SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48 número3Édipo e Narciso na encruzilhada de Pótnias e no monte FíquionNarcisismo, o senso comum e a alheidade: fundamentos de uma ética psicanalítica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: NARCISISMO

 

A perversão narcísica, um conceito em evolução1

 

The narcissistic perversion, a concept in evolution

 

La perversión narcisista, un concepto en evolución

 

 

Alberto EiguerI2; Tradução Claudia Berliner

IPsiquiatra e psicanalista. Membro efetivo da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA). Membro do laboratório de pesquisas Psicologia Clínica, Psicopatologia, Psicanálise (PCPP, EA 4056) na Universidade René Descartes Paris 5 - Sorbonne Cité, Instituto de Psicologia. Presidente da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF) e diretor da revista Le Divan Familial

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo traça a evolução do conceito clínico de perversão narcísica, desde sua formulação por P.-C. Racamier, passando pelas contribuições de vários autores, sua aplicação na perícia judiciária, na empresa, no campo social, até as modalidades clínicas reagrupadas no quadro de predação moral. Sua psicopatologia é estudada; o lugar do narcisismo patológico permite compreender sua incidência nas psicoses e nos casos limite. Para a abordagem terapêutica e, sobretudo, da dificuldade da transferência, a ideia de vínculo intersubjetivo permite avançar na análise dos mecanismos que procuram implicar uma outra psique e na sua identificação.

Palavras-chave: perversão narcísica; manipulação; utilitarismo; sedução narcísica; predador.


ABSTRACT

This article recalls the evolution of the clinical concept of narcissistic perversion, from its formulation by P.-C. Racamier, the contributions of various authors, its application to legal expertise, in companies, in the social field, to the clinical methods gathered in the case of moral predation. Its psychopathology is studied; the place of pathological narcissism makes it possible to understand its incidence in psychoses and in borderline situations. For the therapeutic approach and in particular in the difficulty of transference, the idea of the intersubjective link makes it possible to advance in the analysis of the mechanisms which try to imply another mind and its recognition.

Keywords: narcissistic perversion; handling; utilitarianism; narcissistic seduction; predatory.


RESUMEN

Este artículo describe la evolución del concepto clínico de la perversión narcisista, desde su formulación por P.-C. Racamier, pasando por las contribuciones de distintos autores, su aplicación en el peritaje judicial, en la empresa, en el campo social, hasta las modalidades clínicas agrupadas en el cuadro de depredación moral. Se estudia su psicopatología; el lugar del narcisismo patológico permite entender su incidencia asociada con las psicosis y en los casos fronterizos. Para el enfoque terapéutico y, en particular, de la dificultad de la transferencia, la idea de vínculo intersubjetivo permite avanzar en el análisis de los mecanismos que intentan implicar otro psiquismo y su reconocimiento.

Palabras clave: perversión narcisista; manipulación; utilitarismo; seducción narcisista; depredador.


 

 

Tendo o conceito de perversão narcísica (p.n.) passado por certo desenvolvimento, parece-me importante redefini-lo. Foi interpretado como um equivalente da perversão moral, perversão de caráter ou perversidade. Não creio ter sido esta a intenção de Racamier (1978/1980). A perversão narcísica deveria ser considerada uma forma de perversão moral, aquela que leva o narcisismo autossuficiente aos limites extremos de sua ação, mas não um sinônimo de perversão moral. Isso não diminui a importância do narcisismo patológico em cada quadro de perversão moral.

Além disso, no que concerne à perversão narcísica, é frequente a combinação do narcisismo com dois outros elementos: a destrutividade e a tendência à extraterritorialidade - ou seja, o sujeito tenta comprometer outra psique.

Relembro outras entidades de perversão de caráter: o sadomasoquismo moral, a mitomania, a impostura, a pirofilia, a cleptomania, o jogo patológico e a relação fetichista com o outro.

Uma forma de sexualidade desviada também foi designada como perversão narcísica, a dos indivíduos que experimentam um prazer jubilatório extremo olhando sua imagem no espelho, acompanhando isso de toques nos seus corpos nus e de masturbação, durante um longo ritual. Em casos menos severos, durante uma prática sexual regular, indivíduos se excitam admirando seus corpos, posições e movimentos, fazendo uso de espelhos colocados em lugares precisos. Essas práticas, embora raras, se aproximam do fetichismo, sobretudo se o parceiro sexual for ignorado no decorrer do ato. Sua designação como perversão narcísica pode, todavia, se prestar à confusão.

