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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo jul./set. 2015

 

EM PAUTA

 

A espera do segundo filho e as relações fraternas

 

Second pregnancy and fraternal relationships

 

La espera del segundo hijo y las relaciones fraternales

 

 

Regina Orth de Aragão

Membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê ABEBÊ

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da constatação da importância dos laços fraternos para o psiquismo do sujeito, o artigo discute a relação entre os processos psíquicos da maternidade referentes à espera do segundo filho e a maneira como as condições dessa gestação poderão refletir-se nos processos de subjetivação dessa criança, influindo ainda para a determinação do lugar que ela virá a ocupar na nova irmandade.

Palavras-chave: relação fraterna; psiquismo materno; parentalidade; rivalidade fraterna.


ABSTRACT

This paper starts from the evidence that fraternal bounds are important to people's psyche. Considering this evidence, the author discusses the relation between the psychic processes of maternity that are related to expecting a second child, and the way the circumstances of pregnancy may be reflected in this child's subjectivity, while they also affect the determination of the child's place in the new brotherhood.

Keywords: fraternal relationship; maternal psyche; parenthood; sibling rivalry.


RESUMEN

Partiendo de la constatación de la importancia de los lazos fraternos para el psiquismo del sujeto, el artículo discute la relación entre los procesos psíquicos de la maternidad relacionados a la espera del segundo hijo, y la forma en que las condiciones de ese embarazo podrán reflejarse en los procesos de subjetivación de ese niño, influyendo también en la determinación del lugar que ocupará en el nuevo grupo de hermanos

Palabras clave: relación fraternal; psiquismo materno; paternidad; rivalidad entre hermanos.


 

 

Quando pensamos nas relações fraternas, as dimensões de identificação, rivalidade, ciúmes e ambivalência se apresentam logo como as primeiras noções às quais fazemos apelo para descrever essas relações e compreender suas dinâmicas. Desde o pequeno Hans, não podemos mais esquecer todos os efeitos que a chegada de um bebê pode produzir no irmão mais velho. O nascimento da pequena Hanna confrontou-o não só com a descoberta da diferença de sexos, com a angústia da castração e com a problemática edípica, mas também com a rivalidade fraterna, com os ciúmes e a ameaça de perda do amor materno.

A rivalidade entre irmãos foi objeto de inúmeros trabalhos. Ela se desenvolve em geral quando do nascimento de um irmão mais novo, que confronta emocionalmente o irmão mais velho à chegada de um recém-nascido. Inúmeros fatores familiares estão vinculados a essa rivalidade e seus modos de expressão e de elaboração, porém os estudos costumam focalizar as relações entre irmãos sem levar em conta as condições específicas da parentalidade quando do nascimento de um bebê na família. Jean-François Rabain considera a rivalidade fraterna como "uma rivalidade objetal e vital ligada à possessão do objeto materno" (1995, p. 2549) e propõe duas perspectivas distintas de compreensão, mas relacionadas. A primeira perspectiva privilegia o objeto do desejo: o novo bebê reativaria os conflitos arcaicos ligados às primeiras frustrações orais da criança mais velha, e poderia também representar "uma figura lateral do conflito edipiano" (p. 2550), que ele contribui para promover ou intensificar, por sua existência. A segunda perspectiva refere-se aos conflitos identificatórios ligados à rivalidade com o genitor do mesmo sexo: a mãe para a menina, o pai para o menino. Assim, vários psicanalistas interpretam o ciúme fraterno como um deslocamento do conflito edipiano. Alguns autores, porém, afirmam o interesse em atribuir um lugar mais importante para a dimensão fraterna propriamente dita. É o que faz B. Brusset (1987), que considera que o irmão ou a irmã exercem uma ação muito forte sobre o sujeito, mas muitas vezes não reconhecida como tal, pois está mesclada com projeções e questões identitárias associadas à labilidade das identificações que vão se constituindo ao longo da infância e da adolescência.

