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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014
INTERCÂMBIO
O trauma narcísico-identitário e sua transferência1
The narcissistic-identity trauma and its transference
El trauma narcisístico-identitario y su transferencia
René RoussillonI; Tradução Claudia Berliner
IAnalista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e docente da Universidade de Lyon 2
RESUMO
Este trabalho explora a noção de um trauma primário relacionado com uma decepção narcísica primária produzida pela inadequação das respostas do ambiente, primeiro ante as expectativas e pré-concepções inatas do bebê. Esse trauma primário produz um sofrimento narcísico-identitário do tipo “agonia psíquica”, caracterizado por ser sem representação, sem saída e vivido como sendo sem fim. Para sobreviver, o sujeito tem de se retirar de si mesmo, se clivar de sua experiência. Em seguida, tem de desenvolver modalidades de defesa e de ligações não simbólicas para enfrentar o retorno dos traços das experiências de que se clivou, o “retorno do clivado”. Quando, durante um trabalho psica-nalítico, essas experiências retornam, geram formas de transferência paradoxal ou reações terapêuticas negativas, que impõem ao analista um paciente trabalho de reconstrução das relações primitivas com o ambiente primeiro.
Palavras-chave: trauma primário; agonia psíquica; clivagem do eu; transferência paradoxal; reversão passivo/ativo.
ABSTRACT
This paper explores the notion of a primary trauma related to a primary narcissistic disillusion produced by the inadequacy of the responses of the first environment in face of the innate expectations and preconceptions of the baby. This primary trauma produces narcissistic-identity suffering of the “psychic agony” type, characterized by having no representation, no exit and by the fact that it is experienced as being endless. In order to survive, the subject must remove himself from his own self, cleaving himself from his experience. Next, he must develop non-symbolic modes of defense and of connections in order to face the return of the traces of the experiences from which he cleaved himself, «return of the cleaved». When, during psychoanalytic work, these experiences return, they generate forms of paradoxical transference or negative therapeutic reactions which impose on the analyst a patient work of reconstruction of the primary relations with the first environment.
Keywords: primary trauma, psychic agony; cleavage of the 'I', paradoxical transference, passive/active reversion
RESUMEN
Este trabajo explora la noción de un trauma primario relacionado a una decepción narcisista primaria producida por la inadecuación de las respuestas del ambiente primario ante las expectativas e ideas preconcebidas innatas del bebé. Ese trauma primario produce un sufrimiento narcisístico - identitario del tipo “agonía psíquica”, caracterizado por el hecho de ser sin representación, sin salida y vivido como si no tuviera fin. Para sobrevivir, el sujeto tiene que retirarse de él mismo, escindirse de su experiencia. Inmediatamente, tiene que desarrollar modalidades de defensa y de relaciones no simbólicas para enfrentar el retorno de los rasgos de las experiencias que escindió, “retorno de lo escindido”. Cuando, durante un trabajo psicoanalítico, esas experiencias retornan, las mismas generan formas de transferencia paradójica o reacciones terapéuticas negativas que imponen al analista un trabajo paciente de reconstrucción de las relaciones primitivas con el primer ambiente.
Palabras clave: Trauma primario, Agonía psíquica, Escisión del yo, transferencia paradójica, reversión pasiva/activa.
Antes de abordar o cerne do tema que meu título propõe, ou melhor, para poder abordá-lo em boa posição, dois pré-requisitos me parecem necessários. O primeiro concerne à questão do diagnóstico implicitamente convocada na questão da especificidade das transferências dos estados-limite ou das transferências narcísicas. A análise de uma configuração transferencial, seja ela qual for, pressupõe suspender qualquer perspectiva estrutural e dar lugar a uma perspectiva que coloque a historicidade em posição organizadora. Desse ponto de vista, não pode haver sujeito estado-limite em análise; só pode haver um sujeito que topou com um determinado número de conjunturas históricas que estão na origem de certas dificuldades no trabalho de simbolização da história vivida e, portanto, de certas dificuldades na apropriação subjetiva das problemáticas pulsionais, narcísicas ou objetais, ali implicadas. Sofremos do não apropriado da história, e isto quer sejamos tidos como neuróticos, psicóticos ou estados-limite. Curamo-nos simbolizando esses fragmentos da história e integrando-os na trama da organização subjetiva. Sofremos de reminiscências, curamo-nos lembrando e, lembrando, podemos reencenar, repetir de outra maneira, o que as particularidades das conjunturas históricas ou relacionais anteriores fixaram e enquistaram na psique.
Essa precondição - que, sublinhemos, é um imperativo categórico de qualquer tratamento psicanalítico - mostra-se particularmente crucial quando as conjunturas transferenciais sobre as quais a análise deve incidir comportam, de maneira central, um distúrbio da identidade, um distúrbio importante da regulação narcísica. De fato, elas são particularmente sensíveis a qualquer efeito de saber prévio, a qualquer efeito de predição que se cumpre, na própria medida em que um de seus aspectos mais determinantes concerne precisamente a certa dificuldade na capacidade de se definir em função do desejo do outro ou das imagens e representações que o outro possa ter delas.
O sofrimento identitário-narcísico, quer apareça num tratamento em que sua análise representa a problemática central do processo analítico, quer represente apenas uma das suas problemáticas pontuais, revela, na verdade, uma dificuldade na organização da reflexividade, na organização do espelho interno do Eu e da subjetividade, que irá colorir com suas particularidades toda relação investida com o outro e, portanto, em particular, com o psicanalista ou o psicoterapeuta. Em dificuldades com a definição de si, com uma definição de si não estabilizada, confrontado com o paradoxo de uma identidade incessantemente não idêntica ou idêntica demais a si mesma, de uma identidade cuja representação dinâmica da incompletude falha, o narcisismo ou a zona da falha fundamental do narcisismo tende a infiltrar com sua questão, e com o encerro desta, toda relação particularmente investida ou referencial. Transferido no seio de um dispositivo analisante, ele gera, então, um modo de transferência paradoxal por natureza. Por isso é que me parece relativamente antinômico tratar da transferência dos estados-limite, pois acho que, nesses casos, estamos confrontados com um estado-limite da própria transferência e me parece preferível descrever situações-limite da psicanálise ou do trabalho psicanalítico.
Estas concernem ao momento em que, quer se trate do processo transferencial de um sujeito tido como estado-limite ou de um sujeito tido como neurótico ou mesmo psicótico, atualiza-se na transferência uma das problemáticas essenciais da regulação narcísica ou da identidade. Logo, falar de situação-limite não pressupõe um diagnóstico estrutural e sim um diagnóstico de situação, um diagnóstico de configuração transferencial.
Uma segunda dificuldade da questão concerne ao tipo de história reminiscente envolvida nas conjunturas transferenciais que nos ocupam. Embora possa acontecer de uma época particular estar implicada na repetição transferencial das situações-limite, de estas se referirem singularmente a um momento preciso da história do sujeito, a um momento traumático, em geral é a uma história relacional, que lentamente destilou, por pequenos toques sucessivos, um trauma cumulativo, que devemos remeter a inteligibilidade do que volta a se encenar na arena da transferência. É essa particularidade de uma inscrição histórica - ou seja, passada - ao mesmo tempo ininscritível numa história precisa, possível de ser datada, circunscrita em torno de um acontecimento particular, que confere à transferência seu aspecto estrutural.
Meu segundo pré-requisito concerne à concepção do trabalho psicanalítico fundamentado em minha reflexão. Mais que a um conteúdo particular qualquer, ela se refere ao trabalho de simbolização da história vivida, como dei a entender acima. A simbolização é considerada aqui o principal vetor da apropriação subjetiva, tal como a vemos implicada na célebre fórmula de Freud, de 1932, que representa a nova direção do trabalho psicanalítico depois da virada de 1920: “Wo Es war, soll Ich werden”. Nessa perspectiva, a psicanálise visa otimizar as capacidades de simbolização do sujeito-analisante, o que não pressupõe um ponto de chegada particular desse trabalho, mas lhe designa uma direção.