Aspectos da perversão narcísica são encontrados em síndromes afins ou derivadas, tais como o assédio moral e a predação, repertoriadas nos últimos anos com o intuito de destacar a natureza não sexual da perversão em jogo, embora ela possa estar a serviço de fins sexuais como a pedofilia.

Um número crescente de perícias psiquiátricas identifica condutas perversas narcisistas em assassinos, agressores sexuais, delinquentes econômicos, reforçando a gravidade dos casos e muitas vezes sua condição de incorrigíveis. Isso se concretiza por um aumento das penas. Voltarei a falar disso mais adiante.

Faz-se necessário delimitar os comportamentos perversos narcisistas em sua especificidade.

 

Definições

Estudei essa forma de perversão de caráter em várias ocasiões: em artigos, no livro Le pervers-narcisique et son complice (1989/2003), em capítulos do Petit traité des perversions morales (1997) e do Des perversions sexuelles aux perversions morales (2001). Inspirou-me uma série de observações clínicas, na quais esses indivíduos aparecem como aquele que manipulam seu grupo familiar feito marionetes. Racamier (1978/1980) descreve sua psicopatologia e propõe esta definição: “o perverso narcisista se faz valer a expensas de um outro”. Desde os anos 1970, esse conceito foi se enriquecendo com observações e descobertas, para as quais muitos clínicos contribuíram, a ponto de ele ter se tornado nodal para identificar certas manipulações psíquicas que se manifestam na clínica e em campos como o das empresas (cf. a “maladie managerielle” [doença do management], de Gaulejac, 2005) e das instituições de formação e de cuidados. Diferentemente do sádico moral, que visa a experimentar satisfação humilhando e maltratando um terceiro de maneira muito impulsiva, o perverso narcisista é mais calculista e menos voltado para o gozo; por isso é que ele prolifera em contextos em que a questão é o exercício do poder. Age por intimidação, produzindo perplexidade, paralisia, desvalorização, invasão da mente por produção de culpa nas suas vítimas, que acabam aceitando todo tipo de compromisso em detrimento da própria autoestima, aceitando até desmantelar um aspecto do próprio narcisismo ou justificar, e às vezes executar, atos contrários à sua moral (Hurni & Stoll, 1996; Hirigoyen, 1998; Dejours, 1998).

Creio ser conveniente interpretar a perversão narcísica num vínculo - um outro vive as consequências da inflação narcísica desejada pelo paciente. Todo elemento de diferenciação entre os humanos é subvertido a fim de acentuar o efeito de dominação: a força, os conhecimentos, a experiência, o prestígio social, privilégios derivados da riqueza, da posição hierárquica, da pertença ao sexo masculino.

Esses pacientes apreciam o risco, gostam de viver perigosamente e se vangloriam disso. Ao mesmo tempo, as organizações instituídas não lhes inspiram qualquer respeito. Zombam abertamente delas, com cinismo, ignoram-nas ou então demonstram, por meio de ações, sua suposta inutilidade, sua incapacidade, por exemplo, de proporcionar bem-estar para aqueles que delas fazem parte e que as respeitam. Quando os perversos narcisistas ocupam posições marginais, seu comportamento é de permanente desafio, procurando destronar os poderosos. Mas quando são os depositários do poder, desconsideram as regras mais elementares da democracia relacional num trabalho em equipe (Eiguer, 1995, 2001).

Tudo isso ocorre com absoluta ausência de culpa. O mal é “banalizado” - isso foi estudado no tocante ao nazismo por Hannah Arendt (1963/2003). O sujeito tenta inculcar nos outros seus princípios, fazer deles uma doutrina. Uma espécie de subversão do ideal do eu os anima em nome do eu ideal megalomaníaco: a ambição dos perversos narcisistas é querer fazer tabula rasa de todo pensamento anterior. Inaugurar uma era, fundar uma nova moral é seu sonho.

 

Proximidade

A aparência desses pacientes é correta. Vez ou outra, contudo, alguns elementos vão nos chocar no seu modo de vestir, discordante ou extravagante, dentro de uma aparência convencional. No entanto, não são pessoas originais: seus gostos não parecem responder a um prazer estético e nem ao desejo de chamar a atenção. Isso simplesmente revela que uma parte deles está longe do mundo (Hurni & Stoll, 1996). Por trás dessa aparência, borbulha um estado de tensão interna, que augura “explosões” verbais. Desconcertantes, alguns pacientes adotam sucessivamente atitudes coléricas ou serenas, hiperpassionais ou desligadas, sem que o interlocutor possa prevê-las, pois correspondem a uma estratégia de manipulação. No fundo, eles são emocionalmente frios, anestesiados para o sofrimento.

