembraremos uma citação de Freud que nos parece fundamental. Ele diz:
É uma assunção importante que uma unidade [Einheit] comparável ao Eu não pode estar presente no indivíduo desde o começo; o Eu deve ser desenvolvido. As pulsões autoeróticas, no entanto, estão presentes desde o início; algo portanto deve acontecer ao autoerotismo, uma nova ação psíquica [eine neue psychische Aktion], para formar o narcisismo. (Freud, 1914/1982, p. 44)
Qual era essa nova ação psíquica que deveria iniciar o narcisismo e transformar o eu num objeto libidinal nunca ficou claro nas elaborações de Freud. A função do estádio do espelho pretende justamente trazer uma solução para essa questão, pois Lacan pensa essa passagem no início pelo investimento libidinal da imagem, e não do Eu (moi).1
A questão do narcisismo em Lacan está intimamente ligada à formação do eu. O texto princeps é “O estádio do espelho como formador do eu, tal como nos é revelado na experiência psicanalítica”, apresentado no congresso de 1949 da Associação Psicanalítica Internacional (ipa) em Zurique, publicado nos Écrits em 1966, e que foi originalmente exposto em Marienbad, em 1936. Em 1948, Lacan publicou “A agressividade em psicanálise”, que pode ser considerado uma expansão ou desenvolvimento do artigo anterior (apesar da data de 1948). Nesses dois artigos estão contidas a primeira elaboração do tema do narcisismo e a questão da agressividade que lhe é correlativa. São, portanto, textos do início da obra de Lacan, que ele mesmo considera “meus antecedentes” e que serão ampliados e reconsiderados ao longo de toda sua evolução. Lacan, ao fazer um elogio a Freud por sua honestidade, diz que isso “torna um texto de Freud sempre um texto aberto, jamais fechado, como se todo o sistema estivesse lá” (1975/1979, p. 100). O mesmo podemos dizer do texto de Lacan, autor cujo pensamento e apreensão da experiência analítica irão se transformando e reformulando ao longo do seu percurso. No presente artigo, pretendemos focar esse início do seu pensamento, que está essencialmente centrado no estabelecimento da dimensão do imaginário (referido à imagem, e não à imaginação), elemento fundamental da sua trilogia junto com o simbólico e o real.
A temática do espelho tem uma longa história antes de Lacan, a começar por um comentário de Charles Darwin, num artigo de 1887, em que ele diz ter percebido como seu filho de 8 meses foi capaz de associar sua reflexão no espelho com seu nome. Ele também comparou a reação do bebê com a reação do macaco, observando que o bebê fica fascinado pela própria imagem, enquanto os macacos superiores se comportam de forma diferente - ao tentar procurar pela mão refletida atrás do espelho, ficam decepcionados e irritados, logo perdendo qualquer interesse. James Mark Baldwin, em 1894, salienta a importância da imitação para o processo de maturação. Menciono esses autores só como exemplo. Dentre aqueles citados diretamente por Lacan estão: Charlotte Bühler, a quem Lacan atribui a importância do transitivismo; Wolfgang Köhler, autor influente da psicologia da forma (Gestalt), a quem deve a referência à Aha-Erlebnis (a vivência do Aha); e Henri Wallon, em cuja obra o termo usado por Lacan, stade du miroir, já aparece num artigo de 1931, “Comment se développe chez l'enfant la notion de corps propre” (“Como se desenvolve na criança a noção de corpo próprio”) - Lacan só o cita no artigo sobre a agressividade, mas sem dúvida podemos dizer que é ele quem dá a descrição original do estádio do espelho; esse não reconhecimento por parte de Lacan é criticado por Borch-Jacobsen em seu livro Lacan: the absolute master. Trago essas referências apenas para lembrar que as ideias expostas nesses artigos estão longe de serem originais, o que não invalida o fato de que as transformações que produziram no campo analítico tenham sido essenciais para a elaboração do imaginário, do eu e do narcisismo.
