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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo jul./set. 2015

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Transferência: a dinâmica do afeto nos processos de cura

 

Transference: the dynamic of affect in the healing process

 

Transferencia: la dinámica del afecto en los procesos de cura

 

 

Ronis Magdaleno Junior

Membro efetivo do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do paradoxo freudiano de ser a transferência a mais forte resistência ao processo de cura analítica e a ferramenta mais potente na direção da cura, o autor se propõe a discutir a vertente metapsicológica da transferência e suas implicações no processo de cura. Duas ilustrações clínicas procuram mostrar os deslocamentos do afeto que constituem a transferência e as novas possibilidades de investimento afetivo que se abrem para o paciente, sendo esta mobilidade entendida como cura. Este ponto de vista tem influência direta sobre a técnica analítica e sobre o lugar da interpretação, ressituando o dispositivo psicanalítico e abrindo novos caminhos para o tratamento, afastando a psicanálise do modelo médico e psicológico. Destaca-se o lugar de insignificância do analista, que deve se colocar o mais longe possível de modelos predeterminados para que os deslocamentos afetivos que compõem o processo transferencial possam se estabelecer com toda sua potência.

Palavras-chave: psicanálise; transferência; técnica psicanalítica; cura.


ABSTRACT

Starting from the Freudian paradox that transference is the strongest resistance to the process of analytic healing and the more potent tool towards healing, the author proposes to debate the metapsychologic branch of transference and its implications in the healing process. Two clinical illustrations attempt to demonstrate the displacement of affect that constitutes transference, and to present new possibilities of affective investment that are available to patients. This mobility is understood as "healing". This point of view has a direct influence on the analytic technique, and also has influence on the place of interpretation: it situates again the psychoanalytic device and opens up to new possibilities in treatment for patients as it separates psychoanalysis from medical and psychological models. We highlight the in-significant position of the analysts, who should stand as far away as possible from predetermined models, in order to enable affective displacements (which are compounds of the transferential process) to be established in their full potential.

Keywords: psychoanalysis; transference; psychoanalytic technique; healing.


RESUMEN

Partiendo de la paradoja freudiana de que la transferencia es la resistencia más fuerte al proceso de cura analítica y su herramienta más potente en la dirección de la cura, el autor propone discutir la vertiente metapsicológica de la transferencia y sus implicaciones en la clínica y en el proceso de cura psicoanalítica. Dos ilustraciones clínicas demuestran los desplazamientos del afecto que constituyen la transferencia y las nuevas posibilidades de inversión afectiva que se abren para el paciente, siendo esta modalidad entendida como una cura. Este punto de vista tiene una influencia directa sobre la técnica analítica y sobre el lugar de la interpretación, recolocando el dispositivo psicoanalítico y abriendo nuevos caminos para el tratamiento, alejando definitivamente el psicoanálisis del modelo médico y psicológico. Se destaca el lugar de insignificancia del analista, el cual se debe colocar lo más lejos posible de los modelos predeterminados, para que los desplazamientos afectivos que componen el proceso transferencial puedan establecerse con toda su fuerza.

Palabras clave: psicoanálisis; transferencia; técnica psicoanalítica; cura.


 

 

Paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud é que o campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do psicanalista é irredutível, como testemunha desta perda.

(Jacques Lacan)

Freud (1912/19690) postulou que a transferência é "a mais forte alavanca do sucesso terapêutico na análise" (p. 253). Esta é mais uma de suas inúmeras afirmações que, a princípio, parecem simples e operativas na clínica. Contudo, ao nos debruçarmos sobre o estudo e o desenvolvimento do conceito, nos damos conta de sua complexidade e do paradoxo que é inerente a ele. Já de início nos deparamos com a seguinte questão: como é que uma importante resistência ao processo analítico pode, ao mesmo tempo, ser a mais forte alavanca deste mesmo processo? É o que procuraremos esclarecer a seguir.

Freud diz, numa carta ao pastor Pfister, que "a transferência é realmente uma cruz. A obstinada teimosia da doença [...] não pode ser totalmente eliminada pela análise, pode apenas ser diminuída, e suas relíquias se fazem presentes na transferência" (1963, p. 39). Podemos entender essa cruz como a pressão e a sedução do analisando para que o analista jogue com ele dentro do campo proposto obstinadamente pelo sintoma.

