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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

EM PAUTA

 

Intuição: lacuna teórica na psicanálise1

 

Intuition: a theoretical lack in psychoanalysis

 

Intuición: laguna teórica en el psicoanálisis

 

 

Amina Maggi Piccini (in memoriam)

Formada em Filosofia, doutora em Psicologia, docente da Universidade de São Paulo, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 


RESUMO

Na psicanálise, existe uma lacuna relativa ao conceito de intuição. Freud mencionou o termo apenas três vezes, sem ater-se a ele, sem defini-lo, demonstrando pouco caso. No trabalho de seus discípulos, uma idêntica indiferença pode ser encontrada. Por quê? Será porque o dissidente Jung o valorizou? Ou por medo de que a psicanálise poderia vir a ser considerada não científica, caso o uso da intuição fosse reconhecido no trabalho clínico? Depois de tantas infrutíferas pesquisas bibliográficas, encontramos em Bion um interesse claro pela função intuitiva, considerando-a um artifício fundamental do analista. A alusão à intuição, sem a menção do termo, é frequente nos trabalhos psicanalíticos posteriores a Freud. Os que o desvalorizam usam-no; quem o usa não o define; quem o valoriza o usa entre aspas. A pouca clareza relativa ao termo na psicanálise favorece a anonimidade de sua função. Este artigo estabelece relações entre alguns dos poucos autores que se referiram especificamente à intuição (Jung, Bion, Grinberg, Medina, Trinca etc.), na tentativa de construir uma definição para esta função. Contudo, quando depois disto se disser que algo é intuição, ainda assim alguém poderá afirmar ser outro o processo - o que evidencia a lacuna que permite que se atribua o mesmo termo para outros princípios teóricos e definições conceituais. Se não se puder chegar a uma definição amplamente aceita, torna-se necessário observar como os autores aqui mencionados se utilizam da intuição.

Palavras-chave: intuição; transferência; empatia.


ABSTRACT

In psychoanalysis, there is a relative lack in the concept of intuition. Freud mentioned that term only three times, without sticking to it, defining it, showing any interest in it. In Freud’s pupils’ work, the same indifference may be found. Why? Would it be because Jung, the dissident pupil, gave it value? Or (would it be) for fear that psychoanalysis might be considered not scientific, if the use of intuition was recognized in clinical practice? After several unsuccessful bibliographic searches, we finally found a clear interest in intuitive function in Bion’s work, where it is considered a psychoanalyst’s fundamental tool. In post-Freudian psychoanalytic works, we can often find allusions to intuition without mentioning the word. Those who undervalue the term use it; those who use it do not define it; those who value it use it in quotes. The unclear idea of intuition in psychoanalysis is propitious to the anonymous feature of its function. In order to attempt to define intuition, this paper establishes a connection among some of the few authors who specifically referred to this function (Jung, Bion, Grinberg, Medina, Trinca etc.). However, even if we have defined it, when it will be said something is intuition, someone may claim it is another process - which shows a lack that lets the same term be used to refer to other theoretical principles and conceptual definitions. If a fully accepted definition cannot be achieved, it is necessary to observe how the authors herein mentioned use intuition.

Keywords: intuition; transference; empathy.


RESUMEN

En el psicoanálisis existe una laguna relacionada con el concepto de intuición. Freud mencionó el término solo tres veces, sin apegarse a él, sin definirlo, demostrando poco interés. En el trabajo de sus discípulos, se encuentra una indiferencia idéntica. ¿Por qué? ¿Será porque el disidente Jung lo valorizó? ¿O por miedo a que el psicoanálisis pudiera ser considerado como no científico, en caso de que la intuición fuera reconocida en el trabajo clínico? Después de tantas búsquedas bibliográficas infructíferas, encontramos en Bion un claro interés por la función intuitiva, considerándola un artificio fundamental del analista. La alusión a la intuición, sin mencionar el término, es algo frecuente en los trabajos psicoanalíticos posteriores a Freud. Los que lo desvalorizan lo usan; quien lo usa no lo define; quien lo valoriza lo usa entre comillas. La poca claridad relacionada al término en el psicoanálisis favorece el anonimato de su función. Este artículo establece relaciones entre algunos de los pocos autores que se refirieron específicamente a la intuición (Jung, Bion, Grinberg, Medina, Trinca etc.), en un intento de construir una definición para esta función. Sin embargo, cuando después de esto se diga que algo es intuición, todavía alguien podrá afirmar que es otro proceso - lo que pone en evidencia la laguna que permite que se atribuya el mismo término para otros principios teóricos y definiciones conceptuales. Si no es posible llegar a una definición aceptada ampliamente, se hace necesario observar cómo los autores aquí mencionados utilizan la intuición.