Lacan inicia seu texto salientando a importância do reconhecimento pelo infans2 de sua imagem no espelho, referindo esse reconhecimento à experiência já mencionada pelo termo Aha-Erlebnis, “onde se exprime para Köhler, a apercepção situacional, tempo essencial do ato de inteligência” (1949/1998b, p. 96). Faz a comparação com os macacos, que não demonstram tal reconhecimento e logo perdem interesse na imagem refletida. A relação dos movimentos do bebê com a imagem refletida aponta para um “complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações” (p. 97).
A seguir, faz a descrição do espetáculo cativante do bebê diante do espelho, lembrando que desde Baldwin sabemos que isso se dá entre 6 e 18 meses de idade. Lacan relata como a criança,
ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial (o que chamamos na França um trote-bébé [um andador]), supera numa azáfama jubilatória os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem. (Lacan, 1931, p. 97)
Posteriormente, Lacan irá salientar a importância da validação pelo adulto do momento em que a criança reconhece a imagem como sendo sua. Esse momento será crucial para a fundação do psíquico da criança, momento em que toma consciência de si.
Essa atividade é compreendida como uma identificação, que implica a “transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem [...] indicada pelo antigo termo imago” (Lacan, 1931, p. 97). Essa assunção jubilatória do infans
parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (Lacan, 1931, p. 97)
Essa imagem-Gestalt ou imago, nos dirá Lacan, é “mais constituinte do que constituída” (p. 98) - afirmação que chama a atenção, pois a percepção do corpo próprio não pode ser considerada como constituída pela exteriorização por parte do infans, mas é, pelo contrário, constituída através dessa imago. Essa imagem, sendo primordial, anterior à constituição do sujeito, será considerada por Lacan como ligada à espécie. Logo adiante, no mesmo texto, dirá que a “maturação da gônada da pomba tem como condição necessária a visão de um congênere, não importa de qual sexo” (p. 99). A seguir, dá o exemplo do gafanhoto migratório, no qual a transição da forma isolada para a forma gregária é obtida ao ser exposto “à ação exclusivamente visual de uma imagem similar” (p. 99). Conclui dizendo que são “fatos que se inscrevem numa ordem de identificação homeomórfica que seria abarcada pela questão do sentido da beleza como formadora e como erógena” (p. 99).
A essas considerações etológicas podemos atribuir todo o peso da definição que Lacan dá à função do estádio do espelho: “revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade -ou como se costuma dizer, do Innenwelt [mundo interior] com o Umwelt [mundo em torno]” (p. 100). Mas essa relação com a natureza é alterada pela “verdadeira prematuração específica do nascimento no homem” (p. 100). Trata-se da incapacidade do infans de dominar suas funções motoras e da incompletude de sua maturação neurológica, o que está implícito na noção freudiana de Hilflosigkeit (incapacidade de ajudar a si mesmo).
Lacan considera como o fato da prematuração lança o sujeito numa dialética temporal, “que projeta decisivamente na história a formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação” (p. 100). Nesse sentido, o estádio do espelho abre-se para o futuro em vez de para o passado. Por outro lado, as consequências desse modo de ser levarão Lacan a considerar “o engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante” (p. 100). Nessa origem do eu está prefigurada a dimensão alienante do Eu. Aqui também está a importância da introdução da noção de sujeito, como sujeito do inconsciente que jamais será associado ao Eu. Haveria muito a discutir sobre esse ponto, inclusive a interpretação que Lacan dará da famosa frase de Freud “Wo Es war, soll Ich werden”,3 num sentido inverso da psicologia de ego.
O corpo despedaçado das origens é algo já trazido pelos gregos em relação ao infans e que Lacan diz aparecer regularmente nos sonhos, “quando o movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo” (p. 100). Toda essa dimensão, Lacan lembra como presente na pintura visionária de Hieronymus Bosch. Em oposição a tais fantasias e sonhos, a formação do eu aparece também simbolizada por um campo fortificado ou como a busca do castelo interior e outras que surgem como metáforas espontâneas “para designar os mecanismos de inversão, isolamento, reduplicação, anulação e deslocamento da neurose obsessiva” (p. 101).