Grosso modo, existem duas vertentes técnicas no trabalho com a transferência, ambas partindo, com boas fundamentações, da obra de Freud. Poderíamos denominá-las: vertente metapsicológica e vertente intersubjetiva. A primeira delas parte da teoria freudiana dos sonhos, sobretudo do modelo desenvolvido no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900/1972), e do artigo técnico-metapsicológico "A dinâmica da transferência" (1912/1969). Por outro lado, podemos localizar a vertente intersubjetiva a partir do artigo técnico "Observações sobre o amor transferencial" (1915/19695) e do metapsicológico "Luto e melancolia" (1917/19691), em que Freud desenvolve o que seria o broto da teorização sobre o objeto interno e suas relações. Depois de Freud, escolas psicanalíticas se formaram com base em cada uma dessas vertentes, desembocando nas "controvérsias" entre seguidores de Anna Freud e Melanie Klein, em meados do século XX.

Talvez a perplexidade de Freud -mesmo suas hesitações quanto ao manejo da transferência, e toda a babel teórica e técnica que se criou entre os psicanalistas até os dias atuais - deva-se ao que Grimberg (1997) aponta como um perigo representado pelas relíquias da doença, tanto no analisando como no analista. A transferência remete à experiência do "estranho" (Freud, 1919/19690), que provoca no sujeito sentimentos de estranha familiaridade, com reações de desconforto, curiosidade e medo. Além do perigo representado pelo contato com suas relíquias patológicas, há um outro perigo, este de natureza traumática para o analista, pois a transferência surge, como veremos, justamente na lacuna do discurso, no lugar do vazio de significação, de onde o indizível procura falar. Entretanto, trata-se de lugar de silêncio, com alto poder de sedução - maior até que o da fala -, pois remete a tudo aquilo que está sob a égide do recalcamento, da cisão e da não representação, consequentemente a uma linguagem muda que atrai para um ponto de fuga imemorável do sujeito e da espécie (Fédida, 1996). É essa "mudez barulhenta - a insistência das posições sintomáticas" (Menezes, 2003, p. 413) - que tem um efeito paralisante sobre a vida do paciente e que pode ter este mesmo efeito sobre a escuta do analista.

Ilustro com duas situações clínicas o processo transferencial em curso e as estratégias analíticas que possibilitam torná-lo representação, discurso e processo de cura.

 

Juan

Juan é um homem de pouco mais de 30 anos, que me procurou com um sofrimento intenso decorrente da dificuldade em sentir-se aceito em função de sua homossexualidade, sobretudo pelo medo de que sua mãe soubesse e o castigasse por isso - segundo suas palavras, "que o deserdasse". Junto a isso, tem uma vida sexual promíscua, composta basicamente por relacionamentos sexuais anônimos em saunas, banheiros públicos e com garotos de programa, atividades que o deixavam (realisticamente) muito assustado, com medo de ser agredido, assaltado ou contaminado com alguma doença sexualmente transmissível. Os sentimentos predominantes eram de angústia, medo de rejeição e solidão.

JUAN: Ontem você falou um negócio que gostei de ouvir: que eu estava diferente de dois anos atrás. Deu uma tranquilidade dentro de mim, como se tivesse percebido que não vão mais acontecer aquelas coisas que tenho medo. Isso me deu uma paz, um conforto... Tive um sonho em que estava numa casa, que é a casa de minha mãe. Uma hora quero sair... É como se estivesse para tomar banho, quisesse fazer alguma coisa diferente das pessoas que estavam lá. Aí vem uma amiga minha com um bebê no colo. Com isso eu volto para casa e vejo esta amiga, que fica tão feliz em me ver que derruba o bebê no chão e ele fica com uma mancha na cabeça. Ela não percebe a gravidade, só eu que me preocupo... Em outra cena eu estou nessa mesma casa, tem uma festa e chega uma criança com a mãe... Há uma piscina coberta com um plástico no qual daria para subir em cima. A parte do meio é mais sensível. O garotinho vai andando à procura do pai e a mãe vai seguindo ele. Fico desesperado que a criança vai se afogar na parte mais frágil. Mas ela não cai, pois o plástico é sustentável. A água da piscina é limpa, está fechada por causa da festa. O bebê não cai, não se afoga...