Nessa ótica, a transferência a analisar aparece como relativa à história da simbolização, à de seus avatares traumáticos mais do que à de seus êxitos. Na zona dos sofrimentos identitário-narcísicos em que se centra nossa reflexão, o trauma da simbolização foi primário, isto é, a experiência em questão, experiência de si na relação com o objeto, não pôde ser nem representada nem simbolizada, o sujeito não teve outro recurso para sobreviver àquilo com que foi confrontado senão retirar-se de si mesmo. Em outras palavras, a experiência não foi recalcada - o que suporia que tivesse sido posta no presente do Eu e, portanto, simbolizada e representada, mesmo que a minima; ela foi clivada da subjetividade.
Essa afirmação merece alguns esclarecimentos para ser plenamente inteligível. O conceito de clivagem do Eu, tal como acabo de utilizar, é aquele que deriva da utilização que Freud sugere no “Compêndio”, que tem uma extensão maior do que aquela que ele descreve no artigo “A clivagem do Eu nos processos de defesa”. No artigo de 1937 dedicado à clivagem, Freud refere esta última sobretudo à problemática da perversão fetichista. É a partir da sutura fetichista que ele infere a clivagem, a posteriori; é a conjuntura clínica que melhor se presta à descrição clínica do momento. Contudo, o fetiche mostra menos a própria clivagem do que o modo como a psique a cicatrizou.
Na linha que Freud sugere no “Compêndio de psicanálise”, o conceito de clivagem do Eu pode ser separado da simples clínica do fetiche e receber um estatuto teórico mais considerável. O fetichismo é apenas um caso particular dos efeitos do trauma primário; ele se caracteriza pelo modo como um distúrbio identitário-narcísico vem infiltrar um comportamento sexual; ele expõe a ligação assim efetuada entre, por um lado, a falha narcísica primária relacionada com uma forma de ferida da feminilidade primária (D. W. Winnicott) e, por outro, a questão da forma do sexo feminino, que se torna, desse modo, uma representação, ou melhor, um representante dessa falha narcísica, dessa ferida da simbolização primária, dessa falta para ser [manque à être].
Mais além dessa forma singular, a catástrofe identitária em questão concerne à impossibilidade que o sujeito tem de dar um estatuto representativo a certas experiências, fundamentais para a sua identidade ou para a regulação de seu narcisismo, que afetam seu sentimento de ser, sua própria essência. Portanto, proponho considerar que o conceito de clivagem do Eu é o processo referencial das patologias do narcisismo e da autoimagem. Claro que o recalcamento também afeta o narcisismo, tem efeitos narcísicos sobre o sujeito, mas não é característico da própria patologia do narcisismo; só afeta o funcionamento auto do sujeito secundariamente, não de maneira orgânica. A clivagem concerne à patologia do ser, não à do ter; concerne à falta para ser e não à falta como organizadora do desejo e da pulsão, mesmo que uma possa remeter à outra em certas conjunturas do funcionamento psíquico.
As experiências subjacentes ao sofrimento identitário-narcísico podem ser caracterizadas por alguns traços específicos. Em primeiro lugar, resultam geralmente de uma decepção narcísica primária - uma das expectativas básicas do sujeito, uma daquelas a partir das quais ele poderia assentar seu sentimento identitário, é frustrada pelas respostas do ambiente primeiro. As pré-concepções que ele traz ao nascer sobre aquilo de que necessita para se sentir sendo e se desenvolver não recebem as respostas necessárias, o que provoca uma decepção narcísica primária, que está no coração da vivência de sofrimento identitário.
Essas experiências de sofrimento afetam a definição de si, ou melhor, a impossível definição de si; são experiências paradoxais, cujo paradoxo, que se transforma em impasse por alguma característica da conjuntura histórica, não pode ser tolerado. Não podem ser representadas numa forma que seja potencialmente compatível ou conflitualizável com o resto da experiência. São, portanto, sem saída e, por isso, sem fim. Sem saídas representativas ou simbólicas, mas também sem saídas de outro tipo (perceptivo-motora, por exemplo, como na fobia). Posto na impossibilidade de tolerar a experiência, na impossibilidade de simbolizá-la, na impossibilidade de fugir dela preservando-se, o sujeito não tem outro recurso senão cortar de si a parte dele mesmo que está em contato com a realidade da experiência. Ele se cliva de uma parte de si próprio essencial à sua identidade, ficando, assim, em falta de si.
A impossibilidade de simbolizar essa experiência central teve não só um efeito de falta de representação [manque à représenter] pontual, mas afetou as próprias capacidades representativas, o próprio aparelho de simbolização, o quadro da simbolização psíquica. O distúrbio não está, portanto, presente na forma de uma fantasia particular, de uma representação singular; é o aparelho de fantasiar que é afetado na sua capacidade de produzir figurações que liguem, é o funcionamento psíquico que fica confrontado com um vazio e com reações contra esse vazio que traz a marca da falta de representação. Ante toda reativação da zona traumática primária assim implicada, o sujeito vai ficar tentado a reagir com os afetos relativos à falta de representação e de representatividade, à vivência de ferida que ela gera: a inveja, a vergonha e a raiva narcísicas, todas as três potencialmente destrutivas e desorganizadoras.
Acabei de sintetizar os elementos que acredito estarem subjacentes à patologia narcísico-identitária, aqueles que acredito serem comuns às múltiplas formas que ela vai adotar clinicamente, o fundo do problema que terá de ser posto no centro da transferência. Claro que sobre esse fundo vem enxertar-se, em seguida, toda uma série de consequências que irão afetar, mais ou menos seriamente, o resto da atividade psíquica. Os autoerotismos ficarão dificultados ou adotarão formas distorcidas e pouco utilizáveis para a integração; a relação com o outro será afetada pela necessidade de encontrar nele, perceptivamente, o que não está representado dentro; receptividade e atividade ficarão infiltradas pelas problemáticas narcísicas compensatórias etc.
O que irá determinar o aspecto clínico da patologia do narcisismo concerne menos a esse fundo e ao conjunto de suas consequências do que à solução que a psique tentará dar à ameaça permanente que sua parte não integrável a faz sofrer. Pois não basta ter se clivado da experiência traumática; é preciso, ademais, tentar se precaver contra o que eu tenderia a chamar, por analogia com a dialética do recalcamento, de retorno do clivado. A clivagem em si mesma não pode ser uma solução definitiva, na medida em que o que fica assim excluído da subjetividade está particularmente submetido à compulsão à repetição e é particularmente ativável de maneira alucinatória, na medida em que concerne a um aspecto essencial da identidade.
Contudo, a analogia com o par recalcamento/retorno do recalcado, embora permita configurar comodamente uma representação do processo, não pode ser levada muito adiante, pois o que está em jogo nos funcionamentos psíquicos envolvidos varia consideravelmente devido aos tipos de negatividade mobilizados.
O retorno do recalcado se dá na ordem representativa, se dá sob a forma de representações de coisa, deslocadas, disfarçadas, reorganizadas para melhor driblar a censura que lhes barra o acesso direto ao sistema pré-consciente. O retorno do recalcado concerne ao retorno representativo de algo que foi repudiado do pré-consciente do Eu, mas que permanece, no entanto, conservado no Eu - de algo que volta, deslocado, da parte inconsciente dele. De uma ponta à outra do processo estamos no campo representativo, no campo das formas da simbolização; a negatividade envolvida é a da denegação, precisamente aquela que implica o símbolo ou a simbolização. Por essência, o símbolo é e não é semelhante a si mesmo, ele quer dizer outra coisa do que diz, o que permite tolerar as eventuais formas de paradoxo que nele possam se alojar, e transformá-las em figuras de uma simples conflitualidade. A identidade, paradoxal na sua essência, diabólica como gostava de dizer Freud, encontra, no exercício da simbolização e da não identidade a si que ela supõe, uma saída para suas antinomias fundamentais, para suas alternativas violentas e desorganizadoras.