Os perversos narcisistas (p.n.) podem se declarar culpados de faltas menores, desmanchando-se em desculpas, caso pensem que isso levará os outros a se sentirem próximos deles. Evitarão, porém, falar daqueles gestos que afetam a mais elementar moralidade, mas que eles, contudo, utilizam: estelionatos, delações, intrigas. O objetivo buscado é a utilização (Racamier, 1993) dos recursos do outro; o paciente teria necessidade das competências desse outro; gostaria de se nutrir de sua vitalidade, de seu entusiasmo. Essa estratégia é consequência de um sentimento de inveja; o outro seria, assim, um utensílio a serviço das funções de que o p.n. teme carecer.

Em todos os casos, a ética do p.n. corresponde a uma banalização de seus malfeitos: haveria sempre um motivo apresentado como suficientemente nobre para varrer os princípios, a serenidade, o prestígio ou os segredos de quem está diante dele. Como sabe que toda pessoa tem alguma culpa oculta, não hesitará em explorar esse aspecto. Para tanto, um esquecimento da vítima será chamado de negligência; um erro, de falta de afeto; a espontaneidade, de agressividade latente. Tratará facilmente o outro de “louco”. Os atos falhos da vida cotidiana serão interpretados sob o ângulo de uma lógica que ignora o inconsciente. Tudo seria voluntário, portanto, com más intenções.

O p.n. se apresentará como tendo sofrido maus-tratos e injustiças. Isso o autorizará a posar de juiz. Perante o mundo, os perversos narcisistas tendem a se erigir em supereu, em alguém que “dá lições”. No entanto, não atacam frontalmente aqueles que estão diante deles; não os acusam necessariamente, mas se exprimem por meio de alusões ou fazendo críticas a terceiros que têm semelhanças com a pessoa a quem se dirigem. O efeito é ainda mais forte. Esse tipo de linguagem é muito eficaz para questionar as relações entre o eu e o supereu de um interlocutor. A alusão a exemplos extraídos do coletivo, da “maioria”, repercute na origem do sentimento social nos indivíduos, ou seja, no que cada um aceita para viver em sociedade, a lei comum.

Ao me fazer o porta-voz da maioria, consigo me infiltrar no eu de quem está na minha frente e me erigir em representante de seu supereu. Se digo a alguém: “Você não agiu corretamente ontem à noite”, isso é menos pesado do que dizer “Fulano acha que você não agiu corretamente ontem à noite”. Outras frases semelhantes: “Disseram na reunião que você não é eficiente”, ou então “O grupo acha que...”; “Como pode ser que você não esteja sabendo que...”; “Você não saca nada”; “As pessoas não têm coragem de te dizer isso”. Assim, a opinião da maioria entraria em ressonância com os objetos parentais dessa pessoa e com seu supereu, que é o porta-voz deles.

Não é evidente que o paciente extraia muito prazer de toda essa operação. Ele certamente consegue imaginar os efeitos desta ou daquela frase, desfrutando de antemão das suas consequências. No fundo, porém, ele parece muito desvalido, como esses seres muito famintos que esperam impacientemente o momento de ir buscar comida, narcísica neste caso. A ideia de “predação moral” foi sugerida por Racamier (1978/1980; cf. Eiguer, 2006). Em todos os casos, o discurso servirá para desmentir essa dependência e para sublinhar, em contrapartida, que é a vítima que precisa do perverso narcisista, que foi ela que tomou a iniciativa de procurar sua companhia e de estabelecer relações com ele.

 

Três dimensões: sedução narcísica, paradoxalidade e indução

Mas quais são os elementos que intervêm na fala dos perversos narcisistas para torná-la tão eficiente?

Sua capacidade de persuasão é notável. O narcisismo patológico exacerba as características da autoestima, que tende à grandeza, coincidindo com as altas aspirações de certas pessoas. Por sedução narcísica, entende-se uma referência pronunciada e exagerada às proezas pessoais. O p.n. é “o melhor em tudo”, geralmente tem sucesso no que empreende. Como a sedução tende a realçar o narcisismo do sujeito, o outro teria todo o interesse em se associar a ele. Isso lhe trará mais felicidade.

No que concerne à paradoxalidade (Racamier, 1993), trata-se da utilização de mensagens opostas e insustentáveis do ponto de vista lógico (mensagens contraditórias), do tipo: “Você não precisa de um mestre, eu sou o único possível para você”. Ou então: “Não que eu queira isso, mas você tem de me escutar mais frequentemente”; “É por você que faço isso”. Embora sempre presente, a dimensão de obrigação, de coerção, está dissimulada por trás de uma mensagem cheia “de boas intenções”. E a descoberta da manobra não deixará de suscitar uma reação hostil.