ANALISTA: É a sensação que teve ontem, de algo sustentável nesta casa aqui, apesar de haver uma área frágil, uma mancha, o perigo de afundar.

J.: É como se eu estivesse protegido, que não vou afundar. A casa está firme no sonho. Antes as casas estavam sem paredes, caindo.

A.: Ontem falamos justamente de um lugar mais firme dentro de você.

J.: Meu outro analista falava que eu tinha de criar raízes e eu achava aquilo tão estranho. Não sou árvore! Nesse sonho que contei, lembrei agora que numa das cenas era como se eu estivesse num lugar bem aberto e tivesse uma árvore grande e eu estivesse nela. Aí essa árvore deixava de ser uma árvore e virava uma casa firme. Não era uma casa perfeita, mas é minha casa, meu lugar. Engraçado, deixa de ser uma árvore e vira uma casa... O que procuro não é uma árvore, mas uma casa.

A.: Sair da árvore genealógica. Sua luta é para sair desse aprisionamento na árvore e ter o seu lugar.

J.: Sabe que meu avô vivia numa comunidade religiosa e dizem que tinha um quê de loucura? Ele teve vários filhos e meu pai foi o único que quebrou com isso. Foi o primeiro filho que saiu de casa para ir em busca das coisas dele, montar seu próprio negócio na cidade. Às vezes acho que estou fazendo o mesmo caminho dele, tentando sair de casa, ter o meu reconhecimento próprio. Meu pai não queria ser filho dessa comunidade e eu quero ser o Juan, não o filho da dona Maria [nome fictício de sua mãe]. Quando era pequeno, minha mãe me colocava na cama para dormir com ela e com minha irmã. Acho que é por isso que tinha que fugir. Ser o homem daquela casa, daquela cama. Depois eu fui dormir na sala, no chão, na porta do quarto dela. Quando resolvi ter o meu quarto foi uma confusão, o quarto não tinha cama, não tinha nada. Resolvi pegar uns tijolos, empilhá-los e montar alguma coisa ali, fazer minha cama. Eu tinha uns 10 ou 11 anos. Na verdade, estava montando meu quarto, meu lugar.

A.: Você arrumou os tijolos, mas ficaram soltos, como você sente que ficaram as coisas dentro de você, sempre ameaçado de desmontar.

J.: Minha mãe e minha irmã foram contra.

Depois de algum tempo, ela resolveu fazer daquele quarto o meu quarto, mas junto veio meu primo para dividir o quarto comigo. Tinha o quarto, mas o quarto não era meu, não tinha lugar, de novo. O quarto não era de ninguém.

A.: Então, minha fala ontem teve o efeito de confirmar que existe sim um lugar para você, um lugar que é seu, a partir do qual você pode começar a fazer sua vida.

A fala do analista na sessão anterior remetera a uma cena que remonta à própria doença de Juan, que fica representada no sonho: uma situação de perigo iminente de afundar em função de falhas na constituição de seu Eu. O analista, ao apontar uma construção que vem sendo feita na análise, faz com que experimente uma sensação de segurança que o remete a um pai e objeto de identificação que até então estava perdido.

Na transferência, pelo deslocamento afetivo que a constitui, cria-se um novo fato, constrói-se no presente um passado que passa a não ser mais o mesmo. O ressurgimento do pai em sua história de vida é a consequência do trabalho analítico desses primeiros anos de análise: aquele que estava morto e que era descrito como alcoólatra, infiel e ausente passa a ser aquele que enfrentou o clã para construir seu lugar no mundo, que deixa a genealogia e passa a ser casa, lugar, portanto, figura de identificação possível. O passado muda e passa a ter sido sempre aquele que se criou a partir do trabalho transferencial, e o presente passa a ser um futuro do passado alterado (Herrmann, 2008). A transferência é esse instrumento que permite que as obstinadas repetições sintomáticas possam criar lembranças de um passado que se constitui e se constrói. O pai, tido até então como "devasso e morto por isso", passa a ser "o pai que busca seu lugar no mundo", portanto, figura de identificação vitalizante e estimulante. A fala do analista, "Você está diferente de dois anos atrás", tem esse efeito revitalizador e de construção de um pai criativo e estimulante para o menino fazer frente ao convite incestuoso da mãe, que o impede de estar no mundo.