Até aqui acompanhamos de perto o texto sobre o estádio do espelho, mas abro agora um parêntese para melhor clarificar todas essas referências à etologia e à psicologia da forma em Lacan, apresentando parcialmente um artigo de meu mestre e amigo Bento Prado Jr., publicado no livro Filosofia da psicanálise e intitulado “Lacan: biologia e narcisismo (ou a costura entre o real e o imaginário)” (1990).
Nesse texto, Bento Prado Jr. faz uma análise aprofundada da influência da etologia em Lacan, que será fundamental para ligar a teoria analítica à constituição dos objetos. Não podemos aqui acompanhar toda sua brilhante argumentação, sustentada nas formulações dos dois primeiros seminários de Lacan. Mas um ponto importante é a crítica que faz Lacan ao objetivismo, “esse objetivismo que consiste em identificar realidade e objetividade” (Prado Jr., 1990, p. 56). Entretanto, esse antiobjetivismo não implica um solipsismo. Trata-se de “um antissolipsismo paradoxal, já que se justifica sobre o fundo da introdução do conceito de narcisismo como chave metapsicológica” (p. 56). Aqui Narciso não é “Solus Ipse”, mas “Alter e Ipse”, que “se articulam necessariamente na ideia de narcisismo, e a constituição centrípeta do sujeito, através da intervenção da alteridade, é condição da constituição do objeto” (p. 56). Nesse sentido, o importante está na dependência do sujeito para a constituição do objeto. Bento nos dá uma citação do Seminário 2, que apresento apenas parcialmente, na qual Lacan diz:
“Para que haja relação de objeto, é necessário que haja anteriormente relação narcísica do Eu e do outro. Ela é, aliás, a condição primordial de toda objetivação do mundo exterior - tanto da objetivação ingênua, espontânea, quanto da objetivação científica” (Lacan, 1978, p. 118).
Essa afirmação obviamente tem um impacto tremendo sobre a epistemologia racionalista, mas também sobre o moralismo e o geneticismo, “já que a gênese das relações de objeto é organizada teleologicamente a partir de uma origem essencialmente egocêntrica, em direção de uma etapa final de relação madura e genital com o objeto” (Prado Jr., 1990, p. 58). A crítica, portanto, se dirige a uma dimensão bem mais abrangente do que a psicologia do ego, pois sabemos que as noções de “relação madura e genital”, de cunho nitidamente moralista, teve ampla difusão no meio analítico.
A seguir, Bento se pergunta se Lacan, ao salientar essa estranha assimilação que faz quando fala de relação narcísica como condição da relação de objeto e da objetivação científica, não estaria caindo “no pântano do mais radical psicologismo” (p. 59). É justamente para esclarecer esse problema que o exame das referências etológicas em Lacan é importante. Assim, continuarei percorrendo o texto de Bento Prado, mesmo que fundamentado em escritos posteriores ao estádio do espelho, pois permite retroativamente apreender em toda sua amplitude essa influência da etologia na constituição da imagem e, portanto, do sujeito.
Lacan afirma que o “real é absolutamente sem fissuras” e, no mesmo parágrafo, que “o holismo recíproco, a posição correspondente de um Umwelt e de um Innenwelt é uma petição de princípio no ponto de partida da investigação biológica” (1978, p. 122). Lacan refere-se a von Frisch, o que Bento afirma ser um lapsus linguae, pois a referência aos termos Innenwelt e Umwelt nas considerações etológicas se baseia em von Uexküll. Seja como for, a questão é que se o real é sem fissuras, ou seja, pleno e sem descontinuidade, é necessário pensar como se introduz “o corte ou a descontinuidade, sem os quais o real não é articulável, ou seja, dizível” (Prado Jr., 1990, p. 62). Numa passagem do Seminário 1, Lacan fala da experiência de Tinbergen - etólogo famoso - com o esgana-gata, também conhecido como peixe-espinho: para que haja copulação com a fêmea, é preciso que o macho adquira belas cores no ventre e no dorso; porém, basta simular estas marcas (Merkzeichen) que obterá o mesmo efeito sobre a fêmea. O que é importante nesses experimentos para Lacan, salienta Bento Prado, é a construção de um modelo mecânico-energético da emissão do comportamento instintivo e “sobretudo a possibilidade de logro, ou da emissão na ausência do Merkzeichen adequado, ou seja, o peso do imaginário na emissão do comportamento” (p. 63).