Por outro lado, inúmeros mecanismos de defesa egoicos tentam reduzir a rivalidade fraterna, que provoca culpabilidade ligada à projeção das censuras parentais. É esperado que esses mecanismos de defesa permitam transformar a violência e favoreçam uma adaptação à realidade, por meio da elaboração e da integração psíquica dos elementos de rivalidade. Pode-se, sem dúvida, considerar que os sentimentos de rivalidade têm um papel organizador no desenvolvimento psíquico da criança e terão repercussões sobre sua vida adulta. As relações fraternas se mantêm ao longo de toda a vida e podem influenciar a escolha dos parceiros amorosos e a atitude parental na constituição da nova família.

A reflexão sobre os efeitos dos laços com irmãos e irmãs sobre o psiquismo permite entender melhor suas funções e aprofundar a compreensão sobre os diferentes aspectos dessas relações, que, mesmo se mostrando muito presentes na obra de Freud, receberam da parte dele uma atenção limitada. No entanto, é possível depreender nitidamente do caso clínico do pequeno Hans (Freud, 1909/1977a) que o laço fraterno se encontra entre o registro da ligação com o objeto primário e aquele do conflito edípico. Será em 1916 que Freud escreverá que "o complexo de Édipo vai se ampliando e torna-se o complexo familiar quando a família aumenta" (1916/1993, p. 359), acrescentando que "o lugar que uma criança ocupa em uma família com vários filhos terá grande importância para a conformação de sua vida futura, e deve ser levado em conta em toda biografia" (p. 360).

Nessa perspectiva, vale ressaltar que as problemáticas parentais se expressam no modo de gestão dos conflitos entre irmãos e irmãs, no registro de uma transmissão intergeracional ou mesmo transgeracional. O lugar de cada criança no desejo dos pais repercute diretamente sobre a qualidade do laço fraterno e organiza suas características. Um exemplo bastante claro dessa dinâmica é o caso da criança de substituição, que nasce após a perda de um irmão ou de uma irmã mais velhos. O filho vê, no olhar de sua mãe sobre ele, quem ele é, quem ele é para ela, mas também o que ela quer que ele se torne, a imagem dele mesmo como fruto das ilusões antecipatórias maternas. É preciso que a criança se sinta aceita como é hoje e no seu devir possível. Se ela perceber que a mãe a quer diferente de quem ela é, encontrar-se-á presa em um impasse em sua subjetivação, não lhe restando outra alternativa a não ser a de se alienar ao desejo materno. Conhecemos essas questões para as determinações muito iniciais da identidade sexual, e também para algumas psicoses infantis precoces. No caso da criança que vem substituir um irmão ou irmã mortos, esse impasse constitutivo é dramático, pois se espera que seja outra que não ela mesma, o que nunca conseguirá ser.

Por esses vários motivos, achamos pertinente nos interrogar sobre as condições nas quais se dá a espera do segundo filho em uma família. Esse é um tema pouco estudado na psicanálise. Diferentes autores têm se debruçado nas últimas décadas sobre a questão das transformações psíquicas maternas e, mais recentemente, também sobre os impactos no psiquismo paterno suscitados pelo nascimento do primogênito, isto é, a primeira experiência de maternidade para uma mulher e de paternidade para um homem. Considerada por alguns autores como uma verdadeira crise existencial potencialmente maturativa (Bydlowski, 1997), equivalente à crise da adolescência, a experiência da primeira maternidade acarreta para a mulher profundos remanejamentos psíquicos, principalmente no registro das identificações, e um retorno por vezes perturbador às suas relações primordiais com os ascendentes, que terão influências marcantes sobre suas relações com o filho que virá.