As formas do retorno do clivado não apresentam as mesmas características nem os mesmos efeitos de generatividade metaforizante; elas mal se deixam derivar associativa-mente. Como veremos mais diante, é sobretudo no campo sensório-perceptivo-motor que elas marcam seus efeitos, enganando a subjetividade sobre sua verdadeira natureza. Também as formas de defesa utilizadas pelo Eu são diferentes daquelas que convêm para o campo representativo e seus avatares.
A noção de retorno do clivado não é muito corrente na literatura psicanalítica - creio até que sou o primeiro a propô-la dessa forma. Parece-me particularmente heurística para introduzir a questão das defesas narcísicas do psiquismo contra o retorno do que foi subtraído radicalmente da simbolização primária, e para pensar, assim, seu devir intrapsíquico e intersubjetivo. No entanto, sob denominações diferentes e multiformes, as defesas contra o retorno do clivado já foram descritas por alguns autores que me antecederam nessa via, sem, contudo, depreender sua pertinência em relação ao problema que nos ocupa.
Freud, o primeiro, sem perceber totalmente seu alcance no momento, preparou o terreno em vários textos nos quais mistura, com a questão do recalcamento, formas de retorno do clivado, que ele então pensa com o próprio modelo do retorno do recalcado. Recalcamento é o termo genérico que ele emprega para designar a defesa primária exercida pela psique contra o que a ameaça. Só mais tarde diferenciará as outras formas de defesas primárias que a psique pode pôr em funcionamento.
Assim, na Gradiva, por exemplo, em que os aspectos fetichistas do processo estão muitas vezes a céu aberto, o que Freud descreve como efeitos de soterramento na psique, como petrificação da libido, é mais bem entendido como modalidade de neutralização de uma experiência traumática desorganizadora - sem dúvida, a morte de ambos os pais do herói, fundidos na morte, no momento em que sua adolescência começa, algo que Freud não evoca na sua análise, embora o texto de Jensen indique claramente o fato - clivada e não integrada. Na urgência e para fazer frente a uma ameaça de desorganização da psique, o sujeito mobiliza contracargas (Freud, 1920); ele neutraliza a efração traumática à custa do empobrecimento do conjunto da vida psíquica, oferecendo assim um quadro clínico próximo do de Hanold no começo da Gradiva. O percurso do texto pode, então, ser entendido como a lenta recolocação em movimento e a lenta reintegração, mas a partir de um movimento passional, do que tivera de se clivar do Eu. Note-se, de passagem, que é com a ajuda de um personagem feminino, numa verdadeira transferência da questão do feminino sobre Zoé, que esse trabalho de sutura se dá. O processo não mostra uma verdadeira tomada de consciência e sim a possibilidade que o herói tem de se reconectar, através da percepção alucinatória e do delírio, com o que tivera de cortar de si.
Em “Visão de conjunto sobre as neuroses de transferência”, de 1915, Freud evoca outro procedimento de luta contra o retorno do clivado: a glaciação. É uma variante da petrificação que notamos na Gradiva, mas aqui o contrainvestimento permanente instaurado pela psique, para jugular um trauma anterior - o que Freud, capturado na metáfora da pré-história da humanidade, não nota enquanto tal -, constitui um verdadeiro ponto de fixação da libido e um ponto de atração para futuros recalcamentos. É sobre um fundo de clivagem e de defesa contra o retorno do clivado primitivo que os recalcamentos secundários vêm se estabelecer aqui, o que mascara e ao mesmo tempo revela a clivagem que opera por baixo do pano.
Em 1920, em “Mais além do princípio do prazer”, Freud formula a generalidade da defesa contra o trauma primário na forma de contracargas permanentes. Desenha, ademais, a conexão clínica com o ataque somático quando observa que a constituição de uma zona somática dolorosa tem o mesmo efeito que um contrainvestimento do estado traumático psíquico. Freud indica então, de passagem, que o trauma primário pode receber uma resposta somática, que a efração traumática pode receber uma ligação somática, sem dúvida na origem de uma doença psicossomática, caso se torne uma exigência permanente de luta contra o retorno do clivado.
Em 1925, na linha que acaba de traçar, Freud acrescenta à panóplia defensiva contra o retorno das formas do trauma primário uma outra forma de ligação intrapsíquica, não simbólica, mas comportamental: o masoquismo e, em particular, o masoquismo erógeno, cuja conexão com a questão da feminilidade ele destaca novamente. O masoquismo erógeno tem parentesco com as formas que acabamos de descrever; apela ao soma pela coexcitação libidinal necessária à intricação da dor e destinada a transformar esta em prazer. É um modo de ligação permanente, que age por meio da inversão da sensação, por um efeito de embaralhamento desta, de confusão.
Já evocamos a questão da sutura fetichista da clivagem do Eu; é ela que irá ajudar Freud, na medida em que é a que mais conexão oferece com a sexualidade e a simbolização, a extrair o conceito que nos serve aqui de organizador. O fetiche possui uma dupla face: uma voltada para a recusa da castração e da falta, e outra que, ao contrário, num esforço de adaptação à realidade perceptivamente presente, se acomoda a ela. O que se retirou da cena intrapsíquica no momento da ameaça de catástrofe psíquica pôde encontrar secundariamente um meio de se juntar ao resto da psique e de, assim, se religar ao Eu, de se suturar nele, e desse modo encontrar um estatuto no seio da subjetividade, sem por isso estar verdadeiramente simbolizado no que ele comporta de vínculos com a questão da feminilidade primária.
A psicose, que também interessa bastante a Freud nos mesmos anos, terá de esperar até 1937-38 e o artigo “Construções em análise” para encontrar no delírio o modo de vin-culação secundária do clivado que lhe convém. O delírio é uma maneira de tentar significar secundariamente o trauma primário que teve de ser clivado da subjetividade, num tempo em que ainda não era significável nem integrável. Aqui, a ligação se dá com a ajuda das características do sistema secundário, mesmo que suas premissas sejam deturpadas pela ativação alucinatória dos traços da zona traumática primária. A percepção é afetada pelo retorno alucinatório, e o pré-consciente se desorganiza ao tentar dar sentido atual ao que, de dentro, volta a invadi-lo em consequência da descompensação da clivagem.
Paralelamente a Freud, Sándor Ferenczi também desenvolveu uma clínica dos efeitos dos traumas primários e das clivagens instauradas para proteger a psique de seu impacto desorganizador. É a ele que devemos as primeiras descrições clínicas dos efeitos da análise dessas conjunturas transferenciais específicas. Contudo, seu trabalho pioneiro ficou entravado pela sua dificuldade de discriminar o que pertencia ao processo transferencial e o que pertencia ao enquadre ou a considerações técnicas. Capturado na paradoxalidade de certos efeitos de transferência, vira às vezes seu joguete e repetidor a despeito de si mesmo (cf. Roussillon, 1995).
É sobretudo a D. W. Winnicott que me sinto devedor de minha concepção geral do problema e, em particular, a seu luminoso trabalho dedicado a “O medo do colapso”. Nesse artigo, embora não refira diretamente sua descrição ao processo de clivagem, Winnicott propõe uma concepção geral da defesa paradoxal contra o retorno do clivado. Descreve, na forma de uma reação às agonias primitivas, as formas clínicas do que denominei “trauma primário” e a defesa do psiquismo contra seu retorno catastrófico. Ele permite pôr em evidência a especificidade das formas de neutralização do retorno do clivado que operam por reversão passivo/ativo daquilo contra o que elas tentam se erguer. Também aí é a forma mais precária, aquela na qual a ameaça continua a pesar sobre o atual ou o futuro da psique, que fornece o modelo do processo geral: o próprio medo do colapso. O colapso se refere a uma experiência anterior agônica que não pôde ser simbolizada no momento: para se proteger de seu impacto desorganizador, para sobreviver, o sujeito teve de cortá-la de si. Mas a experiência não integrada, submetida à compulsão à repetição devido a essa não integração, ameaça a organização psíquica do sujeito de maneira permanente. De passada, voltou como ameaça por vir, como ameaça relativa ao futuro. Nos outros casos, a defesa consistirá em reverter de dentro a experiência agônica para dela se proteger, o que me fez propor, em 1991, nomeá-las de defesas paradoxais. Assim, organizar ativamente um deserto para se proteger da desertificação das relações, organizar um vazio psíquico para se defender da irrupção de um vazio incontrolável, cortar os laços para se precaver contra a perda do laço e da capacidade de se ligar ao outro, mais classicamente abandonar para não ser abandonado, se fragmentar para se proteger da fragmentação etc. Todos esses procedimentos, por mais custosos que possam parecer, no fundo apenas visam tentar neutralizar a ameaça de desorganização vinculada ao retorno do clivado. O sujeito se retira da experiência sofrida passivamente, ele se cliva dela e de suas particularidades, mas se protege de seu retorno organizando-se pela reversão, faz-se agente daquilo de que não pode se subtrair e que não pode aceitar. Transfere por reversão2 a situação histórica traumática para o presente de sua atualidade ou para seu futuro, por antecipação.