Na continuação, Bento Prado assinala que nesse modelo há uma imbricação funcional entre sua mecânica interna e a estimulação externa, entre os padrões endógenos de comportamento e seus desencadeadores externos. Temos aqui o círculo funcional (Funktionkreis) de von Uexküll. É isso que leva Lacan a falar num “holismo recíproco” ou de uma “harmonia preestabelecida” no modelo biológico do instinto. Esse círculo funcional implica uma distinção entre mundo real e mundo de objeto. Assim, descrever a anatomia de um organismo implica também descrever o modo pelo qual filtra o mundo que lhe é externo, por meio do qual introduz a descontinuidade no real sem fissuras, constituindo seu mundo próprio. O termo Umwelt é utilizado por von Uexküll para designar essa “bolha” que cerca cada animal e que cada animal carrega consigo (p. 64).
O que Lacan não aceita é “a aplicação desse esquema ao comportamento humano, ou a superposição entre as noções de instinto e de pulsão” (p. 64). Entretanto, “Lacan lança mão do modelo etológico para definir o estatuto da 'subjetividade animal', radicada na dimensão do imaginário” (p. 65). Aqui, Bento Prado menciona um momento do Seminário 1 em que Lacan faz referência à teoria weissmaniana da imortalidade do plasma germinativo, levantada por Freud: Lacan se pergunta, do ponto de vista psicológico, se o que o indivíduo é levado a propagar pelo instinto sexual é a substância imortal no plasma germinativo. Diz então: “claro que não, porque o que se propaga, com efeito, é bem o indivíduo. Só que ele não se reproduz enquanto indivíduo, mas enquanto tipo” (Lacan, 1975/1979, p. 143).
O termo “tipo” tem aqui uma grande importância,
pois é como se o instinto sexual funcionasse a partir de um esquema especular em que a imagem é o tipo, ou a “essência genérica”. Narcisismo animal, ele é também o primeiro narcisismo, o Selbstgefühl (sentimento de si), que precede e funda a Selbstbewusstsein (consciência de si) ou a ordem simbólica. (Prado Jr., 1990, p. 65)
A seguir, Bento Prado cita um trecho do Seminário 1 em que Lacan retoma uma questão de Octave Mannoni ao discutirem o texto de Freud “Para introduzir o narcisismo”:
Há pouco, Mannoni falava dos dois narcisismos. Há inicialmente, com efeito, um narcisismo que se relaciona à imagem corporal. Essa imagem é idêntica para o conjunto dos mecanismos do sujeito e dá a sua forma ao Umwelt, na medida em que é homem e não cavalo. Ela faz a unidade do sujeito e nós a vemos se projetar de mil maneiras, até no que se pode chamar a fonte imaginária do simbolismo, que é aquilo através do que o simbolismo se liga ao Selbstgefühl, que o ser humano, o Mensch, tem do seu próprio corpo. (Lacan, 1975/1979, p. 147)
Bento Prado assinala nesse texto a passagem do real ao imaginário e deste ao simbólico. “A ideia de Umwelt ou de 'narcisismo animal' serve para introduzir, nas bordas do real, um elemento que já o transcende, a esfera da pura imagem ou do irreal” (1990, p. 66). Esse papel do espelho no comportamento do esgana-gata tem sua importância “como uma espécie de confirmação externa da teoria lacaniana do imaginário e do famoso estágio do espelho” (p. 66). Assim, diz Bento Prado,
tudo se passa como se o instinto sexual - ou seja, uma estrutura ainda puramente biológica - provocasse uma espécie de descompressão ontológica, responsável pela produção de fissuras (pensemos no sujeito que se projeta “de mil maneiras”, através do real, em direção a sua própria imagem especular) na superfície até então lisa do Ser de Parmênides, transformando-o num imenso espelho faturado. (Prado Jr., 1990, p. 66)
Todo esse percurso serviu para pôr em perspectiva a importância da imagem (Gestalt) na fundação do primeiro narcisismo. Em seguida, Bento Prado nos fala do outro narcisismo, em que a sexualidade se desfuncionaliza, se distancia da “coisa natural, neutraliza a dimensão da necessidade ou da carência que eram preenchidas pela mediação da imagem” (p. 66). Essa passagem ao imaginário já antecipa a “passagem do círculo funcional do instinto ao regime anárquico das pulsões que, nele apoiado (Anlehnung), institui uma nova ordem, a ordem do desejo ou da sexualidade humana” (p. 66). Esse segundo narcisismo é descentrado pelo outro: aqui Narciso não é Solus Ipse, pois, como diz Lacan, o alter ego ideal vem fundir-se ao Ich Ideal (eu ideal). O que fica claro na seguinte citação de Lacan:
A identificação narcísica - a palavra identificação, indiferenciada, é inutilizável -, a do segundo narcisismo, é a identificação ao outro que, no caso normal, permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral (Lacan, 1975/1979, p. 148).