 

Paula

No início achei que sabia o que Paula queria. O fato de eu acreditar que sabia o que ela queria dava-me um sentimento de tranquilidade, mas ao mesmo tempo uma sensação paradoxal de insegurança. Demorei algum tempo até perceber que estava enredado na armadilha histérica. Assim como Freud (1905/1969d) achava que sabia o que queria Dora, lá estava eu achando que sabia do que ela precisava: de um homem.

Eu interpretava suas comunicações sempre apontando para uma saída, que mostrava para ela que eu sabia o que ela queria, do que ela precisava. Mas nada acontecia, suas queixas se repetiam e dentro de mim ia crescendo um sentimento de insuficiência, de que talvez ela não me achasse um bom analista. Depois de algum tempo fui percebendo que esse sentimento de insuficiência, de impotência, de não conseguir penetrá-la, era o modo de que ela dispunha para dar corpo,1 no campo transferencial, a seu modo de relacionar-se com o outro e que estava presente com toda a sua potência na análise desde o início, mas sombreado pela sedução.

Era um clima muito peculiar o das sessões desse período, pois ela vinha regularmente às sessões, falava sobre seus problemas, sobre o que havia acontecido durante a semana, trazia sonhos. Nada, a uma visão mais superficial, fazia notar qualquer mal-estar em relação a mim e à sua análise, mas o sentimento de ineficiência continuava em mim, insistia obstinadamente.

Um dia ela estava presente em uma conferência que apresentei num evento científico e na qual não me saí bem. Conta que, após o término da conferência, uma colega lhe disse: "Coitado do Ronis!" Estava aí escancarada a mensagem transferencial que remetia ao sintoma. O gozo de Paula não era poder entregar-se a um homem, mas fazê-lo crer que sabe o que ela deseja para, desmascarando-o continuamente, colocá-lo impotente e submetido.

A interpretação que ofereço a essa fala dela denuncia um ponto cego contratrans-ferencial, a impossibilidade de me livrar das malhas da armadilha histérica. Digo: "Parece que perdi a firmeza aí dentro de você e isso me coloca num lugar de inferioridade.

E você precisa de alguém que seja firme!" E ela responde prontamente: "Preciso de uma mãe!" Sua colocação é precisa, anacrônica e bruta, como todo material que vem daquele lugar de verdade escondido dentro de cada um de nós. Ante a farsa do homem que sabe, ela, num insight preciso, redireciona nossa atenção para aquilo que está além da problemática fálica da menina, para a pré-história do Édipo.

Minha compreensão desse movimento possibilitou uma manobra técnica que rapidamente passou a surtir efeito, pois ao me reposicionar frente a ela, desfizeram-se as malhas da armadilha histérica e pudemos caminhar mais um pouco, agora em outra direção. Em vez de incorporar o lugar daquele que "sabe o que ela quer", passei a convidá-la a reconhecer aquilo que ela já sabia e a costurar com esses elementos. Esse momento de virada rearticulou o discurso de Paula. A aproximação que ela se permitiu fazer de mim foi quase imediata. As queixas em relação ao marido e ao pai diminuíram. A mãe, que pouco aparecia em seu discurso manifesto, começa a se fazer presente com grande intensidade: um ressentimento em relação a ela, quanto a sua distância, quanto ao fato de ter sido sempre uma pessoa preocupada só consigo própria.

Nessa situação entendo haver ocorrido um processo interpretativo na transferência, através de uma mudança de postura do analista, e que teve como ponto de culminância a mudança da atitude interpretativa do analista. Do ponto de vista técnico, a identificação de um enredamento trans-ferencial como esse deve servir como elemento de reposicionamento do analista, e não como ponto de partida para tornar a transferência consciente, o que pouco efeito terapêutico tem. Freud se deu conta disso em 1915, quando postulou um inconsciente funcional no lugar do inconsciente topográfico, o que permitiu uma revisão da função da interpretação na técnica analítica, passando essa a funcionar, a partir de então, como meio de abrir novos fluxos associativos e novos contatos entre representações, e não mais como um meio de tornar representações inconscientes em conscientes, o que de fato não é possível.