Para Bydlowski (2002), a maioria das mulheres atravessa um período de grande vulnerabilidade psíquica por ocasião do nascimento de um filho, especialmente do primeiro, e essa fase vai da gravidez até os primeiros meses do bebê. Os processos internos que se instalam durante a gestação são as premissas de relação de objeto com o recém-nascido. Depois do nascimento, a criação do campo intersubjetivo entre a mãe e seu bebê se funda sobre as interações fantasmáticas e comportamentais entre ambos, e sabemos que esses movimentos pré e pós-natais estarão na base da construção psíquica do bebê. Como propusemos em outro trabalho, a mãe,

tanto quanto seu bebê, também precisa do tempo da gestação para, no seu tempo psíquico, constituir-se como mãe. Esse período será necessário para possibilitar o esboço da criação de um espaço psíquico materno constitutivo de um suporte no qual o bebê possa advir como um ser subjetivado, e não mais como um ser biológico somente. (Aragão, 2011, p. 34)

Essas compreensões das alterações profundas que se dão na futura mãe, preparando-a para seu novo papel e para seu encontro com o bebê real, mostram o quanto seus processos serão determinantes para o estabelecimento dessa nova relação, com efeitos marcantes sobre a constituição do filho que nascerá e sobre seus processos de subjetivação. A maneira como uma criança é esperada em uma família, por um casal parental, influencia decisivamente sua identidade, suas bases narcísicas e seu desenvolvimento emocional.

No entanto, a grande maioria desses estudos refere-se à mãe primípara. Isso significaria que a segunda gravidez é só mais uma gravidez, na qual o trabalho psíquico realizado pela grávida seria menos importante? É curioso observar que, se poucos autores se interessaram pela mulher durante a segunda gestação, muitos se debruçaram sobre esse segundo filho e sobre o impacto de sua chegada na família. Assim, as relações fraternas têm sido muito estudadas. E, desde sempre, o amor, a rivalidade e os ciúmes fraternos são narrados pelos mitos, contos e lendas, que nos levam a olhar para os laços complexos que unem irmãos e irmãs. Mas a psicanálise mostra que a individualização dos irmãos e das irmãs é influenciada pela diferença dos investimentos que cada um dos filhos recebeu por parte dos pais, investimentos determinados essencialmente por aspectos da história de cada um dos pais e de seus componentes inconscientes.

Nesse sentido, é interessante refletir sobre a espera de um segundo filho, que, para alguns autores, como O. Bourguignon (1981), sinaliza de fato a constituição de um grupo familiar, que ainda não ficaria configurado com o nascimento do primogênito. O lugar que ocupará esse segundo filho no desejo materno, e também no paterno, terá grande influência sobre seu lugar na família e, consequentemente, nas relações fraternas.

Um estudo realizado por H. Riazuelo (2004), no Laboratório de Psicopatologia Psicanalítica na Universidade Paris X - Nanterre, focalizou o mundo representacional das mães à espera do segundo filho, buscando determinar quais seriam os investimentos específicos dessa nova gravidez, com características diferentes daquelas da primeira gestação. Ao relatarmos aqui resumidamente os pontos principais dessa pesquisa, compartilhamos com a autora sua interrogação a respeito das representações que a mãe constrói em torno de seu segundo filho, para melhor identificar o espaço imaginário que irá acolhê-lo. Por exemplo, podemos nos perguntar se essa segunda criança, em geral nascida após uma segunda gestação, remeterá a futura mãe de modo mais prevalente às relações que ela mesma teve com seus irmãos e suas irmãs. Assim, as ligações com a irmandade e todos os afetos mobilizados em torno dessas vivências, como o ciúme, a rivalidade, o ódio ou a cumplicidade, podem se reapresentar nesse contexto, por vezes projetados sobre as fantasias em torno das relações futuras entre seus próprios filhos. Assim, pensaríamos sobre o lugar que as relações fraternas vividas pelos pais terão nos processos de parentalidade e sobre de que maneira esses processos terão efeitos sobre as relações fraternas dos filhos.