No que concerne à indução, certamente o aspecto mais misterioso, ela merece algumas precisões. Se a vítima se deixa abusar, é porque talvez esteja numa situação de fragilidade, esteja de luto ou tema perder o emprego. O p.n. percebe isso. Como ele se organiza para fazer sua vítima experimentar sentimentos pouco habituais para ela? Dispomos de um conceito clínico apropriado para explicar esses movimentos: a identificação projetiva. O mesmo atrai o mesmo. O outro deve reproduzir o que o sujeito sente ou quer. Delegamos ou depositamos ativamente no outro afetos e ideias de que desejamos nos livrar. O outro é catalogado de um certo modo, muitas vezes de maneira negativa. Na indução narcísica, o perverso chega até a fazer a vítima sentir o que ele vive ou deseja, e a faz agir, ou seja, não se trata apenas de uma vivência transmitida, de uma influência psicológica, mas de uma impulsão à distância. Empurrar a vítima a cometer uma falta para, em seguida, criticá-la e deixá-la, finalmente, à sua mercê (Eiguer, 1989/2003).

O p.n. pode se referir a uma ordem não organizada pela lei e sim pelo puro; ele funcionaria como intermediário entre a pureza, a perfeição e o outro (Eiguer, 1997). A forte personalidade do p.n., na qual reina um narcisismo monolítico, vai progressivamente se impor sobre a vítima. A lógica do narcisismo patológico é: “O mundo e eu somos um”; “Tudo será uniforme, tudo estará a meu serviço”.

Isso explica o fato de os adeptos de seitas cometerem atrocidades em nome do guru. Chegam até a arruinar financeiramente os pais para encher os cofres da organização, por exemplo. Falou-se de efeito “hipnótico”. É verdade, pois o guru é vivido como o líder que governa o inconsciente do adepto por meio de sua “ética” substitutiva, de “neovalores”. Ele frequentemente associa suas ações a um desígnio superior.

Os ditadores sabem disso por experiência quando manipulam as massas. Não teríamos como explicar de outro modo a obediência que suscitam, o respeito cego ao chefe, que “nunca se engana”, e a alteração do senso moral dos oprimidos, que chegam a esquecer a solidariedade ou o valor do humano, da própria vida. O inimigo político não merece respeito; podem fazê-lo prisioneiro ou fazê-lo desaparecer, confiscar seus bens, apagar seu nome.

Vide o quadro Similitudes e diferenças entre perversão narcísica e psicopatia. Embora alguns sintomas coincidam, essas duas patologias são estruturalmente diferentes.

Quadro

 

Modalidades clínicas

Racamier (1978/1980) evoca variantes permanentes, mais ou menos estáveis de p.n., e variantes passageiras, que podem se manifestar em outras estruturas de maneira defensiva e em consequência de situações de ruptura, de traumas importantes. Convém notar que certos pacientes se apresentam como delirantes e que, com efeito, eles o são; iluminados que se sentem numa relação com deus, o que os autoriza a arrastar adeptos, a abusar deles. Embora sejam reconhecidos, de um ponto de vista clínico, como psicóticos, no que concerne aos laços sociais, comportam-se segundo uma lógica manipuladora.

Alguns pacientes limite e psicóticos entram nessa categoria. A perversão narcísica lhes permite recuperar certo equilíbrio, inverter o sentimento patológico de dominação ou intrusão, tornando-se dominadores e invasivos; caso contrário, ficariam imersos em angústia e perplexidade. Observam-se, por exemplo, pacientes de tendência sensitiva dizendo-se negligenciados, maltratados, assediados, abusados, de modo a suscitar piedade, ao mesmo tempo que exprimem reprovação em relação a seus pretensos agressores. Tendem a dizer que são maltratados por indivíduos que teriam por objetivo prejudicá-los. Sublinham apenas esse tipo de condutas ou as deformam. A interpretação como mecanismo patológico é regra nesses casos. Logo extraem um sentimento de triunfo diante de seus acusados, que, decepcionados e desorientados, ficam sem argumento para se defender. Montadas sobre elementos da realidade, as tramas serão reconstruídas de tal modo que os perversos aparecem como vítima inocente e forçada. O público, que adere ao seu ponto de vista, expressará por sua vez reprovação, julgando negativamente a pessoa apontada como culpada.

Cada variante de psicose corre o risco de produzir formas particulares de perversão narcísica. Parece-me necessário sublinhar que pacientes maníacos podem apresentar reações parecidas com sintomas perversos narcisistas, sem que se trate, na realidade, de manejos perversos e sim de agitação.