Palabras clave: intuición; transferencia; empatía.


 

 

Na monumental obra de Sigmund Freud, o termo intuição é citado somente três vezes, precisamente na 35ª das Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,de 1933. Sob o título "A questão de uma Weltanschauung", ele refere-se à intuição sem defini-la, sem se deter no tema, com um certo desprezo. Ali, ao tentar responder se a psicanálise conduz a uma determinada Weltanschauung, diz que, na qualidade de uma ciência especializada de psicologia do inconsciente, ela é praticamente incapaz de construir, por si mesma, uma visão do universo, tendo que aceitar a da ciência. Afirma não haver outras fontes de conhecimento do universo além da elaboração intelectual de observações cuidadosamente escolhidas e

que não existe nenhuma forma de conhecimento derivada da revelação, da intuição ou da adivinhação. [...] o intelecto e a mente são objetos de pesquisa científica exatamente da mesma forma como o são as coisas não humanas. A psicanálise tem um direito especial de falar de uma Weltanschauung científica nesse ponto [...]. Sua contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área mental. [...] A intuição e a adivinhação [...] podem ser tidas na conta de ilusões, de realização de impulsos plenos de desejos. [...] Isto absolutamente não significa que se deva repelir com desprezo esses desejos, ou subestimar seu valor para a vida humana. Estamos em condições de destacar as realizações que esses desejos criaram para si mesmos, nos produtos da arte e nos sistemas de religião e de filosofia; porém, não podemos desprezar o fato de que seria ilícito e muito impróprio permitir fossem essas exigências transferidas para a esfera do conhecimento. [...] A filosofia não se opõe à ciência [...]. Perde o rumo com seu método de superestimar o valor epistemológico de nossas operações lógicas e ao aceitar outras fontes de conhecimento, como a intuição. (Freud, 1933[1932]/1976b, pp. 194-196)

Se consultarmos o Vocabulaire de la psychanalyse, de J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1967), tão completo em outras definições, notaremos uma lacuna: não consta o verbete intuição, que também não será incluído no Dicionário crítico de psicanálise, de Charles Rycroft (1975).

Ernest Jones (1953/1958), tão preciso na explicação do desenvolvimento da teoria freudiana, nada acrescenta que nos permita entender melhor a posição de Freud a respeito da intuição e por que ficara tão superficial ao se referir a ela.

Nos quatro volumes organizados por Humberto Nagera (1981), com prefácio de Anna Freud, são tratados seriamente conceitos psicanalíticos básicos, mas ali também se silencia sobre a função intuitiva.

Será só um descaso de Freud e destes autores tão próximos ao pensamento dele? Não, porque se percorrermos as obras de outros discípulos perceberemos que, embora tenham desenvolvido muitos conceitos do mestre, deixaram bastante esquecida a função intuitiva, quase nunca se referindo especificamente a ela.

E atualmente: em que pé estamos a respeito desta função?

Percorrendo o índex da Chicago psychoanalytic literature, verificamos que, de 1974 a 1981, o número de trabalhos sobre intuição é desproporcionalmente menor se comparado com o de outros temas. Escolhendo alguns itens:

■ sobre transferência: 925

■ sobre contratransferência: 442

■ sobre empatia: 244

■ sobre intuição: 16

Se quisermos, após estes dados, consultar as citadas dezesseis obras, veremos que o número delas baixará consideravelmente: algumas não foram mais reeditadas ou não se encontram; outras trazem novamente no título empatia ou contratransferência.

Notamos também, mais uma vez, como o uso de termos e de conceitos é por demais livre na literatura psicanalítica. A mesma palavra pode adquirir diferentes sentidos, às vezes até opostos, conforme quem escreve ou comunica algo numa reunião científica. Um exemplo poderia ser o conceito de contratransferência, outro o de empatia. Tratando-se de intuição, tudo é ainda mais vago pelo desinteresse quase geral sobre este assunto. Nem poderiamos, como quando se trata, por exemplo, de empatia ou de contratransferência, perceber mais facilmente a concordância ou a discordância entre os autores. A nebulosidade do termo intuição - como de outros que, em algumas ocasiões, se associam livremente a ele nas frases de quem comunica - leva à perda de delimitação entre conceitos. Como se fossem sinônimos, tornam-se, às vezes, mutuamente intercambiáveis, sem que sejam suficientemente respeitadas as possíveis diferenças ou semelhanças, sem uma nítida demarcação entre empatia, função receptiva, insight, ressonância, fantasia compartilhada, contratransferência, vivência subjetiva, sintonia, identificação, intuição etc.