A autora entrevistou e escutou 36 gestantes: 20 primíparas e 16 em segunda gravidez. Nesse grupo, não havia fatores de risco nem qualquer condição especial ligada à gravidez, todas elas transcorrendo sem problemas, e nenhuma tendo sido consequência de procedimentos de fertilização ou de tratamentos favorecendo a gestação. As entrevistas foram feitas durante o sétimo mês de gravidez, e a participação das futuras mães foi voluntária. A pesquisadora escolheu esse período da gestação para as entrevistas com base nos estudos de M. Bydlowski (1997) a respeito do estado de transparência psíquica das grávidas, com uma suscetibilidade intensificada e a emergência de fragmentos do inconsciente à consciência, sob a forma de lembranças, afetos, associações.

Monique Bydlowski define como transparência psíquica essa modalidade particular de funcionamento do psiquismo materno na qual a eficiência habitual do recalcamento se vê reduzida, permitindo a emergência de conteúdos psíquicos recalcados, relativos a experiências e fantasias infantis. Esse estado - "marcado por um superinvestimento da história pessoal da mãe, com uma plasticidade importante das representações mentais centradas sobre uma inegável polarização narcísica" (Bydlowski & Golse, 2002, p. 217) - se desenvolve ao longo dos meses da gestação e atinge um grau de sensibilidade maior durante o último trimestre, daí a escolha do sétimo mês para os interesses da pesquisa.

Entre os vários aspectos estudados nessa pesquisa, alguns nos interessam mais especialmente, por serem indicativos do investimento materno dessa segunda criança, do lugar imaginário que ela ocupa no psiquismo materno, em relação à sua própria mãe, ao pai, ao primogênito, à família.

Dois eixos principais decorrem do estudo, um deles relativo à espera de um segundo filho, e o outro a respeito das características desse segundo bebê imaginado.

 

Estar grávida de um segundo filho

Todas as entrevistadas se queixaram por não se sentirem suficientemente apoiadas durante a segunda gravidez, sentindo falta de toda a atenção que receberam durante a primeira. A importância da matriz de apoio da constelação da maternidade (Stern, 1997) é tão grande para a grávida do segundo filho como na primeira gestação, porém o ambiente não corresponde à expectativa dela. A queixa da falta de investimento do companheiro foi repetida no grupo, e a gravidez foi vivida como se fosse um assunto só da mãe, considerada como já experiente depois da primeira, sabendo o que lhe acontece e capaz de resolver sozinha a situação. Evidentemente, essa vivência terá reflexos sobre o investimento materno do segundo bebê.

O DESEJO DE TER UM SEGUNDO FILHO. Considera-se que o primeiro filho é esperado para satisfazer demandas profundas dos pais, no registro narcísico de cada um deles, e os filhos seguintes serão esperados com componentes fantasmáticos mais difusos e talvez menos carregados. O desejo de ter outro filho parece estar ligado à vivência da mãe em sua própria família de origem, em especial às relações que ela estabeleceu com seus irmãos e irmãs. Assim, pode-se conjecturar que, se o primeiro filho responde à necessidade narcísica do casal, o segundo estabelece realmente o grupo familiar. O segundo filho é imaginado em relação ao modelo de família ideal desejado secretamente pela mãe, e ele pode vir tanto realizá-lo como também perturbá-lo. O desejo de ter um segundo filho pode estar também vinculado ao desejo de dar um companheiro para o primeiro: dar-lhe um irmão ou uma irmã, para que ele não fique sozinho.

A REORGANIZAÇÃO IDENTITÁRIA. As mães de segundos filhos parecem ter menor necessidade do que as primíparas de se identificar às suas próprias mães, pois elas podem se apoiar em sua própria experiência materna. Além disso, a reorganização identificatória que ocorre quando da passagem do estatuto de filha para mãe está menos presente no caso de uma segunda gravidez.

