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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

 

RESENHA

 

Sconfinamenti: escursioni psico-antropologiche

 

 

Marisa Pelella Mélega

Médica, doutora em Língua e Literatura Italiana pela Universidade de São Paulo (USP), psicanalista e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Organizadores: Stefano Beggiora, Mario Giampà, Alfredo Lombardozzi & Anthony Molino
Editora: Mimesis, Milano, 2014, 190 p.
Resenhado por Marisa Pelella Mélega

 

 

 

Os organizadores informam ao leitor que o livro Sconfinamenti: escursioni psico-antropologiche [Ultrapassagens: incursões psicoantropológicas] nasceu de uma longa colaboração entre estudiosos interessados em aprofundar os limites entre a psicanálise e a antropologia. Para os autores, tais ultrapassagens são inevitáveis e produtivas desde que possam ser vistas não apenas para ir "além dos confins" de uma disciplina para outra, mas também para acompanhar o percurso de volta, a fim de avaliar os frutos do diálogo e reforçar a especificidade da antropologia e a da psicanálise.

O volume reúne a contribuição de dezessete autores e compõe-se de quatro seções: Um olhar geral; Mudança cultural; Contextos etnográficos e Entrevistas.

Observando o livro como um todo, descobrimos um percurso de natureza multiforme, em que vai se construindo uma rede iniciada por "Um olhar geral", que parte da análise histórico-teórica de Domenico Scafoglio. Este, como antropólogo, coloca em evidência os aspectos produtivos do encontro entre a psicanálise e a antropologia e os seus limites.

O tema da identidade é aprofundado por Virginia De Micco e Gualtiero Harrison por meio de diversas óticas.

Benjamin Kilborne, psicanalista americano e com formação antropológica, centra sua reflexão sobre o tema da imaginação nas ciências humanas.

A seção "Mudança cultural" contém várias modalidades de ultrapassagem.

Cecilia Sinay Millonschik encontra um ponto de conjunção entre a psicanálise e a antropologia na convicção de que a multiplicidade de pontos de vista leva a um princípio epistemológico de coerência.

Paola Di Cori atravessa o tema da identidade propondo uma série de deslocamentos e de passagens da dimensão individual para a social, o que dá a oportunidade de compreender os contextos sociais, políticos e culturais subjacentes.

Nessa mesma direção, Claudio Castelo Filho propõe uma ampliação do campo psicanalítico para o campo social e descreve um caso clínico para mostrar o movimento do foco de observação para o dos componentes sociais presentes na situação psicanalítica.

A vertente psicanalítica é também privilegiada no trabalho de Luca Caldironi, que propõe uma sinergia entre uma experiência psicanalítica - inspirada no pensamento bioniano - e alguns aspectos da tradição mística indiana.

A terceira seção do volume, "Contextos etonográficos", contém trabalhos que se referem a diversos contextos culturais.

Mario Giampà trata de uma cultura de índios do Brasil, aprofundando os componentes místico-rituais, expressão de um contexto simbólico em estreita relação com os componentes psíquicos, religiosos e ambientais daquela formação social. Sugere ainda uma aproximação entre a função do mito como organizador das dimensões socioafetivas do grupo e a função alfa proposta pela psicanálise de W.R. Bion.

Waud Kracke escreve acerca da relação entre o antropólogo e o sujeito de origem indiana, em que emerge o drama psíquico consequente aos aspectos traumáticos da mudança cultural que desestrutura os valores de base de uma cultura.

Gananath Obeyesekere, um dos maiores representantes da antropologia psicológica, trabalha com a pesquisa no plano da psico-história, seguindo o ensinamento de Erik Erikson. Aprofunda-se na personalidade do místico budista Anagarika Dharmapala, que viveu no período do colonialismo britânico no Sri Lanka. Faz uma análise atenta da relação entre o contexto social da colonização e a formação da personalidade do místico, correlacionando as escolhas político-religiosas à história familiar e pessoal, aos traumas psíquicos e ao cenário de mudança cultural do encontro/desencontro entre Oriente e Ocidente - determinando o nascimento de um movimento nacionalista -, em síntese, entre budismo e ética protestante.

Stefano Beggiora, antropólogo expert em estudos sobre a Índia, propõe uma contribuição a respeito das populações tribais do norte da Índia, fazendo uma análise descritiva e interpretativa das tradições "xamânicas" daquela cultura. Seu trabalho se movimenta no campo da antropologia simbólica e religiosa, com interessantes aspectos psicológicos que estão implicados. É enfatizada a especificidade de temas fundamentais da vida social, tais como a doença física e mental, a morte, o sofrimento, a cura, que são reconduzidos a concepções cosmológicas muito complexas que formam o sentido da identidade cultural e regulam as relações entre indivíduo e coletividade.