Finalizando essa breve referência ao texto de Bento Prado Jr., tão esclarecedor de uma questão bastante complexa desse início do pensamento de Lacan, faço uma última citação, em que ele comenta, com um toque poético, a passagem do imaginário ao simbólico: “Como se as imagens que flutuam sobre a continuidade plena do real abrissem espaço para a ancoragem do simbolismo ou para o desdobramento do desejo” (1990, p. 67).
Após esses esclarecimentos proporcionados pela leitura feita por Bento Prado Jr., podemos seguir com o texto “A agressividade em psicanálise”, publicado em 1948, como mencionamos anteriormente: nele, Lacan afirma que a agressividade é uma tensão da estrutura narcísica. As suas considerações estão em continuidade com as aporias contra as quais se chocou o pensamento de Freud, na significação que ele “promoveu como instinto de morte” (1948/1998a, p. 104). O texto é apresentado em cinco teses. Nas três primeiras, temos uma descrição das intenções agressivas na situação de análise e considerações de natureza técnica de como lidar com elas. Vamos deixá-las de lado, apesar de sua relevância, e nos concentrarmos na quarta tese, que citamos na íntegra.
“Tese IV: A agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do Eu do homem e do registro de entidades de seu mundo” (p. 112). Aqui temos a passagem da intenção subjetiva, que corresponde a estados tão diversos como o medo fantástico, a cólera, a tristeza ativa etc., à tendência à agressão, ou seja, à fonte última da agressividade. Em oposição à multiplicidade fenomenológica, a tendência é única e Lacan dirá que essa tese implica dar “o salto da fenomenologia de nossa experiência para a metapsicologia” (p. 113).
Como vimos, na identificação narcísica o eu é um outro (je est un autre)4 pelo qual o sujeito é descentrado em relação ao indivíduo, e a imagem primordial (Urbild), que é alienante, está na origem e irá determinar a estrutura formal do Eu. Nos primeiros Seminários, Lacan lançará mão de vários esquemas ópticos, do mesmo modo que Freud, num verdadeiro “jogo de espelhos”, com a finalidade de estabelecer inúmeras diferenciações que fogem ao senso comum. Dessa forma, Lacan se diferencia e critica a concepção habitual do eu “como centrado no sistema percepção-consciência, como organizado pelo princípio de realidade”, como ficou claro na apresentação de Bento Prado Jr. Lacan ainda acrescenta que devemos partir “da função de desconhecimento que o caracteriza em todas as suas estruturas” (1949/1998b, p. 103) É a essa organização original das formas do Eu e do objeto que serão referidas todas as reações agressivas - reações que, por sua vez, as afetam.
Referindo-se especificamente à paranoia, um paradigma clínico em sua obra, Lacan elogia Janet por ter descrito tão bem como “momentos fenomenológicos” a significação dos sentimentos de perseguição, mas o critica por não lhes ter “aprofundado o caráter comum, que é precisamente que eles se constituem por uma estagnação de um desses momentos” (1948/1998a, p. 114). Antes Lacan se refere a essa estagnação como estereotipia que suspende sua dialética. Essa estagnação formal “é parenta da estrutura mais geral do conhecimento humano: aquela que constitui o Eu e os objetos, mediante atributo de permanência, identidade e substancialidade” (p. 114). É o que vimos anteriormente na crítica à objetivação, aqui constituindo o que Lacan denominou conhecimento paranoico, pois “introduz uma certa discordância entre o organismo e seu Umwelt” e, ao mesmo tempo, “é a própria condição que amplia indefinidamente o seu mundo e sua potência, dando aos seus objetos sua polivalência instrumental e sua polifonia simbólica, bem como seu potencial de armamento” (p. 114).