 

Representações maternas do segundo filho

as interações pré-natais. As relações com o bebê na segunda gravidez, como na primeira, se organizam em torno das primeiras sensações percebidas pela mãe dos movimentos do feto e pela primeira ecografia, experiências que introduzem mudanças significativas na representação psíquica do bebê, que ganha a partir delas um grau de existência mais claro. Os movimentos do feto e as primeiras imagens ecográficas oferecem um suporte corporal e visual às representações do bebê imaginário. Mesmo isso também ocorrendo na segunda gestação, as entrevistadas avaliam que se comunicam menos com seu bebê e dizem passar muito tempo ocupadas com o primeiro filho, pensando menos naquele que esperam, o que as culpabiliza bastante. Elas notam claramente que investem muito mais tarde essa nova gravidez e o novo bebê que carregam. Algumas das mães dizem que começaram a imaginar o segundo filho comparando-o com o primeiro, como se fosse necessária a referência ao primogênito para dar um lugar imaginário ao segundo. Assim, essas mães parecem ter menos necessidade de antecipar o bebê que virá, ele está menos carregado das fantasias que envolviam o primeiro, ligadas à inquietante estranheza.

Essa comparação entre os dois filhos se organiza também em função da adequação ou não ao bebê imaginado na primeira gestação. Se o primeiro filho correspondeu aos desejos maternos, a mãe pode ter dificuldades para imaginar seu segundo bebê - o primeiro de certa forma invade o imaginário e impede o espaço para o segundo. Quando, ao contrário, o primeiro filho não correspondeu à expectativa materna, especialmente em relação ao sexo do bebê, o segundo é desejado para atender essa expectativa, e será esperado para corresponder à imagem dos pais, ou de um ascendente, como havia sido o primeiro filho.

A RIVALIDADE. A escuta de mães durante a gestação nos informa que durante o processo psíquico da maternidade elas vivem uma reativação não só da problemática edípica, mas também das relações arcaicas e primordiais. A primeira gravidez vai mobilizar os desejos incestuosos, como ainda a identificação com a mãe rival do período edipiano, que deve dar lugar ao reencontro imaginário com a mãe dos cuidados iniciais, marcado pelo apego terno, embora ambivalente. Durante a segunda gestação, essa rivalidade edipiana novamente se apresenta e dependerá também do que se deu na primeira - por exemplo, em relação ao sexo do bebê, ou em relação ao número de filhos que teve a avó materna e quantos tem ou terá a filha. As dimensões dessa rivalidade aparecem de modo encoberto como sentimentos de vitória ou de derrota em relação à avó materna.

Ter um segundo filho traz muitas vezes uma onda de culpabilidade perceptível na preocupação das mães quanto às reações do filho mais velho e seus sentimentos de ciúme. Elas antecipam com temor a divisão da atenção e dos cuidados entre os dois filhos e temem que a chegada do bebê venha perturbar a relação delas com o primogênito, podendo marcar uma verdadeira ruptura nessa relação. De certo modo, as mães grávidas pela segunda vez parecem se ver confrontadas com a reativação de suas próprias rivalidades fraternas.

Já outras vezes as mães podem imaginar seus filhos fazendo aliança contra o casal parental, como no mito da horda primitiva. Freud (1913/1977b) aponta o ódio e os desejos fratricidas como primeiros, a solidariedade fraterna sendo uma formação reativa que leva os rivais a se aliarem a fim de evitar um novo assassinato do pai. Os filhos partilham a interdição do parricídio e transformam seu ciúme e ódio em solidariedade. Em troca, cada um se apropria simbolicamente de uma parte da potência paterna ao se identificar ao genitor.

A QUESTÃO DA FILIAÇÃO. A criança é, não importa se primeira ou segunda, um lugar de transmissão psíquica que se inscreve na filiação. O peso dessa transmissão será mais forte para o segundo filho se o primeiro não satisfez os desejos maternos, mas ele ficará mais livre dessas projeções se a primeira criança correspondeu às aspirações narcísicas dos pais.