Na quarta seção do livro, "Fora do campo", são coletadas várias entrevistas que realçam as intuições de um grupo de estudiosos cujas investigações são emblemáticas das "ultrapassagens" do último meio século.

O primeiro desses movimentos é oferecido pelo encontro entre Vincenzo Padiglione e Melford Spiro, que enfrentam temas importantes como o nascimento da antropologia psicológica e a posição da psicanálise na análise antropológica das culturas.

Padiglione pergunta a Spiro a respeito da função e do rol do sujeito e da pessoa em relação às dimensões rituais e simbólicas do viver em sociedade.

Spiro sustenta que a psicanálise não é uma teoria etnocêntrica, e que é lícito e oportuno avaliar a extensão de seus princípios para outras culturas não ocidentais.

Seguem-se três entrevistas de Anthony Molino com Vincent Crapanzano, Kathleen Stewart e Dorinne Kondo. Em síntese, abordam-se os temas da interioridade/exterioridade e da identidade cultural na qual se move o sujeito.

Os organizadores concluem que a antropologia psicanalítica, como campo de incursões que ultrapassam os limites, não pode não acolher a complexa realidade dos objetos/sujeitos que indaga e da qual examina as relações.

É o caso de um livro de Alessandra Piontelli (2008/2012), que estuda a atitude psicológica dos gêmeos e seu rol social em diversas áreas geográficas e culturais.

Ela traz um exemplo vindo da observação dos tambermas do Togo: os gêmeos, considerados sacros e relacionados com almas dos defuntos, e portanto tratados com rituais e tabus específicos, não devem se separar nunca de um curioso objeto de madeira, que consiste em duas vasilhas unidas para que os gêmeos comam juntos. Podem separar-se gradualmente somente quando chegam ao sétimo ano de idade. Em termos culturais, este tabu parece ser a expressão de uma estratégia do grupo para garantir a própria coesão. É oportuno valorizar a necessidade dos grupos de espelhar-se em um objeto de referência, coerente e coeso, que pode garantir a sobrevivência psíquica e social do grupo.

Ao longo deste livro fica clara a posição dos autores quanto a ser a antropologia psicanalítica um campo que deseja iluminar a realidade dos sujeitos no contexto social e vice-versa. No entanto, há evidências de que não interessa aos antropólogos "olhar" dentro dos sujeitos, e sim olhar para as representações coletivas. Eles acreditam não haver maneira de poder "ver" dentro do indivíduo, e tudo o que se pode fazer é considerar os símbolos culturais e as representações coletivas. Para dar um exemplo, M. Spiro, perguntado a respeito do uso dos sonhos pelo antropólogo, afirma: "como antropólogos, nós temos interesse em compreender o que os sonhos, as histórias e as fantasias podem dizer da personalidade, mas certamente os sonhos nos informam mais a respeito das dinâmicas inconscientes específicas de um povo" (p. 232).

Enfim, o diálogo antropologia-psicanálise continua, já passados cem anos, abrindo novas incursões e novas pesquisas, como atesta esse interessante livro que traz o testemunho de tantos autores.

Para finalizar a resenha, que oferece tão somente flashes das incursões psicoantro-pológicas dos mencionados autores, cito um comentário de Anna Ferruta, psicanalista da Sociedade Psicanalítica Italiana, que assim escreveu na quarta capa do livro: Este livro oferece ao psicanalista a oportunidade de debruçar-se num mundo humano poliédrico, a ser explorado com prazer e maravilha, para então voltar à sala de análise com uma mente ampliada pela pluralidade de sujeitos desconhecidos que encontrou e hospedou. Esta experiência cultural pode representar um instrumento útil para tentar reconhecer em nossos pacientes, frequentemente angustiados em fechamentos claustrofóbicos, os selves múltiplos que não se desenvolveram, escondidos nas sombras do inconsciente.

 

Referência

Piontelli, A. (2012). Gemelli nel mondo: leggende e realtà. Cortina: Milano. (Trabalho original publicado em 2008)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marisa Pelella Mélega
Avenida Ver. José Diniz, 3.720, conj. 202
04604-007 São Paulo, SP
pmelega@uol.com.br
www.marisamelega.med.br

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