 

Notas psicopatológicas: o pai, a mãe, o objeto

Falar do pai na perversão é muito difícil, sobretudo porque ele quase não é encontrado na realidade; ou é inexistente ou é o mais banal dos pais. O perverso, contudo, diferentemente do psicótico, não ignora suas características, porque na falta de tê-lo, tem a ambição de se tornar um. É o projeto ao qual mais se dedica e se empenha. Sabe o que significa a autoridade do pai, mas não sabe que ela provém de sua função simbólica. Para ele, o exercício da autoridade é um simples efeito de exibição, de porte, devido a um narcisismo que se pretende imponente.

Ora, como é possível ser pai quando não se teve um? É possível confundindo autoridade e controle anal, identificação introjetiva e canibalismo oral.

Desejar ocupar o lugar simbólico do pai é tratar o pai de igual para igual. É esse o sentido da père-version, “versão do pai”, proposta por Lacan (1966). A partir desse desafio, a derrubada do lugar do pai ocorre em todo lugar em que se apresente, ou seja, trata-se de destituí-lo no outro.

Nesse mesmo sentido, embora o supereu não lhe diga respeito, ele discerne a sua ação nos humanos. Com efeito, ele se oferece como profeta de uma nova lei, uma nova ordem legiferante. Considera-se, pois, inspirado por um saber esotérico, objeto de uma espécie de revelação (Rosolato, 1969), e designado para cumprir uma missão: a de transmitir ao mundo sua convicção sobre a “persistência do falo materno”. O vínculo entre sujeitos fica como que marcado pela busca de um adepto e os comportamentos com que o perverso imprime sua ação induzem, por sua vez, outra ação. Podem ser considerados equivalentes a um pleito.

O perverso imita, a seu modo, um processo corrente, a educação, e a trata como “criação de ser”, uma concepção espiritual. Pode-se detectar nisso o desejo de imitar a cena primária criadora de filho. Thomas Ogden (1996) falaria, neste caso, de uma cena primária morta que o paciente quer (fazer) crer viva.

Com pleno conhecimento de causa, a ação deletéria sobre sua vítima/cúmplice visa, mais precisamente, a penetrá-la e dirigi-la de dentro, como, naturalmente, o supereu faz no seu aparelho psíquico. Podemos apresentá-lo de outra forma: ele deseja ocupar o lugar de um objeto interno significativo, o do pai. Em suma, se destruição há, seu alvo é o objeto interno (rival) e, mais precisamente, os vínculos do eu com este último (Bion, 1959/1982). No perverso, o estabelecimento de uma relação é, portanto, condicional; ele gosta de fazer uso do outro nas diferentes acepções do termo, agindo ao mesmo tempo como vampiro e como pigmalião.

Assim como com a Lei e o supereu, nele o estatuto da relação objetal é bem singular. É uma relação de objeto extremamente desumanizada: o objeto fica reduzido a um equivalente de fetiche, ou seja, a um objeto material para utilizar e do qual o sujeito aprecia o brilho, o fulgor. Tendo uma vivência de si como alguém desértico, conserva uma lembrança exultante da sensualidade que outrora viu se manifestar na mãe. Sobre esse vazio, que é diferente da falta, desenvolve-se a clivagem, a denegação, a necessidade de impostura e a orientação para a teorização (Eiguer, 2001). Privados de sensibilidade, de empatia, de compaixão, esses indivíduos consideram os outros como objetos materiais, sem alma ou vida. Será que elementos psicóticos desempenham algum papel no seu inconsciente e, se for o caso, como modificam os comportamentos?

Embora o funcionamento mental do perverso se pareça com o do caso limite, possui características que lhe são próprias. O perverso apresenta um apagamento dos limites identitários; acredita que o outro tem as mesmas orientações que ele para a volúpia e para a dominação. É pouco apto para captar o menor sinal de desejo nesse outro, isto é, sua diferença. Já o paciente limite vive a si próprio como um estrangeiro que se olha de fora.