Além disto, sendo que em nossa experiência clínica nunca trabalhamos com uma função em "estado puro", dissociada das restantes, mas com situações complexas, ao descrever um exemplo de um determinado fenômeno, poderiamos facilmente encontrar alguém que dissesse tratar-se de outro, porque também este outro está presente.

Para não incorrer nestas falhas, percebemos ser necessário definir o que estávamos querendo estudar. Porém, visto que continuávamos sem uma clara delimitação do conceito de intuição, após ter lido os autores especialistas em psicanálise, derivamos nossa procura para outras áreas. Foi então que encontramos várias definições de intuição, desde a da Encyclopaedia Britannica("Intuition is the power of obtaining knowledge directly without recourse to inference or to reasoning" [1963, p. 542]), passando pela do Vocabulaire de la psychologie, de Pieron ("Jugement syncrétique qui n’est précédé d’aucune élaboration logique" [1968, p. 227]), até as do campo da filosofia, em que vários autores, de diferentes linhas e sem evidentemente chegar a idênticas considerações, se dedicaram a ela.

Apesar de nosso interesse na filosofia, tínhamos, desta vez, uma particular resistência em buscar fora da psicanálise o conceito de intuição que não encontrávamos nesta. Percebíamos o risco de transformar em meditações solitárias, sobre comparações racionais de textos, o que só pode ter sentido, para nós psicanalistas, quando não perdemos o contato com a situação básica da qual brota a intuição que nos interessa, que são as experiências compartilhadas entre duas pessoas na situação única de análise. Além disto, suspeitávamos não encontrar facilmente na filosofia uma definição que incluísse fatores inconscientes, sem os quais já não seria mais a mesma intuição da qual pretendíamos falar. Pois, pelas experiências com nossos pacientes e pelas leituras feitas, tínhamos certeza de haver nela a manifestação clara de processos primários (condensação, dramatização, representações frequentemente "visuais", como nos sonhos etc.) e de significados latentes que deixariam estudiosos de outras áreas, mesmo se eminentes nelas, sem os recursos que, independentemente de suas contribuições, nós já possuíamos. Veio à nossa mente o que Freud (1900/1976a) indicou: se ele tivesse se baseado no já dito pela filosofia, nunca teria chegado a decifrar os sonhos nem, a partir deles, a construir sua teoria da personalidade, que inclui, necessariamente, as qualidades do inconsciente e os processos primários.

Assim, enquanto tentávamos realizar breves escapadas, sempre enriquecedoras, para outros campos do saber, percebíamos que, aos poucos, nosso interesse ia mudando de rumo: já não estávamos mais tão motivados a encontrar a "tal" definição de intuição, mas em deduzir, comparativamente, a lacuna deste conceito dentro da psicanálise. Apontar este descaso já justificaria nosso trabalho, mesmo se, no fim dele, nós não chegássemos a obter nenhuma incontestável definição de intuição. Por que camuflar com recursos emprestados, vindos de outras fontes, uma falha quando já era importante denunciá-la?

Parecia-nos que não se tratava de um simples descuido, mas de algo mais, quase uma "fobia" em usar o termo intuição (dizemos "usar o termo" porque, sem nomeá-la ou dando-lhe outro nome, muitos autores se referiam a ela em suas descrições e em seus casos clínicos). Começamos a suspeitar: teria sido por uma certa "alergia" em relação a uma função psíquica que tanto interessara ao dissidente Jung, que acabou levando ao ostracismo (ainda que inconscientemente) não só o "herege", mas também o que o fascinara? Lembramos que, quando Freud escreveu, em 1932, aquelas poucas palavras sobre intuição, o pensamento independente de Jung já se tornara conhecido, inclusive pela sua obra Tipos psicológicos, de 1920 (1981). Nesta, Jung concluíra que as pessoas se diferenciam pelas funções psíquicas, que seriam: pensamento, sentimento, percepção sensorial e intuição. Cada pessoa teria uma destas mais desenvolvida e as outras mais primitivas, especialmente a oposta, que, no caso da intuição, seria a percepção sensorial determinada pelo objeto concreto.

Na obra deste dissidente, encontramos algo um tanto raro em nossas publicações: um grande cuidado em diferenciar conceitos, dedicando mais de oitenta páginas a definições.

