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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016
EM PAUTA
A Psychologia de Freud1,2
Franco da Rocha (in memoriam)
Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cofundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e também seu primeiro presidente, em 1927
A psychologia de Freud era, nos seus primeiros ensaios, mais uma doutrina medica das nevroses do que um systema de especulação psychologica. Estudando as nevroses, porêm, era fatal a extensão da doutrina a todas as espheras da arte - poesia, pintura, religião, musica etc., e aos poucos, tornou-se ella um systema geral de psychologia, isto é, abrangeu todas as manifestações da actividade mental humana.
A nevrose, o sonho, a arte e (quem diria?...) o crime, têm entre si analogias flagrantes na concepção psychologica do Prof Freud. O sonho é equivalente á nevrose; ora, si o sonho é a realização disfarçada de desejos recalcados, também a nevrose é uma resultante de desejos e aspirações não satisfeitos.
A arte é, por sua vez, uma derivação pela qual se alivia o artista da carga affectiva que o levaria a nevrose, ou o crime, ao suicidio, si não se realizasse tal descarga. Um exemplo é facil de se encontrar para illustrar o facto. H. Heine, num de seus livros sobre os pintores francezes, lá diz: F... quiz fazer numa obra enorme, tão grande que não lhe foi possivel realiza-la; dahi o suicidio de F... A intuição do grande artista, que foi Heine, está de perfeito accôrdo com a doutrina de Freud.
Onde estão ocultos esses desejos, aspirações etc.?
Acham-se escondidos no inconsciente, que é uma esfera importantissima da vida psychica.
Para a escóla freudeana o inconsciente não é bem o que em geral se comprehende por essa expressão. Freud se refere sempre ao inconsciente activo, dynamico, que exerce influencia decisiva sobre a vida consciente. Quando escrevi, ha tempos, sobre este assumpto dei como exemplo palpavel as nossas arvores do campo, que as contínuas queimadas obrigam a se desenvolverem debaixo da terra só se enxergam os ramusculos que surgem, já com a flor e fruto, no intervalo de uma queimada á outra. A arvore está no subsólo: ninguem a vê.
Não é o inconsciente a massa amorpha e anodyna de todos os factos que impressionaram o individuo e depois se perderam no esquecimento para não mais atingir á consciencia. Não. É o inconsciente dynamico, activo, que encerra um mundo de factos que impressionaram os centros nervosos e se acham retirados da consciencia, quer passivamente, quer propositalmente, alguns dos quaes podem voltar á consciencia, outros, porém nunca voltam; mas em por isso deixam de exercer sua acção, em geral perturbadora. Esclarecido por um exemplo o que estamos dizendo, torna-se a comprehensão mais facil. Um individuo hypnotizado recebe uma ordem para ser por elle cumprida na vigilia, no dia seguinte. Acordado que seja, de nada mais se lembra, mas cumpre a ordem pratíca o acto que foi suggerido, sem saber explica-lo ou procurando uma explicação inteiramente falsa por necessidade de explicar, porque o espirito exige a explicação, quer seja falsa ou não. A causa do acto praticado estava no inconsciente, mas no incosciente dynamico.
Todos os impulsos, tendencias, desejos, aspirações, ideas etc. que se oppõem á adaptação do individuo ao meio social, são recalcados para o inconsciente; do sucesso, ou insucesso do recalcamento depende o estado normal, ou respectivamente anormal, do individuo. Muitas vezes o recalcamento parece ter sido bem succedido, mas a impulsão, phantasia, desejos desregrados etc. ficam no inconsciente a espreita de um momento oportuno para agir e penetrar na esphera da consciencia. Esse surgimento na cosnciencia se faz quase sempre de modo disfarçado, por um symbolismo curioso que exige interpretação mui criteriosa.
Entre o inconsciente e consciente Freud reconhece a existencia de uma função depuradora, vigilante, que elle chamou censura, que não deixa surgir na esphera consciente sinão as manifestações admitidas pela moral vigente. Tudo que a moral repelle e que estorva a adaptação do individuo ao meio social é recalcado para o inconsciente; d’ahi só sai nos devaneios, nos sonhos da vigilia (dos poetas, por exemplo) ou durante o somno, porque nessas occasiões a censura cochila, repousa, mas não se descuida por completo, tanto que as manifestações só surgem disfarçadas, numa linguagem ou figuração symbolica, como já disse. A censura, quando se decuida durante o somno, não dá logar á desordem, porque a não ser nos casos pathologicos bem evidentes, as portas entre a ideação e a motilidade estão fechadas.