Acabamos de desenhar em grandes linhas as características do sofrimento identitário-narcísico, aquele que estará no centro das configurações transferenciais sobre as quais deveremos nos debruçar agora.
A primeira observação preliminar sobre a análise dessas problemáticas tem de sublinhar o fato de que, por essência, elas não se apresentam diretamente como tais: é mais por seus efeitos reativos, por seus efeitos indiretos sobre o funcionamento psíquico, que é preciso saber reconhecer seus indícios. O trauma primário em si está perdido, não presente para o Eu, afastado pela própria natureza da defesa instaurada. Às vezes ele se infiltra discretamente, vem duplicar o funcionamento psíquico; a clivagem infiltra as formas do recalcado, cujos retornos ela segue, adotando até mesmo suas formas; o sofrimento identitário fica mascarado por trás do sofrimento neurótico que o abriga. Não se pode desconsiderar essa particularidade dos processos, que superpõem transferência por deslocamento, portanto, de modo metaforizante bastante classicamente descrito, e transferência por reversão, mais específica do retorno do clivado. A dificuldade histórica decorreu, aliás, desse ponto de superposição de ambos os processos e das duas problemáticas, uma servindo de máscara e de disfarce para a outra. É a resistência à mudança, a viscosidade dos apegos, que deve levar a suspeitar que o recalcamento serve também para manter uma clivagem ou uma reversão.
Historicamente, o processo específico foi descrito como uma forma da reação terapêutica negativa. Num primeiro tempo, a análise, centrada então no retorno transferencial do recalcado, progride bem, podem-se vislumbrar alguns benefícios do trabalho analítico. Depois, paradoxalmente, o estado clínico parece se agravar ou a análise começa a estagnar: submissão passiva, falso self ou revolta aparecem, primeiro de maneira lateral ou moderada, depois cada vez mais central. Esse processo em dois tempos parece-me totalmente característico: a perlaboração das defesas neuróticas começa a desnudar a clivagem que nelas tinha se infiltrado, o processo terapêutico começa a ficar ameaçado por uma reversão interna. Isso é típico do que chamo de “situações-limite da psicanálise”.
Para entender bem o que está em jogo nesse movimento, é necessário debruçar-se mais precisamente sobre suas particularidades e complexidades. Inicialmente, o processo analítico desconstrói os procedimentos de neutralização da clivagem, ativando, assim, a ameaça de retorno do clivado e, com ele, a ameaça de retorno das experiências de trauma primário, que começam inclusive a infiltrar o presente do sujeito com algumas de suas características passadas. Um primeiro fator de agravamento do estado clínico encontra nessa ameaça de retorno catastrófico uma de suas causas. Por outro lado, a experiência histórica não simbolizada volta com a seguinte característica: ela retorna e obsta a simbolização, ela retorna como experiência de fracasso da simbolização, o fracasso tende a se repetir também. O trabalho já realizado em torno das formas de transferência por deslocamento - isto é, neste caso, aquelas nas quais o analista está situado como uma nova edição das figuras parentais do sujeito - mascara o processo de reversão e contribui para lançar a interpretação numa forma de resistência inadequada. Isso reforça a impressão de inadequação paradoxal do trabalho analítico e agrava o sofrimento atual do sujeito e as formas de reação a este. O quadro clínico tende a ficar borrado, tanto mais que a interpretação dos deslocamentos metaforizantes não deixa de ter certa pertinência.
A transferência adotou a forma descrita por D. Anzieu como “transferência paradoxal”. O processo se constrói em duplo vínculo, pela simultaneidade de dois movimentos antagônicos, incompatíveis entre si e, contudo, ambos ativos ao mesmo tempo. Uma transferência por reversão duplica a transferência por deslocamento. Ora, na transferência por reversão, o analista não é posto no lugar de algum personagem da história libidinal do sujeito: é o lugar do próprio sujeito que ele ocupa. O analisante vem fazer o analista viver o que ele não pôde viver e simbolizar de sua experiência própria, vem fazê-lo sentir o que não pode sentir de si, vem fazê-lo ver o que não pode ver de si ou o que nunca foi visto dele, ou foi visto mal demais para poder ser integrado.
Cabe então ao analista experimentar e suportar a sensação de impasse, de situação sem saída, que esteve na origem do retraimento e da clivagem histórica do sujeito; é na vivência contratransferencial que os afetos clivados e repudiados pelo analisante retornam. À transferência paradoxal corresponde, portanto, uma contratransferência paradoxal.
Para sair dessa impressão de impasse ou de limite do processo analítico, é indispensável uma elaboração contratransferencial; é da qualidade e da profundidade desta que dependerá o devir do trabalho psicanalítico.
A primeira dimensão dessa elaboração corresponde ao que, da história própria do analista, se repete na situação. É um pedaço da história infantil do analista que é reativado pela forma em reversão da transferência, que, lembremos, põe o analista na posição de uma criança desamparada, desesperada pela situação, confrontada com seus limites de simbolização pessoal, com a impotência que caracteriza a colocação em xeque das coordenadas clássicas da situação psicanalítica. O analista não pode se esquivar, sem prejuízo para o processo analítico e seu devir, da situação assim gerada: tem de “sobreviver psiquicamente”, conforme a expressão muito precisa de D. W. Winnicott, à ameaça atenuada de vivência agônica que toma conta da situação.
Sobreviver, ou seja, não exercer nem retraimento afetivo ou intelectual nem revide afetivo excessivo, nem mesmo pelo viés de certas modalidades interpretativas que, nesse contexto, são uma retaliação. As interpretações da identificação projetiva em curso, tentadoras a partir do momento em que o analista fica um pouco a par do que se trama na transferência por reversão, são típicas disso. A interpretação em termos de identificação projetiva, embora efetivamente se trate de um processo parecido com ela, é uma maneira de se subtrair ao processo em curso, uma maneira de se livrar dele, que corre o risco de interromper a elaboração provocando uma “devolução ao remetente” intempestiva. É uma maneira de sair de cena e, ao mesmo tempo, um revide. É de dentro, como veremos, que tem de ser possível metabolizar o que está em jogo na experiência traumática e não por um desengajamento, no qual o analista sairia da posição transferencial em que foi posto. O desenlace só pode ser muito progressivo e só pode se dar na medida em que aquilo de que o analista se desengaja possa ser simultaneamente integrado na psique do analisante: o analista não pode se permitir dar uma de “superior” ou de “esperto”; tem de aceitar o limite intrínseco à conjuntura transferencial específica com que está confrontado, sob pena de exacerbar os movimentos de ataque invejosos ou de vergonha, que nesse caso não deixam de se desenvolver, com o risco de fixar a reação terapêutica negativa ou de congelar de novo o processo de recuperação em curso.
Contudo, não exercer nem retração nem revide não basta para sobreviver de maneira adequada à transferência paradoxal. Também é preciso que o analista continue se mostrando criativo em seu funcionamento psíquico e, para isso, outra elaboração contratransferencial faz-se necessária. Na falta de algo melhor, proponho designar por “elaboração contratransferencial epistemológica” o trabalho que se mostra necessário para exercer uma verdadeira função interpretativa adequada. Trata-se principalmente de conseguir trabalhar no seio da paradoxalidade, ou seja, mover-se em meio a lógicas para além do princípio do prazer, para além das lógicas da esperança, para além das lógicas da vida e, até, para além das lógicas do sujeito singular. Isso impõe uma elaboração contratransferencial do analista relativa a sua teoria do tratamento e do funcionamento psíquico, relativa a seus esperados de sessão e ao registro de funcionamento de sua atenção flutuante.
Por essência, o que se manifesta na transferência concerne à zona traumática primária, à zona da falha fundamental do narcisismo primário, a do trauma perdido. O que concerne ao trauma primário não volta em forma representativa, em forma de fantasia, e sim em forma sensório-perceptivo-motora de natureza alucinatória, ou infiltrada em comportamentos ou passagens pelo ato. Isso perturba o registro habitual da escuta, mais habituado a tentar localizar as representações inconscientes que se misturam às cadeias associativas. A sensação, a percepção já não são dados da atualidade do sujeito, pontos de referência a partir dos quais se pode avaliar a natureza dos movimentos psíquicos; tornam-se índices do retorno do cli-vado, traços a partir dos quais a zona traumática vai poder ser reconstruída. Já não são formas de defesa pela realidade: devem ser consideradas testemunhas do trauma - devem ser interpretadas. Percepções e sensações trazem consigo uma exigência de trabalho psíquico para o analista, convocam um trabalho de reconstrução e de integração.
Este último tem de se dar em três níveis, que cabe diferenciar. Primeiro, há o trabalho de reconstrução histórica propriamente dito. Ele consiste em possibilitar que seja representada a situação traumática primária, seu contexto histórico e relacional e os efeitos que ela produziu sobre as particularidades do funcionamento psíquico da época. Esse trabalho dirige-se ao funcionamento secundário do Eu; permite que este encontre/crie uma inteligibilidade para o que lhe volta, assim, de dentro e para o que o machucou historicamente; é um trabalho de colocação de sentido. Mas a integração secundária, embora indispensável, não basta.
É preciso ainda que o que tinha sido subtraído da subjetividade também possa ser reintegrado num nível primário, ou seja, que a colocação de sentido implicada na reconstrução venha acompanhada de um trabalho de recolocação em jogo. É necessário que a experiência histórica traumática seja recolocada no presente do Eu, na transferência, e que possa receber uma saída diferente daquela da história, que suas implicações identitárias históricas específicas sejam depreendidas e integradas.
Assim, a experiência tem de poder ser simbolizada a posteriori, tanto secundária quanto primariamente. A vinheta clínica a seguir permitirá destacar melhor a dificuldade e o que ela implica.
Marie é uma mulher de uns 45 anos; sua análise está em curso já faz muitos anos. O trabalho realizado até então é relativamente satisfatório, mas algo de essencial para sua economia de ser ainda continua sem elaborar.
Uma transferência passional intensa marcou os primeiros anos de sua análise: ela ajudou a perlaborar uma parte importante das defesas narcísicas que Marie instaurara para enfrentar uma panfobia e angústias primárias intensas, elas mesmas ligadas a uma imago materna colmatada, sem falta e sem disponibilidade interna. Por isso, desenvolveu durante muitos anos uma forma de loucura privada transferencial que pôs minha contratransferência rudemente à prova e ameaçava permanentemente a situação psicanalítica de dissolução. Um trabalho de reconstrução das particularidades da relação materna primária e dos muitos aspectos de sedução narcísica que esta comportava foi, então, possível. O estado clínico e o modo de presença transferencial de Marie modificaram-se, portanto, notavelmente, sem contudo possibilitar o total desaparecimento de certos elementos fóbicos, em particular aqueles que concernem a seu medo dos túneis ou dos espaços fechados. Nessas situações, uma ameaça de ataque de pânico fica presente, especialmente se Marie estiver sozinha ou junto com alguém para quem não possa contar em detalhes as particularidades do que está sentindo.
Um período depressivo seguiu-se ao primeiro tempo passional do tratamento: seu pai morreu e uma parte do trabalho consistiu, então, em livrar as representações conscientes e inconscientes do pai de Marie do efeito de uma dominação materna desqualificadora e psicotizante. Esse trabalho ajudou a analisante a estabelecer uma relação amorosa estável e satisfatória com um homem com quem vive agora.
Contudo, no momento em que a sequência que desejo evocar aqui se situa, continuam insuficientemente elaboradas as ameaças de ataque de pânico em certas situações fechadas. Sua elaboração é difícil na medida em que toda situação que corra o risco de provocar seu aparecimento é sistematicamente evitada; portanto, há pouco material disponível. Marie não pode me deixar enquanto a ameaça persistir, mas esta não pode ser levada para a análise devido à intensidade de sua evitação. Um pedaço da transferência negativa fica assim clivada dos processos integradores, e não vejo como ir buscá-lo de maneira dinâmica e não forçada.
Nos últimos meses, porém, uma circunstância conjuntural deu-me esperanças de que uma certa elaboração, uma certa colocação no presente do tratamento e da transferência do fundo traumático subjacente à angústia fosse possível. Regularmente sem carro, Marie tinha de tomar um ônibus para vir às sessões. A questão de um espaço fechado cuja abertura ela não controlava - situação pivô da dificuldade não elaborada - iria, portanto, poder se colocar. Marie fez algumas tentativas de subir no ônibus que precisa tomar para vir até meu consultório. Mas assim que ela entrava e se fechavam as portas, a angústia subia, adotava o caráter de um verdadeiro pânico no qual já não era possível pensar ou imaginar o que quer que fosse; algo nela se tornava surdo e cego a qualquer funcionamento psíquico, restando uma única urgência: abandonar o mais rápido possível o local, sair a qualquer custo. Assim, vez ou outra acontecia de ela ir “aos pulinhos”, subindo num ponto e descendo assim que possível etc. Mas a experiência de terror não desaparecia depois de a situação desencadeante ser afastada: ela persistia e acontecia de Marie, tendo chegado a pé na sessão, ainda estar sob efeito do pânico, num estado de terror sem nome, e passar a sessão prostrada, recompondo-se lentamente. O espetáculo que ela então oferecia era impressionante: cortava a relação por um bom tempo, torcia as mãos, esfregava os membros, encolhia-se, tinha sobressaltos, assustada, ao menor ruído. A sessão ficava então exclusivamente dedicada a ajudá-la a recuperar o contato consigo mesma e comigo, a ajudá-la a sair do estado de terror e de surdez psíquica. Tinha também, às vezes, a impressão de que ela se dava corda e que uma certa exploração intersubjetiva vinha se misturar à angústia, que uma certa erotização entrava para criar o clima particular daqueles momentos. As sessões de terror se alternavam com outras em que, tivesse ela vindo diretamente a pé, tivesse conseguido que a acompanhassem de carro, ficava delicadamente deitada no divã, apenas murmurando, no limite do audível - ela se queixava, se desesperava de jamais vir a poder sair daquilo, gemia. Naqueles momentos, parecia mal ousar existir.
Quanto a mim, esforçava-me para fazer com ela um certo trabalho de ligação das experiências atuais no ônibus com as da latência, em que pegava o ônibus com a mãe, para as férias ou para uma visita, para ir a Savoie, na vila natal do pai. No ônibus que a levava, assim, para a casa da avó paterna, sofria sistematicamente de mal-estares físicos, náuseas, vômitos, sob o olhar frio e enojado da mãe, ambas sob o olhar pouco benevolente dos outros passageiros do ônibus que elas empesteavam com o cheiro do rejeitado, vomitado diretamente no chão.
O caminho do pai, da origem do pai, acompanhada de uma mãe suando angústia, rejeitadora, fóbica do contato com a filha, fria, à distância, silenciosa, mas brusca nos gestos, desenrolava-se assim na vergonha de si, numa vergonha de ser em que melhor seria desaparecer, fazer-se esquecer e tentar fazer esquecer o que emanava do casal composto por mãe e filha. Nenhum lugar nessa mãe para acolher o indigerível de sua filha, nenhuma palavra para temperar a vergonha e a angústia, nenhuma abertura para dar ar, sentido para tudo aquilo; a viagem prosseguia, interminável, sem fim e sem saída, sem representação, e mesmo sem nenhum outro alhures para se recuperar, de si e de sua experiência.
A reedição, no tempo das sessões analíticas, com a extrema dificuldade que se pode imaginar na transferência, de estados equivalentes aos da época, minha presença atenta, meu esforço para tentar ajudá-la a formular o que estava sentindo, assim como para tentar representar o que não poderia ser formulado no tocante à direção paterna dessas viagens, permitiram uma primeira elaboração, talvez menos da própria vivência agônica e mais do seu entorno, do seu contexto simbólico de emergência. Eu procurava, em particular, tentar entender o que ela, assim, vomitava psiquicamente, o que, de indigesto de sua história, tentava, assim, tanto ser expulso quanto ser reconhecido. Tentava, assim, manter um vínculo com a questão do lugar do pai dela entre ela e a mãe.
Já tínhamos encontrado vestígios das várias desqualificações da função paterna na fala da mãe de Marie: é verdade que o pai, por seu comportamento excitante e bem raramente paternal, costumava se expor prazerosamente aos ataques maternos; que ele praticamente não resistia a eles. Contudo, embora esse trabalho tivesse podido liberar alguma possibilidade de Marie reinvestir o pai de outra maneira, não conseguira instaurar uma verdadeira função terceira no seu funcionamento psíquico. O pai remetia ao universo materno, que ele mesmo não sabia como abordar. No momento da adolescência, em que Marie tentara ir embora da casa dos pais e tomar distância deles, o pai viera suplicar para que ela voltasse, pela mãe que não suportava sua ausência, para a casa da família. Encontrar uma função terceira paterna para além do pai ele mesmo, retornar às fontes do que pode e deve ser um pai, estas eram as questões vitais de Marie.
A introdução dessas questões no correr da análise trouxe a progressiva rememoração de certas cenas na cama da mãe. É final de tarde, o pai ainda está no trabalho, só voltará bem mais tarde. A mãe vai deitar, Marie se junta a ela na cama, a mãe adormece ou finge adormecer. Marie, por sua vez, está vígil, perturbada pela proximidade do corpo da mãe adormecida. Lentamente, sem despertá-la, aproxima a mão até tocar esse corpo, até se aproximar das coxas e depois do sexo da mãe. Será que a mãe está realmente dormindo, estava realmente dormindo; agora, no divã, Marie se indaga apavorada. Essas cenas são evocadas por Marie com grande dificuldade, muita vergonha e culpa. Fico perplexo com o que é que eu posso fazer com isso, na sessão. É como se, sobretudo, eu não devesse me mexer ou me manifestar como quer que seja enquanto ela relembra, murmurando, as circunstâncias que acabo de relatar. A cena supõe a ausência do pai ou de qualquer outro personagem, a questão de saber se a mãe está acordada e finge dormir é crucial para Marie, ela impõe a questão da parte da mãe no fantasma de incesto que ronda a cena.
De súbito, a cena muda, o ruído característico da chave do pai na fechadura acaba de se fazer ouvir, ele entra, a mãe está bem acordada agora, Marie corre para o seu próprio quarto na direção da sua cama; seu pai não pode encontrá-la deitada perto da mãe, ele não pode surpreender as amantes na mesma cama. O despertar imediato da mãe com a chegada do pai questiona novamente seu sono durante a cena.
A evocação desse enredo histórico durante a sessão o reproduz no clima da própria sessão: se eu me manifestar é a volta do pai e o sumiço das circunstâncias do crime. Marie passa, então, para outra coisa, como se nada tivesse acontecido, como se uma clivagem se restabelecesse imediatamente. É o que acabo sugerindo para Marie, sem grandes efeitos: a coisa psíquica desapareceu do presente da transferência, a reprodução ou é tal qual ou desaparece, não pode ser nem representada nem simbolizada; fico reduzido a uma certa impotência analítica.
Contudo, as férias estão chegando e o namorado de Marie planejou utilizá-las para viajar a Veneza. Marie aceita, pensando imediatamente, em pânico, no trajeto de trem. As sessões seguintes serão integralmente dedicadas à preparação psíquica da viagem a Veneza. Marie passa em revista o que corre o risco de acontecer durante a estada no trem; cada vez que se projeta em pensamento na situação é invadida pela angústia e pelo terror; a simples evocação do momento da viagem produz um estado de transbordamento. O trem se lança a toda velocidade, nada pode detê-lo ou freá-lo, ele avança cego e surdo ao seu desespero. Ela mesma fica presa na tempestade, fica como louca, também surda e cega a tudo o que possa vir dar sentido ou moderar a intensidade de seu pavor. Sobre o divã, Marie se torce ou torce as mãos, bate na parede, se debate, como se sob o efeito da alucinação da situação fobígena.
Num momento em que a sinto potencialmente menos invadida e mais presente, faço a ligação entre esse trem a toda velocidade, sem freios, e certos momentos do começo de sua análise em que, bêbada, ela se lançava de carro numa descida até o choque do acidente, depois a ligação com outros momentos anteriores de sua infância em que, sob o olhar do pai, encantado e em júbilo, ela se lança de bicicleta, cai, levanta e continua, cai de novo etc. ou ainda em que pega ondas que quebram e a jogam rolando na praia, sempre sob o olhar do pai que a exorta a continuar, até que ela acabe se levantando, com a pele toda arranhada pela areia, quase atordoada.
O caminho do pai, a estrada do terceiro, passa por uma máquina pulsional automática, compulsiva, cega ao seu sofrimento, como um trem que se lança sem limites nem sinal de alarme, surdo às necessidades do Eu, até o aniquilamento. O aprisionamento é duplo, paradoxal: é tanto aprisionamento num mundo materno fechado, sem saída, quanto arroubo paterno cego e indiferente, rumo à morte. Marie ganha um certo jogo depois de minhas intervenções que freiam o arroubo, e começa a produzir um efeito de sinal de alarme dentro de seu funcionamento psíquico tão violento,* mas a angústia de aprisionamento permanece intensa. À angústia da viagem mistura-se a da ausência, pois as férias dela estão um pouco defasadas das minhas e, pela primeira vez na sua análise, Marie terá de faltar a algumas sessões.
No contexto transferencial que estou evocando, aqueles acostumados com a análise dos distúrbios identitário-narcísicos não se surpreenderão com o fato de eu sublinhar que as ausências confrontam Marie com uma dificuldade na representação e na conservação interna de um objeto transferencial protetor ou ao qual possa recorrer na separação. Outro componente do contexto transferencial concerne também ao modo como poderá me evocar dentro de si quando estiver em Veneza, e como poderá enfrentar, na ausência, o desconhecido da estada nessa cidade.
Chegamos, assim, à última sessão antes de sua partida: sua angústia continua presente, apesar de ter se atenuado um pouco em função de minhas intervenções. Ela tenta se tranquilizar evocando a possibilidade de falar durante a viagem com seu namorado; ele sabe de suas dificuldades e sempre se mostrou disponível, paciente e tolerante em relação a elas. Contudo, pela primeira vez de maneira tão clara, ela se pergunta sobre os motivos que possam explicar o que sente nos lugares fechados e sobre as experiências passadas que podem estar presentes por trás de sua angústia. Tenho a impressão de que, desta vez, trata-se de uma verdadeira pergunta que espera da minha parte uma resposta ou, pelo menos, uma intervenção.