Quando crianças, os perversos viveram a relação com uma mãe distante, parca em ternura, limitando-se aos cuidados básicos e muito preocupada em nunca ser pega em falta na sua devoção. Se aprecia o filho, isso nunca conduz a projetos e sim a qualidades performáticas: seus músculos, sua inteligência, sua obstinação, sua astúcia, sua capacidade de impor seus pontos de vista. Ela o investe na continuidade de seu eu ideal narcísico. A relação entre eles torna-se um espelho no qual se refletem as “perfeições comuns”. Nem um nem outro veem diante de si uma pessoa, mas sim uma parte de si, aquela que alimenta o orgulho deles. A criança pode professar uma grande admiração pela mãe, embora não seja raro que uma multiplicidade de figuras maternas cuide sucessivamente dela. Na realidade, ela não desenvolverá nenhum apego verdadeiro, por falta de ilusão dual satisfatória. A tristeza ou o sentimento de abandono serão abafados. Logo aprende que pode obter satisfação se tiver ataques de raiva e fizer escândalo. Tem de ser tudo do jeito dela. Desestabilizar os outros lhe parece mais eficaz do que agradá-los. Gradualmente, vai passando a se considerar autossuficiente. A falta de reconhecimento mútuo afeta a identificação de cada um dos pais pelo filho e deste pelos pais, ou seja, o reconhecimento parental-filial.

 

A propósito da transferência

Também encontramos uma especificidade na maneira como o p.n. vive a transferência, o que dá lugar a reações contratransferenciais particulares. Entender isso é muito importante, tanto mais que às vezes se escuta dizer que “o perverso não é analisável”, uns porque não conseguem imaginar como desenvolver empatia em relação a ele e temem ser enganados; outros por razões doutrinais, isto é, exclusivamente para satisfazer critérios teóricos. Talvez convenha desconstruir a ideia de demanda.

Que os psiquiatras não se queixem das críticas feitas por aqueles que, não sendo psi, sentem-se sem apoio de nossa parte e sem resposta para as perguntas sobre a perícia e sobre a terapêutica. Nota-se igualmente uma especificidade no modo como o perverso funciona nos grupos. Ele influencia o grupo e se deixa influenciar por ele. Pois o perverso precisa de um outro, um cúmplice, uma testemunha, um meio onde propagar suas ideias.

A transferência é reflexo disso; o paciente não procura encontrar um cúmplice no analista, mas fazer dele uma “testemunha”, ou seja, alguém a ser desafiado, mostrando-lhe as insuficiências e as falhas da lei. Ele pensa que esta se impõe por meio da arbitrariedade. É possível evitar as consequências da lei, desde que se seja astucioso, acrescenta ele. Ante o escândalo do ultraje, a testemunha deveria ficar perplexa e impotente.

Pelo lado da contratransferência, digamos que não podemos tratar de alguém sem nos identificarmos com ele e sem empatia, e sem ter alguma consideração para com ele. Conseguiríamos amar um monstro?

Tendo em vista essas considerações, nota-se que o mundo clínico e terapêutico é heteróclito em relação ao mundo da justiça. Este se preocupa com a qualificação do delito; nós nos interessamos pela pessoa total. Somos sensíveis ao papel da interação e da intersubjetividade no vínculo do perverso com sua vítima. Nesse contexto, como evitar os mal-entendidos? Os resultados do exame clínico podem ser alterados. As consequências são dramáticas (cf. o caso do processo de Outreau).*

 

Polêmica sobre a predação

Muito frequentemente citado pelos meios de comunicação um pouco a torto e a direito, o predador apresenta-se como uma personalidade, mas a “predação” não é um quadro clínico. Fala-se do predador para destacar sua violência, seu desejo de destruição, mas sem precisar a forma desta. Destruir o quê? E como? Na verdade, o que a palavra sublinha é uma relação de possessividade em relação a uma presa, preda em latim, de que o sujeito irá se servir.

Diz-se que ele age de surpresa depois de ter preparado “seu ataque” com grande discrição. Isso parece mais próximo dos fatos clínicos. A predação é uma maneira de proceder de alguns pedófilos ou estupradores; são chamados de “predadores sexuais” para sublinhar que seu comportamento visa a saciar desejos sexuais. Ora, é legítimo indagar se a predação é só um meio e/ou se ela busca satisfazer, prioritariamente, um desejo de dominação. Nesse caso, tudo o que foi dito sobre a p.n., a denigração, a sujeição, o vampirismo, está presente.

No campo dos negócios, um predador é um empreendedor voraz e sem escrúpulos, que sabe tirar proveito das contradições da lei, das falhas do mercado e das necessidades econômicas dos outros, seus clientes, seus colaboradores ou das associações que vivem de subvenções. Ele pratica a “lavagem de dinheiro”. Essa observação evoca, contudo, o estelionatário, que não é uma figura clínica e sim jurídica.