Não devemos esquecer que Freud emprega a palavra censura e não censorcomo o fazem os americanos e, entre nós, os que beberam algum conhecimento em livros americanos A censura é uma funcção; o censor traz uma ideia de orgão ou de centro cerebral especializado ou destinado a essa funcção, o que seria um erro de perigosas consequencias. A censura é funcção psychica, que se desenvolve com a civilização, pela necessidade de adaptação do individuo ou meio social.
Da necessidade de recalcar os instinctos no evolver da educação e adaptação ao meio social, resulta o acumulo de complexus no inconsciente, complexus perturbadores do psychismo, quando o recalcamento não é perfeitamente bem succedido.
Os complexus, da linguagem do Prof. Bleuler, que se generalizou depois na psychologia de Freud, são forças psychicas, em regra inconscientes, que dominam e dirigem a mór parte de nossa ideação conciente. O complexo é formado por elementos representativos, elementos motores e uma variavel carga de energia affectiva. As ideias tendenciaes, aspirações, instinctos etc., não são elementos psychicos simples, mas até complicados; reunem-se em grupos, em constelações de ideias, congregadas frequentemente numa trama de associações que se realizam no inconsciente e ligadas entre si pela mesma força affectiva.
Os desejos, tendenciaes etc. com sua respectiva carga affectiva, que são recalcados para o inconsciente, podem ser comparados ás doenças que se não revelam exteriormente e a que o povo chama doença recolhida. Este simile tem sido usado pela escóla de Freud, onde se fala frequentemente da emoção recolhida.
O Visconde de Taunay nas suas narrativas de guerra, relata um facto que se déra com elle, quase ao terminar da guerra do Paraguay.
Depois de uma parada em certo logar, seguiu com os companheiros, officiaes, para outro ponto; já bem longe da parada, onde tinha estado, viu que se esquecêra do talin e da espada, que ficaram pendurados numa arvore. Apezar do aviso em contratio dos companheiros, voltou sózinho a buscar esses objectos Lá chegando, viu dois soldados paraguayos juntos desses objectos fez-se de valente (diz elle proprio) e disse a um delles: camarada, dê-me esses objectos, que ahi deixei há pouco.
Um delles trouxe-os e saudo-o cortezmente. Virou o cavallo nos pés e disse de si para si: estou perdido, atiram-me pelas costas, não escapo; mas não mostrarei medo, puz o cavallo a passo, normal, sem olhar para traz, esperando a morte. Recalcou a emoção terrivel do momento.
Nada houve. A'noite, porém, teve um sonho formidável, que fez sacudir a cama como num terremoto; accordou banhado em suor, extenuado. Eis ahi a emoção recolhida a se libertar no sonho.
O sonho tem, portanto, uma funcção cathartica, depuradora, é uma salvaguarda da saude, uma valvula de segurança. E, sinão, vejamos o que disse Maury, homem que escreveu bastante sobre os sonhos: "Eu tenho, diz elle, meus defeitos e inclinações viciosas; na vigilia luto contra elles e comsigo não sucumbir; mas no sonho sucumbo sempre, submetto-me ás impulsões sem temor nem remorsos".
Os instinctos recalcados lutam pela sua realização com tanta força dynamogenica, que a censura se vê em serios apuros para os conter.
De todos os instinctos o mais perturbador da adaptaçãp dp individuo ao meio social, é o que diz respeito á conservação da especie.
O instincto sexual occupa no inconsciente uma vasta área; sua trama associativa se estende a quase todos os complexus, mesmo aos que, apparentemente, não são de origem sexual.
Não é para admirar pois ao lado do instincto de conservação individual está o da conservação da especie, tão bom como tão bom; a bem da verdade digamos que não raro este - o da conservação da especie - sobrepuja áquelle. Não há quem não saiba que muitas vezes a satisfação sexual se realiza á custa da vida do individuo, do macho. Taes são os casos das abelhas, do escorpião, das aranhas, da Manta religiosa etc. Estamos falando em biologia geral.