Creio que, ao me reposicionar frente ao desejo de Paula, colocar-me como alguém que tem curiosidade de estar junto dela em suas pesquisas sobre o que é ser mulher, sobre o que existe dentro de seu corpo, e, principalmente, ocupar esse lugar levando em conta o que ela já sabia e as respostas (boas ou ruins) que havia articulado no seu percurso de vida, pudemos criar um novo campo de trocas. Certo dia, ela me diz: "É engraçado, quando comecei minha análise tinha muita raiva de meu pai e agora percebo que a minha raiva era de minha mãe!" Frase simples, mas que assinala o momento em que Paula se reposiciona frente a sua história, umaggiornamento dela ali, ao vivo, fundamental para sua vida.

 

A vertente metapsicológica da transferência: a dinâmica do afeto

Freud define a transferência como algo que se impõe imediatamente antes que a representação recalcada se torne consciente. Cito-o:

Seguindo um complexo patogênico desde sua representação consciente até sua raiz no inconsciente, logo se chega a uma região em que a resistência vigora tão claramente que a associação seguinte tem de levá-la em conta e aparecer como compromisso entre as suas exigências e as do trabalho de investigação. É então que surge a transferência. [...] Dessa experiência inferimos que essa ideia transferencial irrompeu até a consciência antes [grifo nosso] de todas as outras associações possíveis porque satisfaz também a resistência (1912/1969b, p. 254).

Seguindo esse percurso teórico, a transferência seria:

■ uma consequência do recalque;

■ a via principal de contato com o recalcado in status nascendi;

■ um evento, um agir que está antes e que impõe um silêncio.

A transferência é o inconsciente em ato (Lacan, 1985), um "evento real" (Pontalis, 1990, p. 91) que não pode ser dito por meio de uma linguagem comum, sendo a experiência do "estranho", introduzida por ela, motivo para reações defensivas que afastam da experiência viva da transferência. Desse modo, a realidade da transferência seria essa presença do passado, mas uma presença que é um pouco mais que presença, sendo presença em ato (Lacan, 1985, p. 176).

Uma reação do analista frequentemente observada frente à ameaça que representa esse indizível introduzido pelo ato é um processo de positivação da transferência, ou seja, o afastamento da complexidade da transferência e a objetivação de sua aplicação na clínica, tornando-a quase algo visível e palpável na figura e sobre a pessoa do analista. Ocorre uma confusão entre o lugar simbólico do analista (como representação) e seu lugar real (enquanto pessoa), levando essa "domesticação do fenômeno da transferência" (Menezes, 2008, p. 70) a um afastamento daquilo que é essencial no manejo da transferência, que é sua possibilidade de "migração" (Pontalis, 1990, p. 86), ou seja, de deslocamento de afetos entre representações. Entendo que o acento deva cair não sobre a pessoa do analista, mas no desvio de uma moção pulsional que busca um objeto (uma representação) nunca encontrado, sendo, portanto, da ordem de uma opacidade criada pelo trauma (Magdaleno Jr., 2011) - no sentido de que o trauma não cria, mas congela determinada circunstância (Herrmann, 2008). É justamente essa impossibilidade da significação que é responsável pelo limite da rememoração, no sentido daquilo que impõe a repetição, destino este que só pode ser alterado, parcialmente, ao ser atravessado pela transferência.

Penso que toda tentativa de positivar esse evento, isto é, objetivá-lo a partir de um lugar predeterminado, provoca, na melhor das hipóteses, um segundo registro pré-consciente, que de nada ajuda na desobstrução do fluxo associativo que está paralisado. Na maioria das vezes, pelo contrário, reforça a defesa.

Assim, a experiência transferencial é um evento que tem lugar onde a palavra não mais se encontra disponível ou onde a palavra nunca esteve presente, recrudescendo fenômenos de massa (Freud, 1921/1969h), nos quais o movimento afetivo se dá de maneira bruta, sem mediação, à revelia do Eu. Esse evento real, "o grito de incêndio que subitamente interrompe a representação teatral" Freud, 1915/1969g, p. 211), evoca aquilo que, ao mesmo tempo, põe fim à apresentação e causa uma grande desordem entre atores e espectadores. É um evento que não acontece num outro tempo, mas agora, um "estranho fenômeno em que se conjugam repetição e primeira vez" (Pontalis, 1990, p. 78). Trata-se de uma paixão que não teve lugar, que "não tinha encontrado seu lugar psíquico", e que o paciente "repete sem texto" (Pontalis, 1990, p. 78). É nesse contexto que devemos entender a paixão-sintoma como "substituto de algo que não aconteceu, não se realizou" (Freud, 1917/1969a, p. 330).