O predador estabelece um vínculo de dominação mais ou menos duradouro com um outro. Anima-o uma vontade de captura, de rapto, a fim de que essa relação se prolongue. Comete sequestros concretos em certos casos. A sedução desempenha certo papel, sobretudo se for alguém familiar da vítima. Mas a ideia de predação também se aplica aos casos de agressores que agem de surpresa contra um desconhecido. À noção de ataque à dignidade, ao equilíbrio, à liberdade da vítima, eu acrescentaria o desejo de corrupção (Eiguer, 2005, 2006).

A submissão e o terror da vítima acaso reforçam a excitação sexual? O homicídio, caso ocorra, será consequência do fracasso em obter o consentimento da vítima? Será que ela é morta porque conserva uma identidade íntegra apesar das tentativas de aniquilá-la?

Os sinônimos da palavra “predador” confirmam todas essas noções: destruidor, rapace, saqueador, nocivo, demolidor, devastador.3 Na língua, o termo “depredação” tem, ademais, a conotação de devastação. A noção de “presa” é, neste caso, menos evidente.

Chamo a atenção para o fato de que o predador não tem interesse em que a vítima desapareça, porque assim pode se beneficiar dela por muito tempo, de sua juventude e inocência, das qualidades que lhe faltam. Deseja manter relação com alguém que lhe permita se esquecer e esquecer o medo de ser descoberto, medo que o obriga a permanecer em constante vigilância. O outro torna-se para ele um “campo de experiências” que lhe dá a oportunidade de avaliar sua capacidade de enganar e de testar os métodos para consegui-lo. Estuda as reações de sua presa, e o faz para melhor frustrá-las com suas outras vítimas.

Considero interessante associar a predação e a corrupção de uma criança ou de um adolescente, que o indivíduo teria a intenção de formar, que ele introduziria num mundo novo de tentações, coisa que sua vítima desejaria ardentemente conhecer, segundo o perverso, mas que ela se proíbe. Esse tipo de argumento costuma ser ouvido nos tribunais, quando os agressores sexuais explicam suas motivações. Expõem a ideia de que desejaram iniciar suas vítimas, ajudá-las a progredir, às vezes ajudá-las materialmente. Tentam se apresentar como um mestre que procura moldar um “espírito inacabado, selvagem e tentado por desvios associais (delinquência, drogas etc.)”. Considerando-se, pois, como agentes de civilização, não hesitam em afirmar que “amam” suas vítimas.

 

Defesa perversa narcísica num paciente psicótico

Para ilustrar minha apresentação clínica, quero falar de Thierry, paciente psicótico que cria um clima de horror para os outros pacientes do hospital-dia onde está internado.4 Desde os primórdios de sua doença dissociativa, tem alucinações visuais: vê pessoas que olham fixamente para ele. Apresento elementos de seu discurso no qual se misturam provocação, desprezo e ódio. Nas reuniões institucionais, é muito dinâmico nos debates, porque “sempre tem algo de novo para dizer, diferentemente dos outros pacientes”, mas regularmente semeia o terror por meio de falas sarcásticas que deixam os terapeutas desarmados. Desde a primeira entrevista comigo, explica ter se ocupado muito de sua irmãzinha, a ponto de entrar em rivalidade com os pais, escandalizados com o modo como ela se tornou “insolente com eles”. Seu objetivo, diz ele, é denunciar os abusos dos adultos ou educadores “hipócritas” e que, “além disso, têm inveja de sua inteligência excepcional”.

Passado o período de invectivas contra os outros, irá progressivamente confiar em mim, dando-me regularmente notícias sobre suas crueldades semanais, como dizer a um paciente que ele tem cara de suicida ou, a um outro, que ele conhece a nova namorada dele, que é “lésbica”. “Ele poderia ter encontrado outra melhor. Isso vai acabar com ele" Diz fazer uma terapia de antiapoio com os outros pacientes e com seus conhecidos. Thierry adora desestabilizar os jovens iguais a ele e não se priva de mostrar as contradições nos funcionários e psicólogos.

Numa sessão, fala dos matemáticos nesse mesmo registro; para ele, o único objetivo deles é ficar fora da bagunça e controlar tudo. Muitos são aqueles que buscam a perfeição, mas se perdem. “O homem é perfectível, mas tão raramente que é impossível." Como que para me explicar os motivos de seu comportamento, Thierry diz que demonstra para as pessoas que a força delas é ilusória. Quer “corrompê-las" diz ele com ar malicioso.

Mais tarde, confessará que, na verdade, sua intenção é culpabilizar os outros. Se vê que ficam incomodados e se desmancham em desculpas, sente um grande prazer. Agora está estudando o modo de mostrar aos “psi” que, se têm essa profissão, é porque se sentem culpados de algo e que é desse modo que pretendem ser perdoados. Se não, porque se mostrariam tão devotados aos pacientes? De todo modo, porém, “o resultado não é lá essas coisas, sabe?!” Quando tiver aprimorado sua técnica de desestabilização, ficarei sabendo, me promete ele.