Talvez ao leitor pareça supérfluo acrescentar [...] um capítulo especial sobre definições. Mas sei, por experiência, que todas as precauções são poucas [...] no que diz respeito a conceitos e expressões, visto que, de fato, observam-se no âmbito da psicologia as maiores variações de conceitos, dando origem às mais pertinazes e errôneas interpretações. (Jung, 1920/1981, p. 471)

Reproduziremos aqui uma parte somente da definição e da descrição junguiana de intuição, por ser ela muito extensa:

Intuição [...] corresponde [...] a uma função básica da psicologia [...], que se ocupa de transmitir percepções através do inconsciente [...]. Na intuição, qualquer conteúdo nos é oferecido como um todo coeso, sem que sejamos capazes de dizer ou averiguar, de imediato, como teria chegado a formarle [...]. Seus conteúdos possuem o caráter do que está dado [...], daí resulta o caráter de segurança e de certeza do conhecimento intuitivo, o que levou Spinoza (tal como Bergson) a considerar a scientia intuitivacomo a forma suprema do conhecimento [...]. A intuição é [...] um fenômeno característico da psicologia infantil e primitiva [...], é uma função irracional2 conquanto seja possível decompô-la, ulteriormente, em seus múltiplos componentes, levando assim a sua constituição a uma concordância com as leis racionais. (pp. 529-530)

A intuição da disposição extrovertida,como função de percepção inconsciente, orienta-se para os objetos exteriores. Sendo a intuição, sobretudo, um processo inconsciente, é muito difícil definir conscientemente sua essência [...]; está representada por certa atitude de expectativa [...]. Não constitui apenas um processo de reação [...] mas também uma actio que apreende e configura o objeto [...], quando não, um processo ativo e criador que tanto dá como retira do objeto. A intuição, em primeiro lugar, apenas fornece a imagem ou vidência de referências e relações que seria impossível obter através de outras funções ou que só se conseguiriam recorrendo a complicados rodeios [...]. A percepção sensorial constitui o maior obstáculo à intuição; [...] dificulta a pura e ingênua vidência [...] com importunas excitações sensoriais que fazem derivar a visão para domínios físicos [...]. Para que a intuição se concretize, a percepção terá de ser reprimida ao máximo. Isto tem de ficar, desde já, esclarecido, pois se perguntarmos por que coisas o intuitivo se orienta ele nos falará de coisas incrivelmente parecidas com as percepções sensoriais. Empregará também, com frequência, a palavra percepção.

E, de fato, tem percepções, só que não se orienta por elas. Apenas lhe servem de ponto de referência para a visão intuitiva [...]. A intuição procura descobrir possibilidades no objetivamente dado e é por isso que, como simples função coordenadora, serve também de instrumento que atua automaticamente quando nenhuma outra função acerta com a solução, para uma situação que parece não tê-la. (pp. 426-428)

A intuição, na disposição introvertida,dirige-se aos objetos interiores; isto é, aos elementos do inconsciente [em que se inclui o arcaico herdado] [...]. Não se guia pelas possibilidades externas, mas por aquilo que tiver sido, interiormente, suscitado pelo exterior [...]. A imagem [representativa] fascina a atividade intuitiva, que nela se detém e procura explorar todos os seus pormenores [...]; o mundo imaginístico jamais se converte em problema moral; constitui um problema estético [...]. O tipo intuitivo introvertido é quem mais reprime a percepção [sensorial] do objeto. (pp. 460 e 465)

Também nos detivemos sobre este controvertido autor porque sentimos haver alguma concordância (o que à primeira vista poderia parecer um absurdo) entre este ex-"príncipe coroado" e um conceituadíssimo psicanalista da atualidade: Bion. O ponto de contato é, a nosso ver, a convergência de três aspectos: o valor dado, por ambos, à intuição captadora do inconsciente; algumas semelhanças na maneira de descrevê-la, usá-la; e a clara afirmação de que a intuição nada tem a ver com a percepção sensorial, alcançando sua maior plenitude quando faz calar esta.

Após tantas frustradas buscas, encontramos, desta vez, num direto continuador de Freud, isto é, em Bion, um claro interesse pela função intuitiva. Ele não tem a dificuldade geral em apontá-la como sendo o fundamental instrumento do analista. Considera que, na prática da psicanálise, estamos observando e realizando transformações. Estreitamente relacionado com isto, está o conceito de invariância, que se refere ao que fica inalterado no processo de transformação e que permite reconhecer, no produto terminado, o original O transformado.

Ele fala, explicitamente, da intuição treinada do analista que permite descobrir o O, dando o seguinte exemplo. Após descrever o sonho de um paciente, ele se pergunta: "A respeito do que ele está falando?" E conclui: "Analytically trained intuition makes it possible to say the patient is talking about the primal scene" (Bion, 1965, p. 18), sendo então esta o O (paciente).