Desse modo, o trabalho com a transferência conduz não diretamente para o objeto, mas para novas inscrições, "para o nascimento de uma escrita, e não para a revivescência de uma imagem ou a recuperação de uma lembrança" (Pontalis, 1990, p. 64).

Estamos num campo bastante movediço... Um descuido com a característica fundamental do processo transferencial, que é o fato de ser um fenômeno lacunar e sem texto, pode transformar o uso e a interpretação da transferência em um artifício técnico quase que autorreferente da pessoa do analista, que passa a acreditar estar vendo em toda comunicação do paciente uma mensagem dirigida diretamente a sua pessoa. A "focalização" da atenção do analista "naquilo que está acontecendo dentro da relação" e em como o paciente está "usando o analista, ao lado e para além daquilo que está falando", conforme proposto por Betty Joseph (1990, p. 77), dá à transferência uma espessura que na realidade ela não tem, correndo o risco de uma psicologização relacional da análise, uma atitude que pode desarticular a sua potência. Diferentemente disto, espera-se do analista "a arte de tornar possível que esta potência se torne operante no interior do dispositivo analítico, todo feito para que ela possa ali pôr-se em ato" (Menezes, 2003, p. 409).

Para Freud, o que é transferido para o analista, enquanto representação in-significante, são moções pulsionais, assim como os "desejos infantis utilizam, na formação dos sonhos, alguns restos, selecionados, do dia" (Pontalis, 1990, p. 65). Desse modo, o analista seria esse "resto" oferecido dia após dia ao analisando como uma representação provisória, o mais livre possível de ocupação para ser ocupada pelas moções pulsionais do analisando, justamente quando a palavra falta. É nesse lugar ético (Magdaleno Jr., 2005) que o analista trabalha, sendo seu papel o de deixar-se apreender enquanto elemento onírico que sustenta aquele sonhar encarnado na situação transferencial.

Aqui se faz necessária uma pequena digressão em direção ao lugar de in-significância do analista, que pode ser aproximado do menos preciso conceito de neutralidade do analista. O analista, ao se oferecer como representação potencial para a transferência, deve prescindir do lugar de um significante predeterminado qualquer - por isso uso o termo "in-significante", no sentido de negativo, de ausência do significante. É um lugar de presença-ausência que é propiciador da construção de uma nova linguagem a partir do indizível veiculado pela transferência.

Seguindo a proposta freudiana, Lacan diz que, na situação de análise, "a presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente" (2008, p. 125). Entendo essa manifestação como sendo o analista uma possibilidade de representação (assim como os restos diurnos na formação dos sonhos) que se oferece ao analisando, sendo a transferência que dá acesso a esse "indeterminado de puro ser que não tem acesso à determinação, essa posição primária do inconsciente que se articula como constituído pela indeterminação do sujeito" (Lacan, 2008, p. 125).

É, para Lacan, aqui que podemos reconhecer um momento muito significativo da "passagem de poderes do sujeito para o grande Outro (A), o lugar da fala, virtualmente lugar da verdade" (2008, p. 129). Este grande Outro já está lá, interpretante, antes do analista, sendo a transferência a interrupção da comunicação do inconsciente, o meio pelo qual o inconsciente torna a se fechar. Isto gera o paradoxo encontrado na clínica, ou seja, a transferência é ao mesmo tempo o fechamento do inconsciente e instrumento de cura por excelência. É nessa relação que se institui "uma procura da verdade em que um é suposto saber", mas que é logo atravessada pelo pensamento de que "não somente ele não deve se enganar como também que se pode enganá-lo" (Lacan, 2008, p. 136). Toda asserção do paciente tem esta dupla face. Em suma, a transferência proporciona um cenário complexo no qual a dimensão da verdade se instaura "se instituindo numa certa mentira que se põe na dimensão de verdade" (Lacan, 2008, p. 137).

Do ponto de vista da cura, a transferência é fundamental, pois, além de um automatismo de repetição, é permeável à ação da fala (Lacan, 1985, pp. 173 e 175). Nela, o sujeito constrói alguma coisa que se manifesta em relação a alguém a quem se fala, sendo este fato distintivo da transferência em relação à repetição que constitui a própria existência do inconsciente (Lacan, 1985, p. 177).