Evidentemente, avanço com muita prudência em minhas intervenções. Entro de preferência no jogo, conversando sobre assuntos que o interessam, a literatura, os esportes. Geralmente partimos de suas teorias e de seus interesses culturais para analisar seus afetos. Posteriormente, ele me dirá, mais circunspecto: “Sabe, a vida é como em Corneille, todo mundo ama quem não o ama." É uma frase carregada de duplo sentido, em relação à transferência - minha pessoa e nosso trabalho estão intensamente investidos -, em relação a certos indivíduos que ele sente que o rejeitam, o que o leva a ser odioso com eles. Acaba admitindo sua dificuldade de suportar sua solidão.

 

Conclusões

A perversão narcísica ganhou um lugar reconhecido e o estatuto de entidade clínica. Procuro mostrar as perspectivas que ela abre, mas isso nos obriga a ter mais rigor na sua descrição e na sua psicopatologia. Ela ajudou a entender melhor os vínculos inter-humanos que mantêm e agravam os sintomas. Ainda resta muito para estudar e aprender, felizmente, sobretudo no plano terapêutico. O desafio está lançado: como superar os obstáculos ligados às resistências do caráter? Muitas vezes elas repercutem em nossas próprias resistências a aceitar que o melhor caminho para abordá-las é nos desfazermos da pretensão de curar e de saber tudo.

 

Referências

Arendt, H. (2003). Eichmann à Jérusalem: rapports sur la banalité du mal. In H. Arendt, Les origines du totalitarisme. Paris: Seuil. (Trabalho original publicado em 1963)        [ Links ]

Bion, W. (1981). Aux sources de l'expérience (F. Robert, Trad.). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

Bion, W. (1982). Attaques contre les liens. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 25,285-298. (Trabalho original publicado em 1959)        [ Links ]

de Gaulejac, V. (2005). La société malade de la gestion. Paris: Seuil.         [ Links ]

Dejours, Ch. (1998). Souffrance en France. Paris: Seuil.         [ Links ]

Eiguer, A. (1995). Le cynisme pervers. Paris: L'Harmattan.         [ Links ]

Eiguer, A. (1997). Petit traité des perversions morales. Paris: Bayard.         [ Links ]

Eiguer, A. (2001). Des perversions sexuelles aux perversions morales. Paris: Odile Jacob.         [ Links ]

Eiguer, A. (2003). Le pervers narcissique et son complice (3e ed.). Paris: Dunod. (Trabalho original publicado em 1989)        [ Links ]

Eiguer, A. (2005). Nouveaux portraits du pervers moral. Paris: Dunod.         [ Links ]

Eiguer, A. (2006). Pourquoi les prédateurs disent-ils aimer leurs victimes? Psychomédia, 10.         [ Links ]

Hirigoyen, M.-F. (1998). Le harcèlement moral. Paris: Syros.         [ Links ]

Hurni, M. & Stoll, G. (1996). La haine de l'amour. Paris: L'Harmattan.         [ Links ]

Lacan, J. (1966). Ecrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Ogden, Th. (1996). The perverse subject of analysis. Journal of American Psychoanalytic Association, 44(4),1121-1146.         [ Links ]

Racamier, P.-C. (1980). Les schizophrènes. Paris: Payot. (Trabalho original publicado em 1978)        [ Links ]

Racamier, P.-C. (1993). Le génie des origines. Paris: Payot.         [ Links ]

Rosolato, G. (1969). Essai sur le symbolique. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Wilgowicz, P. (1991). Le vampirisme: de la Dame Blanche au Golem. Lyon: Césura.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Alberto Eiguer
154 Rue D'Alesia
75014 Paris, France
albertoeiguer@msn.com

Recebido em 22.05.2014
Aceito em 12.06.2014

 

 

1 Este texto foi parcialmente publicado em 2008: “La perversion-narcissique, un concept en évolution”, L'information psychiatrique, 84(3),193-200. Agradecemos ao editor pela autorização de publicá-lo em português.
2 A psicanálise tomou emprestados outros termos da biologia, como voracidade, comensalismo, parasitismo (Bion, 1960/1981), rapacidade, vampirismo (Wilgowicz, 1991).
3 Esse caso foi desenvolvido em Petit traité des perversions morales (Eiguer, 1997).
* No Google, é possível obter informações sobre o caso pesquisando “caso Outreau”. (N.T.)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons