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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014
RESENHAS
A sombra da mãe: psicanálise e vara de família
Mariangela Kamnitzer Bracco
Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Autora: Cláudia Suannes
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 149p.
Resenhado por: Mariangela Kamnitzer Bracco
O destino natural da maior parte das dissertações de mestrado é adormecer nas estantes da universidade. Para nossa sorte, isso não aconteceu com a excelente dissertação de Cláudia Suannes, que, transformada em livro, pôde deixar os muros da academia - no caso, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - para se aproximar do público interessado.
Vários são os méritos desse trabalho, que recebeu nota máxima da banca por ocasião de sua apresentação. Também Renato Mezan, que foi o orientador do mestrado, fez extensos elogios no prefácio do livro.
Em primeiro lugar, quero ressaltar que Cláudia conseguiu harmonizar duas frentes de pesquisa, as quais, por sua vez, refletem sua dupla inserção profissional: enquanto psicanalista que trabalha em consultório e enquanto psicóloga que atua em instituição - no seu caso, o Judiciário, na Vara da Família. Aqui, dou voz à própria autora:
Como a experiência de ser psicanalista é anterior, o trabalho realizado no Tribunal de Justiça foi-se construindo a partir de um constante diálogo com a clínica. Frequentemente, a escuta de questões que vêm do consultório ora problematiza ora lança luz sobre o trabalho institucional, e vice-versa. Assim, resguardadas as diferenças inerentes ao setting, ao tipo de transferência estabelecida e ao objetivo do trabalho, a psicanálise, no seu aspecto eminentemente clínico, faz-se presente no atendimento dos casos da instituição, e é essa referência que me permite pensar na singularidade de cada caso e teorizar sobre a prática. (Suannes, 2011, p. 15)
Vemos nesse relato em que águas Cláudia navega: a da chamada clínica extensa. Vai encontrar fundamentação para seu trabalho na Teoria dos Campos, de Fábio Herrmann, que permite pensar a psicanálise fora de seu contexto tradicional. Evoca também Donald Winnicott, que, com suas consultas terapêuticas, foi o precursor dessa modalidade de atendimento.
Assim, na primeira parte do livro, desenvolve a reflexão de como o psicanalista que atua na interface com o Judiciário pode, para além de sua função de assessorar o juiz, exercer uma forma de intervenção terapêutica em relação às pessoas que procuram as varas de justiça na tentativa de lidar com conflitos familiares. Reproduzo aqui as palavras de Flávio Ferraz de Carvalho, que assina o texto do pequeno espaço da orelha do livro: “A autora aponta caminhos, demonstrando como a psicanálise, na extensão inteligente e sensível de seu método para um campo além da clínica stricto sensu, pode fazer com que a verdade produzida pelo sujeito avaliado seja transformadora para ele próprio”.
Em minha opinião, a leitura da primeira parte do livro é de grande interesse para todos os psicanalistas, e não só para aqueles que trabalham junto ao Judiciário, como o título pode sugerir, devido ao tema da clínica extensa. Para aqueles que se aventuram nessa área, penso que essa leitura é fundamental, pois, como adverte Fábio Herrmann ao teorizar sobre a Teoria dos Campos, transitar da clínica clássica para o campo institucional exige enorme rigor metodológico e epistemológico, o que a autora tem de sobra. Do contrário, é grande o risco de se perder na interface do discurso da instituição - seja ela de cunho jurídico, médico ou pedagógico.
Cláudia já teria prestado uma grande contribuição se tivesse se limitado a escrever sobre a prática da clínica extensa no âmbito do Judiciário - afinal, hoje em dia, cada vez mais os psicanalistas são solicitados a exercer seu ofício fora do setting tradicional. Mas sua pesquisa não parou por aí: avançou em outra direção.
O contato diário com mulheres, seja na Vara de Infância e Juventude, seja na Vara da Família e Sucessões, constituiu oportunidade privilegiada para pensar sobre os sentidos da maternidade e sobre os lugares que a criança pode ocupar na vida emocional dessas mulheres.
Alguns casos lhe intrigaram; mães que já haviam consentido que seus filhos morassem com os respectivos pais sentiam grande desespero quando percebiam a possibilidade de perder a guarda legal para eles. Margarida pediu em lágrimas: “Você precisa dizer ao juiz que eu não sou aquilo que ele está pensando” (p. 77). Marina, por sua vez, questiona: “se foi ela quem engravidou, ela quem carregou o filho por nove meses, ela quem teve as dores, ela quem quase morreu no parto, é justo agora perder o filho para um homem?” (p. 99). Para essas mulheres, a perda da guarda do filho significa profunda humilhação. Mas a fala delas é autorreferente, “desafetada”. Cláudia observa que o que desejam na verdade não é retomar o convívio com os filhos, cuidar deles, mas sim restaurar seu narcisismo abalado, uma vez que ancoraram sua identidade feminina na maternidade.
Questionando a naturalidade do instinto materno, a autora vai pesquisar então a articulação entre feminilidade e maternidade. E aqui, além de em Freud e Melanie Klein, vai se apoiar em André Green, Pierre Fédida, Joyce McDougall, Annie Anzieu e outros autores contemporâneos.
Assim, na segunda parte do livro, vamos encontrar o relato de três atendimentos na Vara da Família em que há disputa de guarda, sendo que a criança em questão já se encontrava sob cuidado paterno com a anuência da mãe. É sobre esses casos que foi tecida uma profunda reflexão psicanalítica. Aí temos também a oportunidade de ver a psicanalista em ação, com seu próprio estilo. É admirável a sensibilidade de sua escuta e a delicadeza e precisão com que faz suas intervenções.
Apresentei um panorama geral do livro, que, para além da sofisticação teórica e da qualidade da escrita, também impressiona pela atualidade dos temas abordados. A psicanálise sai de seu reduto tradicional, o consultório, e passa a ser aplicada em outros contextos institucionais, o que, por sinal, está em conformidade com o desejo de seu fundador, que pensava a psicanálise como ciência geral da psique. Tema polêmico. Muitos consideram que só se pratica psicanálise estando atrás do divã, atendendo quatro vezes por semana. Penso que o trabalho de Cláudia é uma demonstração cabal de que se pode ser psicanalista e produzir psicanálise do mais alto nível quando se atua dentro de uma instituição. Cláudio Laks Eizirik (2012), em sua resenha para a Revista Brasileira de Psicanálise do livro Intervenções, de Renato Mezan, diz:
Usar o método psicanalítico requer um longo e penoso percurso pessoal, cuja edição definitiva nunca fica pronta, como diria Drummond [...] A maioria dos analistas se torna capaz de usar o método na clínica, alguns mais raros abordam e contribuem para a teoria; outros, ainda mais raros, são capazes de abordar o mundo, vasto mundo, com um olhar psicanalítico. O presente livro ilustra com perfeição este olhar. (Eizirik, 2012, p. 199)
Diria, parafraseando Eizirik, que o livro de Cláudia ilustra com perfeição a aplicação do método psicanalítico nas instituições. Coisa muito difícil de se fazer, também para poucos e bons.
Outro tema bastante atual abordado pela autora é a relação entre feminilidade e maternidade, e como esta última pode ser uma expressão possível da primeira e não um pressuposto. Um fio condutor que permeia a discussão é a distinção que faz entre maternidade e maternagem. Se a maternidade se refere mais à condição biológica de procriação e à vivência narcísica que proporciona, a maternagem remete à condição psíquica para o cuidado com a criança. Essa condição pode estar presente ou não; depende da relação que a mãe teve com a própria genitora, da natureza dos processos identificatórios, outro assunto caro à autora. Talvez nada tenha mudado tanto na sociedade nos últimos cem anos quanto o papel da mulher. Hoje há o reconhecimento de que as mulheres não necessariamente desejam ser mães, e que as condições para a maternagem podem estar presentes tanto em homens como em mulheres, haja vista o crescente número de guardas compartilhadas e de casos, como os descritos no livro, em que a criança é cuidada pelo pai.
Assim como a psicanálise saiu do consultório, seu lugar tradicional - o método psicanalítico permitindo que se expanda para outros domínios -, também a mulher, ao longo do último século, teve como possibilidade abandonar seu reduto tradicional: o lar, a procriação, a maternagem. E quem diz que sua essência não permite isso? O livro de Cláudia ilumina uma e outra questão.
Referência
Eizirik, C. L. (2012). Resenha do livro Intervenções, de Renato Mezan. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(4),199-201. [ Links ]
Correspondência:
Mariangela Kamnitzer Bracco
Alameda Rio Negro, 911, conj. 610 06474-160 Barueri, SP
Tel.: 11 4193-5846
mkb@bracco.com.br