É dentro desse "campo que, por sua natureza, se perde" (Lacan, 2008, p. 126) que o analista funciona como sustentáculo da ação da fala, fala esta que se mantém porque existe a transferência. Contudo, por mais que se interprete, há uma aporia, um limite irredutível, pois é da posição que lhe é dada pela transferência que o analista analisa, interpreta e intervém sobre a própria transferência. "Em suma, resta uma margem irredutível de sugestão, um elemento sempre suspeito" (Lacan, 1985, p. 175), que se cristaliza ao final de qualquer processo analítico. É nesse sentido que Giovannetti (2001) nos fala do estabelecimento de "um conluio inconsciente" que compromete a análise da transferência positiva e que pode prolongar a análise indefinidamente, o que, a meu ver, causa danos à estrutura identitária do analisando, podendo cristalizar nele elementos dogmáticos que irão se expressar por fundamentalismos teóricos e uma espécie de submissão ao mestre.

Freud, ao se referir a esse resto de sugestão da análise, associa sua potência ao efeito hipnótico, ou seja, a "uma formação de grupo composta por dois membros" (1921/1969) p. 145). Nesse contexto, isola da complicada textura do grupo um elemento que é o comportamento do indivíduo em relação ao líder. Segundo ele, a relação de amor que sustenta a fala do paciente se estabelece permeada por esse elemento, e se dirige a um outro que ocupa o lugar do líder - portanto, a quem dedica uma crença em seu saber em relação à verdade.

É seguindo esse percurso teórico que chegamos ao sério problema (talvez o mais sério deles, naquilo que tange às instituições psicanalíticas) da transferência positiva de caráter amoroso (Freud, 1912/1969). Aparentemente, ela seria o ponto de sustentação do paciente na análise, mas, ao observarmos mais de perto o fenômeno, percebemos que a transferência positiva será sempre o resto de sugestão incontornável e responsável por representações que se incorporam na estrutura identitária do analisado, gerando dogmatismos teóricos paralisantes e impeditivos para o novo.

Outra questão importante que introduz um paradoxo irredutível no manejo da transferência é o fato de a cultura e a linguagem serem fundadas por um ato primeiro, mítico, representado por um assassinato (Fédida, 1996, p. 15), o assassinato do pai, que estaria sempre no fundo de toda comunicação, sobretudo a transferencial - este ato parece perdido para sempre para a memória dos homens, restando em seu lugar uma rememoração impotente. A linguagem, elemento por excelência da análise, traz o traço deste assassinato, que permanece como "lugar da ausência" (Fédida, 1996, p. 21). Assim, a essência da transferência estaria fundamentada numa relação de reminiscência segundo uma anterioridade que "não pode ser objeto de qualquer rememoração, sendo sua origem seu ponto de fuga" (Fédida, 1996, p. 21). É o silêncio do analista, sua neutralidade, ou seu lugar de in-significância, que sustentam esse sítio potencial para a transferência, no sentido daquilo pelo que se exprime o "essencial" (Pontalis, 1990, p. 78). A não resposta do analista à demanda não é simplesmente princípio técnico, mas qualifica a presença em recolhimento, que é a condição tópica da regressão, única necessária para que a fala possa apropriar-se do negativo de sua demanda, sendo "essa ausência em presença o suporte do figurável" (Pontalis, 1990, p. 23).

Neste campo movediço, pode-se imaginar que muito pouco é suficiente para que a situação deixe de ser analítica. Um excesso de manifesto leva o analista a "não ser mais o instaurador do sítio, tornando-se uma pessoa que responde" (Pontalis, 1990, p. 21), paralisando esse processo de "criação de uma classe especial de estruturas mentais" (Freud, 1905/1969d, p. 113) que é a transferência e, consequentemente, a possibilidade de cura.