No homem o instincto sexual é o maior perturbador da vida em sociedade; é o mais impertinente, o que exige os mais difficeis recalcamentos. Dahi vêm as nevroses, em sua quase totalidade. A escola de Freud não faz essa restrição do quase: tudo é de origem sexual. O homem civilisado tem muito mais tempo para dar ao instincto sexual do que os animaes e o homem selvagem, que têm de trabalhar para o outro instincto - para alimentar-se. Entre os civilisados há mesmo classes sociaes que quase só se ocupam dos gozos sexuaes porque a alimentação lhes é facil de obter. Assim se vê que o instincto sexual, nesse caso, descamba para o prazer, como puro prazer de todos os dias, a exigir sensações novas; ahi está a porta aberta para o ... deboche e a devassidão.
Dada a enorme influencia do instincto sexual em toda a actividade psychica é possível seja essa a verdade isto é, a opinião dos pansexualistas, embora repugne ao espirito, em geral.
A libido, palavra introduzida na linguagem freudiana, e que vale tanto como vontade de poder, impulso vital, força criadora etc.; já dá a entender a importancia que o instincto sexual representa na doutrina. O termo libido não se restringe como póde parecer, á funccção de certos orgãos especializados para a reproduccção da especie. Os dois instinctos, de conservação da epsecie e o de nutrição se confundem no inicio da vida. Depois separam-se, mas avançam parallelamente na evolução ontongenetica. As manifestações organicas dos dois instinctos se podem chamar, por amor da concisão: fome e erotismo.
Erotismo não é o estado organico especializado e restricto a certos orgãos, em certos momentos; é um estado mais geral, um sentimento de tensão e um sentimento de prurido provenientes da excitação dos centros nervosos, projectados sobre a zona erógena. Tanto é certo isso, que se fala de erotismo em relação ás crianças que nem siquer têm ainda os orgãos especializados em estado de funccionar. O instincto de mamar para nutrir-se e chupar o dedo ou outro objecto por satisfação erotica se confundem perfeitamente no inicio da vida, como disse, ha pouco.
As crianças praticam assim a masturbação inconsciente e satisfazem o sentimento de tensão, satisfação essa que mais tarde vae ser recalcada no decorrer da educação.
Deste facto denunciado por Freud, levantou-se uma celeuma, uma gritaria contra quem chegou a dizer uma horrenda barbaridade como essa. E ninguem examinava o facto, si era ou não verdadeiro, porque era de apparencia inadimissivel, intoleravel para nossa moral actual.
A deficiencia da terminologia conveniente faz com que se usem termos significativos de factos analogos, mas não identicos aos que são contidos nesses termos. Seria talvez de bom conselho usar esses termos a particula grega-para-que diria, provisoriamente, a cousa, sem baralhamento de idéas e suas maleficas consequencias. Assim diriamos, em falta de melhor, paraincesto, paraerotismo.
A tragedia de Sophokles, Oedipus, rei de Thebas, forneceu a Freud a explicação de certos factos interessantes, de alta importancia para a psychoanalyse.
O destino fez com que, nos meninos os primeiros impulsos sexuaes se dirigissem á própria mãe e o primeiro odio violento contra o proprio pae. A união de Oedipus e Jocasta nada mais é do que a realização de um desejo da infancia. Os recalcamentos que se dão no correr da evolução lançam essas idéas e impulsos para o inconsciente, para o esquecimento perpetuo, de onde só saem no sonho e quando o sujeito se torna psycho-nevrotico. A não ser neste ultimo caso, todos conseguem retirar da propria mãe os impulsos sexuaes e do proprio pae o ciume e odio violento. Um typo interessante de amor de homem, no qual representa importante papel o complexus de Oedipus, foi exposto por Freud, que teve occasiões propicias de observa-lo. O intenso agarramento do filho á sua propria mãe encontra o obstaculo do incesto, facto que o leva a procurar uma noiva com todos os atributos da querida mãe, noiva que é adorada por isso como objecto ideal de seu amor; mas a satisfação real do impulso sexual elle a pratica com outra mulher e de baixa condição, de baixo estofo, com a qual sua phantasia lhe dá o prazer de estar prejudicando a um outro (talvez o proprio pae), porque este lhe dá frequentes occasiões de odio pelos castigos e outras repressões que elle sente dolorosamente. Não esquecer de que nos occupamos de nevrophatas, de homens tarados. Com a noiva, que encerra seu ideal de amor, elle nem pensa no acto brutal do congresso sexual.