Como a captação pela imago da forma humana é o que vai ditar todo o comportamento da criança na primeira infância, ela será uma das formas mais arcaicas da identificação objetivante. Nesse período, “registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal” (p. 116). Lacan dá exemplos bem conhecidos, como o da criança que bate e logo diz que bateram nela, a que vê cair, chora etc.
Do mesmo modo, é numa identificação com o outro que ela vive toda a gama das reações de imponência e ostentação, cuja ambivalência estrutural suas condutas revelam com evidência, escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor. (Lacan, 1948/1998a, p. 116)
Esse transitivismo indica uma ambivalência em relação à imagem do outro e é essencial à formação do Eu. São formulações fundamentais para compreender
a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo do seu Eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar o seu Eu. (Lacan, 1948/1998a, p. 116)
Vemos aqui toda a importância da dinâmica libidinal que está presente na constituição do Eu através da sua relação erótica e organização passional, algo que é discutido em detalhes no Seminário 1, nos capítulos mencionados anteriormente. Além disso, devemos salientar que a constituição do Eu se dá, por assim dizer, pela superposição da imagem original (Urbild) com a imagem do outro - como tratado no estádio do espelho -, numa espécie de externalidade interiorizada. Por fim, essa forma irá se cristalizar
na tensão conflitiva interna do sujeito, que determina o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui, o concurso primordial se precipita numa concorrência agressiva e é aqui que nasce a tríade do outro, do Eu e do objeto. (Lacan, 1948/1998a, p. 116)
Resumindo, a identificação à imagem primordial será sempre exterior e, portanto, um outro de si mesmo e alienante, implicando uma agressividade interna ab initio, sendo então agravada pela confusão com a imagem do outro, apontada no fenômeno do transitivismo. A reflexão de Lacan nesta época está marcada pela influência de Hegel, tal como apresentado por Alexandre Kojève num seminário que se prolongou de 1936 até os anos 1950, e que foi seguido por Lacan, Merleau-Ponty, Sartre e boa parte da intelectualidade francesa da época.5 A discussão da Fenomenologia do Espírito, em especial a dialética do senhor e do escravo e a questão da luta até a morte de duas consciências pelo puro reconhecimento, marcou profundamente o pensamento de Lacan, particularmente nas questões relativas à agressividade e à constituição do Eu. A questão da alienação, também tratada por Hegel e Marx, em Lacan tem um sentido bem diferente, pois a alienação não pode ser transcendida, já que é constitutiva do sujeito, dada a cisão (Spaltung) originária, não havendo nenhuma possibilidade de totalização ou síntese no sentido dialético.
Essa visão de Lacan da constituição do humano é trágica, porque a alienação fundamental, que carrega as sementes da agressividade, é o preço a ser pago para entrar no mundo humano; lembremos, porém, que para Lacan a agressividade não coincide com agressão ou violência, mas subjaz a tais atos e a muitos outros, pois está presente nas atividades filantrópica, pedagógica, idealista e outras. Quanto à dimensão trágica, Lacan está próximo de Freud, apesar do modo distinto de sua teorização, uma vez que Freud também via na própria constituição do humano a impossibilidade do bem-estar e da paz.
Haveria ainda muitos aspectos a considerar, como a ligação do narcisismo com o complexo de Édipo, entendida como identificação secundária em relação a essas primeiras identificações, a expansão da problemática para o social e a cultura, e tantos outros, mas antes de terminar essa breve apresentação gostaria de salientar o grande apreço de Lacan por Melanie Klein, que se mostra sobretudo nesses textos em que fala do narcisismo.