Este lugar transferencial está encarnado numa presença que será presença de ninguém e que é um ponto de fuga irrepresentável na origem, e que, quando se dá a representar, admite apenas uma falsa memória. Este lugar está sempre no curso da análise, sendo a regra fundamental um esforço de nomeação, que só é possível através do "mito que se faz presente na linguagem pelo sopro de seu sonho" (Fédida, 1996, p. 22), estando sempre o assassinato do pai, que impõe o silêncio, no centro desse mito. O ato interpretativo deve, portanto, partir deste lugar de sonho, presente na escuta transferencial e que remete ao poético, àquilo que corajosamente procura falar do que não pode ser dito.

 

Comentários finais

Pudemos acompanhar, nas situações clínicas apresentadas, dois momentos do que poderíamos chamar de "cura psicanalítica", caso entendamos cura psicanalítica como rearticulações do passado em função da criação transferencial de novos fluxos associativos e de novas possibilidades de trânsito do afeto. Em outras palavras, Giovannetti define essa cura como a perda da cristalização dos precipitados identificatórios do analisando, o que permitiria "um trânsito de maior amplitude dentro de todo o espectro expressivo-sintomático, em oposição à repetição estéril e estereotipada" (2001, p. 467).

Seguindo este conceito de cura, não existiria uma cura analítica, mas inúmeros momentos de cura, como os apresentados no material clínico, que, na somatória final, reposicionam o sujeito frente a seu desejo, frente a sua história e frente ao mundo. Digo isso no sentido de que a problemática humana não tem uma solução, sendo que o que nos resta enquanto seres humanos é apenas a "possibilidade de encontrar rimas pobres ou ricas para ela" (Giovannetti, 2001, p. 464). Esses momentos de cura criam novas "rimas" para as questões do sujeito e essas passam a existir como se sempre tivessem existido (futuro do passado), ocupando o lugar das antigas memórias estereotipadas. Essas memórias, encarnadas na essência do sujeito, passam a ser presente, com demandas potencialmente abertas e dirigidas para o outro e para o mundo.

Acompanhamos como Juan e Paula, a partir do lugar transferencial sustentado pelo analista, puderam recriar figuras de suas histórias, que passaram a ser novas figuras do presente, estas com mobilidade e potencial criativo. O fundo de silêncio da fala permanece, irredutível, como ponto de fuga, mas as novas articulações permitem um trânsito com mais liberdade no mundo e entre os outros.

Acredito que esse modo de situar o material clínico está em consonância com aquilo que, partindo de Freud, autores consagrados foram percebendo sobre a estrutura dos sintomas, ou seja, que estes devem ser abordados como estruturas que organizam a transferência. Isto tem uma influência direta sobre a técnica analítica e sobre o lugar de onde deve partir a interpretação, ressituando o dispositivo psicanalítico e abrindo novos caminhos para o tratamento, afastando de vez a psicanálise do modelo médico e psicológico. Isto pressupõe que, no setting analítico, todo o modo de percepção do paciente está estruturado sobre o centro prevalente da transferência, o que não quer dizer que todo movimento deste é transferencial, mas que a força de atração da transferência estrutura, de algum modo, seu discurso.

No final de uma análise, idealmente, o paciente recoloca suas figuras históricas dentro de si. Estas passam a ter sido aquilo que agora são, no sentido que Fabio Herrmann (2008) define o tempo da análise como o futuro do pretérito. Ao mesmo tempo, o analista deixa de ser, rompe-se o envolvimento transferencial, passando a ser um objeto comum, restando apenas aquilo que poderíamos chamar de "o incontornável da sugestão" decorrente da transferência positiva. Mas isso será assunto para outra investigação. É nesse sentido metapsicológico que Winnicott define o final esperado de uma análise como aquele em que "os pacientes nos esqueçam" (1969/1975, p. 123) e sigam seu próprio caminho com aquilo que adquiriram durante o processo, tornando possível que o quantum de afeto que sustentava o sintoma esteja disponível para a vida.

 

Nota

1 Essa é a tradução proposta por Paulo César Lima de Souza para a palavra alemã agieren, tantas vezes utilizada por Freud e traduzida por "atuar", "atuação" na Edição standard brasileira. Acredito que "dar corpo a" seja uma melhor tradução, pois retira a ideia de ação objetiva contida no termo "atuar", além de proteger de uma certa conotação pejorativa que ganhou essa palavra entre os psicanalistas, ao menos aqui no Brasil.

 

Referências

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Correspondência:
Ronis Magdaleno Junior
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Recebido em 2.6.2014
Aceito em 13.4.2015

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