Com ella poderá elle soffrer até a impotencia psychica, facto frequente e (quem sabe?) quantas vezes não terá sido a causa de resentimento, brigas, separações e outras desordens. O medico menos avisado lhe dará remedios em vão, porque a cura só poderá ser psychica. O amor muito intenso é paralysante, dizem os entendidos no assumpto. Esse typo, exposto por Freud, foi magistralmente estudado por Vargas Vila na novella - O Cysne Branco. É completo e perfeito esse estudo. Com a outra mulher de baixo estofo, que lhe escalda o sangue, elle não tem impotencia alguma; seu psychismo nada tem a ver com isso; não o paralysa. De mim para mim, eu entendo que quase todas, sinão todas as dissenções domesticas tem sua origem, de qualquer forma, na esphera do instincto sexual.
A tendencia sexual para com pessoas da convivencia da criança, que della cuidam, lavam, vestem etc., existe menos inconsciente do que em relaçao á propria mãe. O recalcamento se realiza em tempos opportuno (salvo nos ennfermos psychicos). O tormento de muitos nevropsychopathas é justamente o insucesso do recalcamento e o resurgimento importuno desse complexus no campo da consciencia.
Os conflictos no interior do espirito humano dão em resultado a nevrose, que se manifesta, como no sonho, symbolicamente, por expressões que exigem interpretação trabalhosa e mesmo perigosa, porque a phantasia tende sempre a intrometter-se nas interpretações.
Os objectos de uso commum têm significação convencional para as idéias e impulsos psychosexuaes. Todo mundo sabe o que quer dizer "boceta" na conversação de certa gente; assim - pau, pomba e outras muitas palavras da giria sexual. O instincto sexual é o mais escandaloso; a sociedade exige seja recalcado, mas para a enganar a censura e poder se falar de orgãos sexuaes ou sua funcções, recorre-se ao symbolo. Ninguem pode negar que as cousas assim se passam; não é invenção.
Os gatunos não têm também sua giria? Não há nisso novidade. Não quero entrar em minudencias a esse respeito. Baste-nos lembrar que Stekel tem um grosso volume só sobre isso - Die Sprach des Traumes, i. é, a Linguagem do Sonho.
No homem normal, mesmo que o sonho de Oedipus lhe appareça, é logo banido e recalcado como futilidade. Nos nevropathas, não; é coisa séria e motivo de um martirio, em que elle se julga um infame, desgraçado, infeliz, e por ahi vai, a martelar nesse assumpto, que o não deixa em paz.
Um complexos qualquer passa do inconsciente para a consciência atravez de associações diversas, que só a psychoanalyse pode rastejar, partindo do consciente até chegar no canto escuro em que se acha o verdadeiro motivo da perturbação nevrotica. Assim veremos num exemplo simples, que fui buscar num livro velho, justamente para mostrar que o caso não é de adepto da psychoanalyse (que não existia como tal no tempo desse livro). A observação é de Pitres e Regis(ambos já morreram velhos) no livro das Obsessões e Impulsões. Eil-o:
Uma moça tinha uma phobia terrível, uma obsessão que se tornou intolerável;i-solou-se em sua casa, não sahia á rua de mode de incontinência de urinas.
Não apparecia ás visitas, sem tentar urinar três ou quatro vezes, de medo que tal urgência a envergonhasse deante dellas. Os médicos, aos poucos, de indagação em indagação, foram observando a transferência de uma ideia á outra, por associações diversas acompanhadas do sentimento de angustia que também se transferiu do primitivo trauma affectivo até a ideia actual-medo de ter vontade de urinar, fora de seus cômodos. Só a analyse minuciosa levou o medico a descobrir a cadeia ou a trama associativa que se terminou pela phobia. Certa vez no theatro, veiu ao seu camarote um homem, de quem Ella gostava e, a olhar para elle, teve um espasmo sexual, seguido de poluição e vontade urgente de urinar, como soe acontecer as mulheres. Sashiu ás pressas do theatro para a casa e data dahi a phobia.
Ella não tinha medo de ter vontade de urinar na rua;tinha receio de se encontrar em idêntica situação do theatro, mas como isso é vergonhoso, fica recalcado no inconsciente e só apparece no campo da consciência a possível vontade de urinar, que não é facto immoral, embora vexante. Essa transferência se faz inconscientemente.
Eis ahi um caso simplíssimo, propositalmente escolhido para mostrar como as coisas se passam. Em regra as associações intermediarias são muito mais complicadas e dão grande trabalho ao psychoanalysta para as descobrir e por ahi chegar ao núcleo do complexus perturbador. O símile que encontrei para dar comprehensão material do facto foi este: quando estudei physica vi um apparelho composto de uma série de bolas de bilhar, penduradas, cada uma por um fio, a uma barra de ferro, ao lado umas das outras e bem em contacto, formando um cordão, todas independentes entre si, em numero de dez ou doze. Levantava-se a primeira bola e deixava-se cahir e bater na segunda; a ultima, e só esta, saltava do logar, como si a primeira tivesse batido nella; as intermediarias ficavam immoveis. E'um facto que apparece na consciência. A força que atravessou as bolas, sem se revelar, é representada pelo estado afectivo do complexus perturbador. Creio que a comparação é de Hamilton.
Visto tocarmos neste ponto é dizer já que a essência da psichoanalyse é justamente a caça do complexus atravez das associações múltiplas, processo de cura moroso, lento e exgotante. O doente faz uma confissão ao medico, quer pelo sonho que este interpreta, quer pelo devaneio, que é uma espécie de sonho accordado. No devaneio que é também uma como confissão (da religião catholica), o paciente põe seu espirito em vagabundagem, de preferência a contar sua doença, desde o inicio, ou a narrar seus sonhos, sem fazer paradas de reflexão;deve falar sem parar, dizendo em voz natural tudo o que lhe vier á tona no campo da consciência. A vantagem da descoberta do complexus perturbador é justamente se poder combater um agente que se conhece, combater um desconhecido é uma luta estéril, inútil.
Toda a energia biopsychica do individuo (a libido) concentrada no instincto sexual seria terrivelmente prejudicial, como se vê em alguns casos. Há porém, os derivativos da energia psychosexual que diminuem muito os males da concentração num esphera de actividade. Um dos derivativos importantes é a dança, outro é o flirt, e há outros ainda. E'por isso que já se disse que a dança e o flirt são realisações econômicas do isso, mas é preciso saber.
Os jogos, o athletismo, o esporte em geral, são derivações de energia e de grande utilidade no envolver da civilisação. Nos collegios, sobretudo, tae derivações tÊm importancia que dispensam encarecimento, tão evidente é a sua acção derivativa. Sou admirador dos esportes, em termos, desde que não caminhem para a degeneração, em brigas, competições a pau etc.
Os princípios geraes da psychologia de Freud, não se limitam á cura das nervoses, estendem-se a outros terrenos de actividade psychica. Os ditos espirituosos, que tanto divertem o público, têm sua explicação, na qual entra o inconsciente activo como elemento importante.
Os esquecimentos, os lapsos, as ratadas, que surgem na vida social, constituem o assumpto de uma obra de Freud, um bom volume.
Na pedagogia a psychoanalyse será chamada a prestar importantes serviços. Já existe um volume (que eu conheço) de O. Pfister, que se occupa em parte com este assumpto.
Passamos rapidamente sobre todos esses assumptos, para chegarmos depressa a um ponto importante da doutrina, que é a sublimação.
O individuo de systema nervosos desequilibrado, que não pode manter a descarga de sua energia psychosexual (a libido) dentro dos limites do que se chama normal, tem conforme as condições pessoaes - educação, fortuna, religião, inteligência etc. - diversas sahidas para essa energia. Pode ser poeta, pintor, artista em geral, nevrotico e até criminoso. A sublimação é outra sahida, mas não é dada a todos; bem limitada é a elite que caminha por essa sahida. A applicação ao estudo de astronomia, mathemáticas, estudos da natureza e obras piedosas, com renuncia absoluta de premio ou recompensa, pois praticar o bem na espectativa de que Deus pagará isso tudo noutra vida etc, não é sublimação, é negócio; poderá ser quando muito elevação ou qualquer outra coisa. Na sublimação a renuncia é condição essencial. E'muito difficil!
O nevrotico Rousseau recebeu, certa vez de uma mulher esta admoestação: deixa-te de mulheres e vai estudar mathematicas. Naturalmente elle, como homem anormal, não se satisfazia com o que é realidade na esphera da vida sexual. Era certamente daquelles para quem a realidade, nessas coisas, não passa de uma grande decepção. Lascia le donne e studia La matematica...
Estudar mathematicas é pois um bom modo de sublimação da libido.
As tendências, impulsos e impressões da infância são os que se gravam mais fundamente na alma humana; as repressões que lançam no inconsciente todas essas ideias, impressões e impulsos não conseguem annullar sua influencia na vida consciente. Sempre que, por doença em geral, a censura esmorece, ahi vem tudo á tona e as impulsões se realizam com estardalhaço. Não é preciso, como exemplo, mais do que os estados maníacos, em que o individuo fica nu deante de todo mundo, como as crianças e os nossos bugres, sem vexame algum, e tornam-se mais enérgicas esses impulsões exactamente nas mulheres, nas quaes os recalcamentos são mais exigentes, na vida normal.
É contra as impulsões inconscientes procedentes da infância que o homem mais tem que lutar.
Há muita gente que põe em duvida que impressões da infância e, mais ainda, da vida intrauterina, possam surgir sobre o homem adulto, no entanto estão promptinhos a falar em hereditariedade e a acreditar no apparecimento de traços da vida de antepassados longínquos.
A criança é uma criatura toda feita de instinctos, criatura primitiva toda cheia de desejos de vingança e crueldade. Na evolução ontogenetica a educação age fortemente contra todas as tendências anti-sociaes; criam-se então os poderes psychicos inhibidores da sexualidade - o pudor, o vexame, a repugnância, a aversão, representações etchicas e religiosas - poderes esses que recalcam as tendências e desejos eróticos para o esquecimento, de onde não possam lembrar ao individuo essas satisfações repugnantes. Quando se dá a fixação de uma faz phases da evolução sexua, observam-se então as perversões sexuaes, como sadismo, feticismo etc.
Falando, há pouco, sobre perversões sexuaes, lembrei-me de um bonito trablho do Dr. Leonidio Ribeiro, publicado nos Archivos da S. de Medicina Legal e Criminologia, trabalho esse digno de ser lido, por bem feitinho e no qual o autor aplicou as doutrinas de Freud. Taes casos de grande sadismo não são raros, infelizmente, como parece que o autor pensa. O culpado de não haver maior número de publicações a respeito sou eu mesmo; é um peccado que confesso, não escondo. Só no Hospital de Juquery me lembro de dois casos bem patentes: um delles deve estar na Penitenciaria; o outro, si não cometteram a imprudência de retiral-o di Juquery, ainda deve lá estar. (Não publiquei esses casos).
Ambos têm apparencia de perfeita normalidade, quando conversam. O primeiro degolou uma ou duas mulheres e foi preso quando tentava degolar a terceira. Só então se descobriu que fora autor das degolações anteriores, em outra cidade. O segundo matou uma menina, mocinha, em sessão espirita sob pretexto de retirar o diabo do corpo da mocinha (ordem que lhe data um santo, segundo elle dizia) estrangulou-a lentamente sob suas mãos possantes, assistindo com prazer naturalmente, agonia lenta da pobre victima. Comettia o assassínio com dupla perversidade, pois accusava a um santo, como seu mandante, santo que não podia protestar contra a calumnia.
- A sublimação é a aplicação da energia dynamica, desviada do objectivo sexual, em beneficio da cultura moral e intellectual do individuo.
A analyse de si próprio, digo autopsychoanalyse, é um processo de purificação antiquíssimo e excellente. O individuo que examina seus actos, sua conducta, com frequência, procurando corrigir seus defeitos chega á sublimação, isto é, á applicação de sua energia biopsychica em benefício de sua cultura moral, como disse acima.
A pratica da psychoanalyse tem analogias palpáveis com a confissão (da religião catholica), o que nos faz crer que toda a psychologia de Freud era conhecida dos grandes doutores da Igreja.
- A interpretação dos sonhos é um assumpto muito interessante e tem occu-pado homens de intelligencia altamente cultivada, como Santi de Santis.
Eu confesso que, desde a primeira vez que li o trabalho do Prof. Viennense, me senti empolgado pela doutrina, única a eu ver, que esplica o sonho e ao mesmo tempo as allucinações e illusões, como também as perversões sexuaes.
A interpretação dos sonhos deve ser assumpto magno das palestras sobre psychoanalyse. Só isso dará pabulo ás cogitações dos nossos consócios, embora com risco de algum de nós desvendar aos olhos dos outros seus segredos do inconsciente, do cofre forte onde está tudo que é bom e tudo que é mau da nossa vida. Quem poderá se gabar de não ter tido maldade? Esse vaso de pureza, si existe, deve até se mostrar, mesmo como objecto de grande admiração para nós outros, pobres mortaes, cheios de peccados e cada um... cabeludo de metter medo.
Há de haver algum que sonhe com o vôo de aeroplanos e com o seu próprio vôo. Diz Steckel que é esse o sonho mais commum dos poetas. Na interpretação dos sonhos o grande perigo é a entrada da phantasia do analysta.
Freud tinha tanto medo de ser tido por embusteiro ou até por feiticeiro, quando começou a derramar sua doutrina do sonho, que nas cinco conferencias, na America do Norte, nem tratou desse assumpto. Nós, aqui nas nossas reuniões, podemos nos abrir francamente; não há esse perigo.
A Psychoanalyse, applicada á psychiatria por homens do valor de Bleuler veiu trazer a esta parte da medicina esclarecimentos importantíssimos.
Que é o conteúdo dos delírios? Como se pode explicar esse mundo de ideação que em geral se costuma chamar "asneiras de louco"? A psychologia da escola freudeana dá pelo menos, explicação que se comprehende, que a lógica não repelle.
No mundo autistico (expressão criada por Bleuler), que o paciente cria para si, surgem os complexus que jaziam no inconsciente e formam o que os pstchiatras sempre chamaram "systema delirante". Os instinctos mais exigentes entram em acção mais livremente e dão logar ás criações phantasiosas que compensam o paciente das desilusões da dura realidade. O individuo separa-se do mundo real que o rodeia e vive para si;é nisso que consiste o autismo. Já A. Comte falava nisso. Facto semelhante nós vemos nos poetas: criam mulheres de olhos azues, de tez mimosa, encantadoras; beijam-nas cem vezes, abraçam-nas, fazem tudo que querem. É o caso da Dulcinéa de D. Queixote, exactamente. Em trabalho que publiquei, ha tempos, comparei o facto de que ora tratamos aos nadadores, sendo o mar a phantasia. Os poetas, nadadores, robustos, voltam á terra, não saem da realidade por muito tempo;os frágeis avançam pelo mar a dentro e... não podem voltar mais, lá ficam perdidos. Os primeiros não perdem a orientação;o mais que lhes acontece é serem eternos descontentes da vida - os nevroticos; a realidade lhes nega o que elles desejam.
Tive um amigo que comprava bilhetes das grandes loterias e, emquanto ella não corria, vivia elle de seus milhões, até o dia da desilusão. Fazia casas, distribuía fortunas, beneficiava meio mundo e andava mais alegre durante esse tempo. Mas esse não deixava a terra; um pé no mar da phantasia, outro aqui no meio de nós, pobres infelizes.
Os desejos de riqueza, a vontade de poder, de domínio, de força, existem mais ou menos em toda criatura humana; por outro lado, o sentimento de medo também é geral na humanidade. Ahi estão os alicerces dos dois delírios mais communs - o de grandeza e o de perseguição. O instincto sexual, com seu enorme poder sobre o psychismo humano, explico o apparecimento de delírios de conteúdo sexual, ainda que seja somente por um symbolismo especial, que os médicos habituados á observação reconhecem de prompto.
Há pouco foi publicado um trabalho interessante do Dr. Osorio Cesar sobre esse assumpto de que estou falando. É de esperar que de hoje em deante os psychiatras procurem orientar suas observações baseados nos estudos de psychoanalyse.
Limitemos, por hoje, aqui a nossa primeira palestra.
Notas
1 Conferência pronunciada na Sociedade Brasileira de Psychanalyse pelo Prof. Franco da Rocha. Trabalho original publicado em 1928: Revista Brasileira de Psicanálise, 1(1),7-23.
2 A grafia do texto foi reproduzida conforme publicação original em vigor na época da publicação.