Ela observa que, quando fala a respeito, isso muda, isso não quer ser chamado, não deve haver palavras. Intervenho para lhe dizer que ela sem dúvida já viveu experiências como aquelas antes de ter a linguagem à sua disposição para poder pôr palavras e dizer o que sente. E evoco experiências de criança bem pequena, presa nos braços da mãe, sem poder fugir nem poder formular o que acontecia, sem poder ter qualquer ideia de um tempo e de um fim, antes da linguagem, antes da descoberta do tempo. Ela pensa em sua mãe, de cara fechada. Também no ônibus ela tinha a impressão de que as caras estavam fechadas - isso não tem fim. Sublinho o paradoxo da experiência, ao mesmo tempo fechada e sem limites.
Pensa em seguida que ela precisaria poder se sentir, que teria de fazer muita ginástica antes de tomar o trem, para ficar moída, ter dor nos músculos a cada movimento para poder sentir e se sentir, pois o que mais a aterroriza é não se sentir mais, não sentir mais nada, não estar mais presente, cortar completamente o contato com os outros, ficar perdida, sozinha e perdida em si mesma. Enquanto a escuto, surpreendo-me pensando novamente nas cenas na cama da mãe, no que ela procurava entre as pernas dela. Ela, perdida, fora de si mesma, buscando uma saída, escondida dela mesma, desejando que alguém a procure, a encontre, lhe indique uma saída. Um jogo de esconde-esconde primário no qual ela teria se perdido, em que se trataria de ser procurada e encontrada por alguém para poder sair, e se reencontrar, recuperar o contato consigo mesma, se reabitar. Aprisionada, fica fora de si, fica aprisionada fora de si. Esta seria a figura paradoxal da justaposição do aprisionamento e do arroubo: fechada fora.
Decido intervir para lhe lembrar as cenas na cama da mãe em que ela aproximava a mão do sexo daquela, em que o tocava, o explorava. Relaciono seu movimento com um movimento de buscar a abertura, a saída, de buscar a solução. E, ao mesmo tempo, sublinho o caráter impensável e interdito dessas tentativas, e seu desamparo ao procurar uma saída ali, ao procurar ali como entrar em si, voltar para si.
Ela, então, evoca sua impressão de ter vivido coisas impensáveis, depois se cala um instante, mais calma, como apaziguada. Continua em seguida a sessão evocando seu gatinho que precisa comer durante sua ausência, que será preciso pensar em voltar para casa à noite, mas isso, de repente, lhe parece menos inquietante. Sua mãe não vai suportar que ela se afaste... Ela já não me escuta, faz-se-lhe vazio. Ontem ela escutou o vazio, não tinha mais movimento fora, ela ouviu o vazio nas suas orelhas, um vazio espesso, compacto, impossível de preencher, um bloco de vazio. Intervenho para lhe falar do vínculo entre esse vazio e o modo ausente da presença da mãe, de cara fechada, alhures, vazia dela, sem ecos para ela mesma. Evoca, então, a impressão que teve outro dia, as pessoas ficavam achatadas, como polichinelos, como um objeto decorativo de papel machê etc.
O vazio, que Marie sente como uma coisa concreta, remete sem dúvida ao do objeto materno, o da ausência de respostas maternas - é o vazio do fora; sem dúvida também, misturado com este, remete àquele que resulta da expulsão dos traços, espaços e representações internas de sua falta, da representação-coisa desta, da representação feita coisa, reduzida ao estado de coisa pelo processo de externalização alucinatória.
No sofrimento narcísico-identitário somos confrontados com a evacuação do vazio, com o paradoxo do esvaziamento do vazio, dos espaços que assinalam o lugar da falta para ser, da falta de representação da experiência de si. A própria representação da ausência de representação é evacuada, é irrepresentável.
Na sequência clínica que acabei de evocar, é esse espaço de abertura que é buscado no sexo da mãe, condensado nele. A representação de uma ausência de representação, a representação da feminilidade primária são, aqui, condensadas e concretizadas na realidade do sexo da mãe, o que, ao mesmo tempo, lhe barra um possível acesso, lhe confere um valor incestuoso e encerra a busca da abertura num paradoxo e num impasse. Simultaneamente, porém, essa busca de abertura é também a busca de um espaço por onde entrar em si, por onde recuperar o contato com a interioridade. A figura da banda de Moebius não está muito longe da forma que esse movimento adota, movimento que supõe uma dupla torção [retournement].
É num mesmo movimento que a abertura para si e aquela em direção à falta do objeto se constituem, mas, aqui, é num mesmo movimento que elas se fecham, e é nisso que consiste todo o problema do incesto. Ora, se essa questão não encontrou saída histórica, tem de encontrar uma na atualização transferencial desde que a repetição da conjuntura histórica abra essa possibilidade. É nisso que consiste toda a questão de conseguir encontrar uma saída simbólica para o que, historicamente, recebeu somente uma forma concretizada, cujo impasse reside precisamente nessa forma direta e na comunidade incestuosa que ela implica. Também se trata, com efeito, de que possa se desfazer a comunidade de recusa das diferenças e da falta, o que só pode ocorrer se a violência que ela mantém afastada puder ser reintegrada no espaço psíquico. Este será um dos desafios essenciais da continuidade do tratamento de Marie.
De modo mais geral, a reconstrução das circunstâncias precisas da instalação histórica do trauma primário e dos impasses que ele implica abre a possibilidade de virem, para o presente da transferência interpretável, os processos tudo ou nada que bloqueiam a elaboração, fragmento por fragmento, da configuração traumática. É ela que torna possível que a destrutividade e a inveja primária não se voltem o tempo todo contra o trabalho psíquico, limitado e parcial por essência, ou que, pelo menos, possa se tornar interpretável o modo como o sujeito-analisante não cessa de atacar o processo de simbolização em nome de sua incompletude.
O estado traumático primário se caracterizou pelo fato de que o estado de desamparo, transformado em estado de falta pela ideia de um recurso possível ao objeto, degenerou para além da falta devido à inadequação histórica de respostas dos objetos da época. O estado de falta, a percepção endopsíquica desta, precondição para que uma simbolização primária dos movimentos pulsionais e das necessidades do eu possa advir, se degrada em estado agônico de desespero ou de terror. O sujeito se organiza contra a falta e a experiência dos limites que ela veicula, se organiza contra a representação de uma ausência de representação, portanto, se organiza contra a possibilidade do trabalho de simbolização. Corta-se de si mesmo e da experiência agônica que o habita, instala-se fora de si e fora da falta, evacua a falta, esvazia o vazio matricial dela. Contudo, vê-se, então, pelo próprio efeito de sua defesa, aprisionado num espaço fechado, sem abertura, sem saída, confrontado com os efeitos letais da pulsão de morte.
A saída, como a sequência clínica precedente explicita bem, passa pela representação da falta no objeto. Se esta estiver colmatada pela recusa de sua falta própria, tem-se o impasse. Sem falta nem espaço interno localizável dentro, sem falta nem espaço de acolhimento fora, o sujeito fica privado de saída, a elaboração psíquica não encontra lugar aceitável, a pulsão não é integrável, ameaça o eu e a psique de um retorno desorganizador que, por sua vez, impõe a instalação das defesas narcísicas.
Ora, o sujeito não consegue reintegrar sua falta própria de dentro; suas experiências históricas a associaram a vivências agônicas sem recurso, desesperadoras, contra as quais o sujeito só pode entrar em luta pela sua sobrevivência. É de fora que ela pode voltar, é pela falta no objeto que uma saída pode se desenhar, mas esta fica, então, ameaçada de sedução narcísica, com o sujeito correndo o risco de se colar na falta do objeto para continuar vivendo.
Nas zonas limite de organização da psique, o encontro com a questão da sedução narcísica é inevitável, ela infiltra permanentemente o trabalho psicanalítico, ameaça com seus efeitos toda a elaboração do trauma. Aliás, foi sem dúvida o que tornou tão difícil sua teorização e sua abordagem clínica.
Termino esta reflexão com alguns comentários para tentar pôr em perspectiva certos aspectos dessa dificuldade.