Essa admiração está no fato de que Klein, “trabalhando com a criança bem no limite do surgimento da linguagem, ousou projetar a experiência subjetiva nesse período anterior”; mais adiante, por termos ficado sabendo através dela “da função do recinto imaginário primordial formado pela imago do corpo materno”, do “atlas histórico das divisões intestinas em que as imagos do pai e dos irmãos reais ou virtuais, em que a agressão voraz do próprio sujeito, negociam sua dominação deletéria sobre as regiões sagradas”, e da “persistência, no sujeito, da sombra dos maus objetos internos”, o que abre à compreensão como certas situações podem desnortear “as funções voluntárias no adulto, ou seja, qual é sua incidência despedaçadora na imago da identificação original” (Lacan, 1948/1998a, pp. 117-118).
Darian Leader,6 no seu livro Freud's footnotes (2000), apresenta no capítulo “The depressive position for Klein and Lacan” (A posição depressiva para Klein e Lacan) uma comparação minuciosa das aproximações e divergências entre os autores no que diz respeito à posição depressiva. Ambos tratam de uma situação depressiva nos primeiros 6 meses da criança - Klein no interior do drama edípico, Lacan no estádio do espelho. São teorias muito diferentes, mas que se referem à mesma intuição básica das origens. Assim, se em Lacan há sempre a divergência entre o corpo fragmentado e a totalização na imagem, junto com o momento jubilatório do reconhecimento, em Klein temos os sentimentos de destruição do Eu junto com o anseio (pining) pelo bom objeto. Em ambos, os temas da fragmentação e da totalização estão presentes, só para mencionar uma das aproximações. Aqui, no entanto, teria início um novo trabalho junto às reflexões de Leader, que não cabe no presente artigo, mas menciono este autor por sua excelência e por tratar com seriedade a importância de Klein para o pensamento de Lacan, especialmente nas suas formulações sobre o narcisismo.
Referências
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Lacan, J. (1978). Le Séminaire, livre 2: le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse (1954-1955). Paris: Seuil. [ Links ]
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Correspondência:
Alan Victor Meyer
Rua João Moura, 647/132
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Tel.: 11 3062-9810
avmeyer@uol.com.br
Recebido em 4.08.2014
Aceito em 22.08.2014
1 Lacan utiliza as duas formas do “eu” em francês, je e moi, sendo que este último refere-se ao das Ich alemão, que corresponde ao que foi traduzido pelo “ego” latino na tradução de James Strachey, enquanto o je refere-se, ao longo da obra de Lacan, ao sujeito do inconsciente. Neste artigo vamos empregar je por “eu”, e moi por “Eu”.
2 O termo “infans” refere-se à criança antes do domínio pleno da linguagem.
3 A tradução de James Strachey dessa frase - que se encontra na conferência XXXI, New introductory lectures on psychoanalysis, vol. 22 da Standard edition, p. 80 - é a seguinte: “Where id was, there ego shall be”, que em português seria: “Onde estava o Id, ali estará o Ego”, interpretada como a conquista do Id pelo Ego. Lacan, entre as suas diversas interpretações dessa frase, atribui o seguinte sentido: “Lá onde estava isso, lá, como sujeito, devo eu advir”. A questão está na problematização do cogito: para Lacan, o sujeito e o eu não devem ser identificados, mas diferenciados, com o acento recaindo sobre o sujeito do inconsciente.
4 A expressão “je est un autre”, Lacan tira de uma carta de Rimbaud a Paul Demeny, de 15 maio de 1871 (Lacan, 1978, p. 16).
5 Remeto o leitor ao número 20 da revista Ide da sbpsp (1991), em que foi publicada uma tradução de “En guise d'introduction” (de Introduction à la lecture de Hegel), de Alexandre Kojève. Nos números subsequentes, foram publicados dois artigos do filósofo Paulo Eduardo Arantes: “Kojève: um Hegel errado, mas vivo” (Ide 21) e “Hegel no espelho do dr. Lacan” (Ide 22).
6 Darian Leader é psicanalista, membro fundador do Centre for Freudian Analysis and Research (CFAR) e presidente do College of Psychoanalysts, no Reino Unido.