Em conclusão, a pesquisa indica diferenças notáveis entre ter um filho e ter mais de um filho. Se a mãe do segundo filho não se encontra mais em face do desconhecido, ela é confrontada, quando da chegada do segundo filho, à revivescência da irmandade. Ao desejar outro filho, a mãe cria uma irmandade e vai então se encontrar necessariamente às voltas com sua própria experiência fraterna. Com a chegada do segundo filho, além da problemática edipiana reativada, serão também todas as lembranças ligadas à sua experiência como membro de sua irmandade que voltarão à memória. À medida que se dão os nascimentos, a mulher grávida evolui em sua maneira de se posicionar como filha de seus pais, como companheira, mas também como membro de sua família de origem, em suas relações com os irmãos e irmãs. Cada nascimento coloca a mãe em uma situação nova, obrigando-a a criar o novo sem negar o antigo - trata-se de uma mistura de repetição e de inovação. A experiência da maternidade não está estabelecida definitivamente com a primeira gravidez, e os nascimentos sucessivos podem também provocar inúmeros remanejamentos psíquicos, que terão efeitos marcantes sobre os processos de subjetivação de cada um dos filhos e, consequentemente, sobre as relações que se estabelecerão entre os irmãos.

A chegada de uma nova criança tem assim efeitos sobre a mãe, e esses vão se refletir sobre os irmãos mais velhos. A preocupação materna primária, mesmo se foi mais intensa para o primogênito, absorve os investimentos da mãe, que pode se culpabilizar por não conseguir sustentar nesse período uma maior disponibilidade para seus outros filhos. Há ainda o caso específico da depressão materna pós-parto, que deixa os filhos mais velhos confrontados com a mudança incompreensível da mãe, podendo eles atribuir a si mesmos a responsabilidade pelo que se passa.

Se o irmão ou a irmã podem estar no lugar do terceiro em várias triangulações possíveis, objeto substituível segundo as necessidades das fantasias centradas sobre as imagos parentais, as noções correntes de rivalidade e de ciúme ligadas às relações fraternas devem ser vistas também à luz de seu vínculo com a imago materna primária, e muitas vezes do que se passou para a criança pequena em decorrência das mudanças na mãe pela espera e pelo nascimento de um irmão ou irmã caçula.

Pode-se traçar essa evolução da relação fraterna dizendo que o irmão é inicialmente o intruso que confronta a criança ao outro de seu objeto primordial, para passar a ser seu duplo especular que o confronta a si-mesmo como outro, na dimensão da identificação e da alteridade, antes que possa ser elaborada, pela instância do Ideal do Eu, uma distância possível de si a si-mesmo, organizadora do narcisismo. Essa evolução é indicativa de como o laço fraterno tem funções e lugares diversos na economia psíquica. Sendo ao mesmo tempo familiar e estrangeiro, visto como objeto de desejo e de identificação, o irmão ou a irmã, em suas múltiplas facetas, contribuem de modo determinante para a história subjetiva infantil.

Do ponto de vista do desenvolvimento emocional, o irmão ou a irmã constituem, por sua própria existência, uma limitação ao desejo de uma relação exclusiva com a mãe, com o pai ou com os dois pais. Nesse ponto, eles são fonte de interrogação para a criança sobre quem ela é para seus pais. A criança se percebe em relação com o outro, e também pelo lugar que lhe é atribuído pela mãe, pelo pai, pelos parentes. Reecontramos aqui a questão já colocada do lugar da criança no desejo de seus pais. Além disso, podemos avançar que os conflitos derivados da rivalidade e do ciúme podem ser iluminados se forem vinculados não só com a inveja primária, mas com outros aspectos das relações primitivas com a mãe, em referência ao lugar psíquico que cada filho pode ocupar no desejo materno.

 

Referências

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Correspondência:
Regina Orth de Aragão
Rua Engenheiro Alfredo Duarte, 495
22461-170 Rio de Janeiro, RJ
Tel: 21 3281-0097
reginaoa@uol.com.br

Recebido em 31.08.2015
Aceito em 14.09.2015

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