Notemos, em primeiro lugar, que ela resulta de dois imperativos da elaboração transferencial do narcisismo primário e das defesas narcísicas que se instalaram para tentar jugular seu retorno desorganizador. O trabalho de reconstrução do contexto relacional do trauma é indispensável, mas este não produziu, embora seja inesquecível, um trabalho de memória representativa. Por essência, o trauma primário não está representado e, portanto, não é rememorável, o que não quer dizer que não tenha tido efeitos psíquicos, que não produza efeitos perceptíveis - simplesmente estes não são de natureza representativa; é pela angústia, pelas defesas instaladas, por retornos perceptivo-alucinatórios que ele se faz reconhecer e demonstra sua presença subjacente ao funcionamento psíquico.
Todo trabalho de reconstrução tem, pois, de ir além da memória do sujeito, além de sua apreensão representativa; é um trabalho de invenção do analista, assentado na capacidade que este tenha de imaginar o que pode, o que deve ter se passado, a partir dos indícios que a transferência lhe fornece. Esse trabalho é certamente temerário, está assentado na criatividade do analista, portanto, potencialmente em suas projeções contratransferenciais; exige assumir riscos e uma serenidade suficiente do analista quanto a ser suficientemente bom e suficientemente tranquilo com os efeitos de sedução inevitavelmente envolvidos. Topa, ademais, com a inevitável negatividade mobilizada, por um lado, pelos efeitos das defesas narcísicas então particularmente exacerbadas e, por outro, pelas próprias condições da apropriação subjetiva que passa por tempos de negatividade incontornável (cf. Roussillon, 1998). Houve quem dissesse que as estruturas pré-genitais se caracterizavam pelo fato de que o ódio predominava sobre o amor; parece-me mais acertado - não se entende por que certos sujeitos estariam mais à mercê do ódio do que outros, independentemente de sua história - relacionar a intensidade da des-trutividade com as particularidades das defesas narcísicas mobilizadas pela presença de uma zona de trauma primário ativada na transferência, e com as particularidades do processo de apropriação subjetiva então implicado por sua colocação em análise.
A segunda dificuldade decorrente da presença de uma sedução narcísica na elaboração transferencial concerne à questão do objeto. Como Winnicott sublinha, o analista gosta de ter a possibilidade de poder considerar que o que concerne ao objeto é fruto das projeções do sujeito. A realidade do objeto e de suas particularidades fica, assim, transicionalmente suspensa e se torna irresolúvel. Já sublinhei que a elaboração do trauma primário passava pela questão do objeto e, mais particularmente, a de sua falta, a da falta percebida no objeto como prévia ao reconhecimento da questão da falta do sujeito ele mesmo. Essa elaboração vai, portanto, frontalmente ao encontro da questão de um objeto para além das projeções do próprio sujeito, a questão de um objeto considerado como em si e não mais simplesmente como para si. Essa problemática foi referida por Winnicott como sendo a da utilização do objeto (cf. Roussillon, 1997), que deve ser cuidadosamente diferenciada da problemática da relação de objeto, que concerne às modalidades de tratamento de uma falta aceita e percebida. A questão da utilização do objeto remete essencialmente ao modo como o objeto organiza sua relação com a falta na relação com o sujeito, diferentemente da relação de objeto, que concerne ao modo como o sujeito organiza sua relação pessoal com a falta na relação com o objeto. O objeto utilizável é aquele que integra a falta no seu modo de relação com o sujeito, certas modalidades da falta que caracterizam sua própria relação com o sujeito. O sujeito teve de se construir em função dessas particularidades do objeto, que implicam certas respostas específicas deste aos movimentos pulsionais do próprio sujeito.
Nas situações-limite, essa questão é totalmente crucial, a análise não pode ser conduzida sem que o registro da utilização do objeto seja trazido ao presente da transferência. Em outras palavras, não há meio de evitar tradicionalmente a questão da realidade do objeto na relação com o sujeito, não há meio de suspender essa questão. Com efeito, sua evitação torna ininteligíveis os movimentos do sujeito, que só podem ser compreendidos em reação às particularidades do objeto; por outro lado, ela alimenta a fantasia de autoengendramento subjacente às defesas narcísicas.
Mas também aí esse questionamento do objeto histórico ou atual não é isento de dificuldades técnicas singulares. Enfrentamos, de fato, os aspectos narcísicos do masoquismo pelos quais o sujeito prefere se sentir culpado e punido (é a necessidade de punição evocada por Freud a respeito da reação terapêutica negativa e do masoquismo que a caracteriza) pelo que se produz nele a relacioná-lo com os efeitos reativos das respostas de seus objetos e com a impotência com que estas o confrontam ou o confrontaram. Esse questionamento também impõe uma análise do modo como o sujeito interiorizou as falhas da função simbolizante do ambiente, como mantém com este comunidades de recusa (M. Fain) ou o compartilhamento de clivagens e dos processos de evacuação ou de forclusão da falta e da vida pulsional ou de alguns aspectos desta.
Por outro lado, essa análise tem de se desenvolver num contexto em que pairam sem cessar os efeitos de poder e de alienação narcísica que caracterizam as conjunturas nas quais a sedução narcísica está no primeiro plano da análise. Ora, é nessas conjunturas transferenciais que o analista mais gostaria de poder se ater aos parâmetros clássicos da interpretação, ali onde seu Supereu lhe garante mais proteção contra os efeitos de sedução pela interpretação, e não arriscar se comprometer demais em hipóteses reconstrutivas, que são necessariamente temerárias.
É fácil perceber que a principal dificuldade contratransferencial é que o analista fica, então, necessariamente confrontado, em função mesmo dos riscos que não pode deixar de correr, com a questão de suas próprias faltas para ser, seus próprios limites, até mesmo as próprias falhas do funcionamento de seus processos de simbolização pessoais. Isso já foi sublinhado muitas vezes. O analista se vê instado a prosseguir sua análise pessoal para estar em condições de enfrentar aquilo com que é confrontado. Pode-se até dizer que a continuidade feliz da análise depende da capacidade do analista revivificar seu próprio movimento autoanalítico. A questão da falta no objeto adotou, assim, a forma da questão da falta no próprio analista; foi, assim, transferida na análise, único lugar onde pode receber uma nova solução simbólica.
Vou terminar com esta observação essencial: a análise das conjunturas narcísico-identitárias confronta o analista com os limites da análise, com os limites da técnica analítica clássica, com a necessidade de inventar sob medida, para aquela determinada análise, a forma de parar psicanaliticamente de ser psicanalista (Winnicott) no sentido clássico do termo; reinventar uma outra maneira de ser psicanalista naquela situação determinada, isto é, talvez reinventar a psicanálise para si mesmo, reinstaurá-la, reinventar uma psicanálise que integraria no seu conceito de realidade psíquica a questão do impacto da realidade do outro, o impacto da realidade dos objetos investidos para se construir, tal é, sem dúvida, a necessidade com a qual o analista fica, então, uma vez mais confrontado. Mas não será esta, afinal, a necessidade de qualquer análise?
Referências
Freud, S. Mais além do princípio do prazer. (Trabalho original publicado em 1920). [ Links ]
Roussillon, R. (1995). L'aventure technique de Ferenczi. In T. Bokanowski, K. Kelley Lainé & G. Pragier (Dirs.), Sándor Ferenczi (1873-1933) (pp. 99-110). Paris: PUF. [ Links ]
Roussillon, R. (1997). La fonction symbolisante de l'objet. Revue Française de Psychanalyse, 61(2),399-415. [ Links ]
Roussillon, R. (1998). Interpréter, construire, jouer peut-être. Le fait de l'analyse, 4,147-169. [ Links ]
Correspondência:
René Roussillon
4 Rue Barrème (4° étage)
69006 Lyon, France
Tel.: 06 09 54 26 54
rroussillon7@gmail.com
Recebido em 7.8.2014
Aceito em 19.08.2014
1 Trabalho original publicado em 1999: Revue Filigrane, 8(2), 100-120.
2 Retournement, que também encontramos traduzido por “inversão”, (N.T.)
* À boulets rouges, expressão de M. Fain. (N.T.)