O signo O é aplicável a tudo aquilo que se pode chamar de a coisa em si mesma, a realidade última incognoscível, o inconsciente,que se manifesta através das múltiplas transformações. Somente as interpretações que consigam efetuar as transformações do saber a respeito de algo em ser este algo (K → O) terão o efeito de mudança em direção à maturidade (mudança catastrófica).

The point that demonstrates the divergence most clearly is that physician is dependent on realization of sensuous experience in contrast with the psychoanalyst whose dependence is on experience that is not sensuous. The physician can see and touch and smell. The realizations with which a psychoanalyst deals cannot be seen or touched; anxiety has no shape or colour, smell or sound. For convenience, I propose to use the term intuit as a parallel in the psychoanalyst’s domain to the physician’s use of see, touch, smell, and hear. (Bion, 1970, p. 7)

O vértice psicanalítico, para Bion, é o desconhecido, aquilo que ainda não se desenvolveu, o inconsciente (O). Mas ele pode desenvolver-se a ponto de ser captado pela intuição do analista. Este deve saber esperar até que uma intuição súbita dê coerência a uma massa de fenômenos aparentemente desconexos. O processo pelo qual a intuição reúne, em forma significativa, estes dados, antes dispersos, é a evolução,análoga ao fato selecionado de Poincaré.

Mas qual é o estado mental que favorece a captação intuitiva? É evitando (além das teorias) a memória e o desejo, que com suas características sensoriais tornam menos aguda a captação intuitiva de O.

The memories and desires have the following elements in common [...]: they derive from experience gained through the senses [...]. If the mind is preoccupied with elements perceptible to sense it will be that much less able to perceive elements that cannot be sensed. (Bion, 1970, pp. 31 e 41)

Embora Bion não defina o que ele entende por intuição (pondo até o termo, às vezes, entre aspas), ele a considera, como faz Jung, o receptor das mensagens provindas do inconsciente. É semelhante, nestes dois autores, o interesse em aprimorar a capacidade captativa, concluindo algo idêntico: a necessidade de depurar a intuição dos elementos sensoriais, embora estes sejam úteis em outros tipos de conhecimento. Tratando-se do "impalpável" inconsciente, sugerem um especial treino para o analista: o de deixar, por instantes, calados os cinco sentidos, para que seja favorecida a agudeza da intuição, capaz de penetrar naquilo que não está inserido no sensório-concreto.

Com estas premissas, a psicanálise coloca-se definitivamente próxima da arte criativa, sem todavia perder contato com a seriedade da pesquisa científica. Mas não é fácil, para qualquer pessoa, tão rica duplicidade. Pensamos estar tocando, com isto, em outra das razões pelas quais houve, dentro da literatura psicanalítica, um frequente acordo (consciente ou inconsciente) em não se falar de intuição. A psicanálise, que ainda se sentia incipiente no meio de ciências bem mais antigas, poderia ser tachada de mística, de não científica se assumisse patentemente pretender "tratar" e pesquisar utilizando-se de um instrumento que, durante séculos, tinha sido considerado próprio das artes mágicas, das artes estéticas e das artes inspiradas. Bem sabemos, ainda em nossos dias, que uma das maneiras mais sutis que as pessoas (dentro ou fora da ciência) têm para nos dar indiretas de charlatanismo é através da pergunta: "Como é que vocês pretendem concluir sobre coisas que não veem, não tocam, não medem, não avaliam estatisticamente?" Num clima acusatorio desse, confessar crer na riqueza dada pela intuição poderia ser sentido como prova de falta de seriedade científica.

Por outro lado, se o próprio Freud tinha afirmado que a intuição não pertencia ao nosso instrumental, com qual embasamento iriam seus discípulos contestá-lo? Kohut apontou (1977/1980) que o mestre não se inclinava a ser mobilizado por experiências não discursivas, devido ao desejo de compreender inteiramente sua experiência interna em termos racionais.

Soa, portanto, particularmente assumida a afirmativa de Bion de usar o intuitquem pretender ser psicanalista, e não o instrumental senso-perceptivo da medicina (sobretudo se recordarmos que vários institutos de psicanálise ainda barram a entrada a quem não tiver formação médica). Bem sabemos que não é a primeira vez que este original autor épate le bourgeois,3 beneficamente. Todavia, algo curioso ocorreu, provando novamente o quanto é difícil aceitar o conceito intuição. Apesar de terem penetrado triunfalmente, em nossos meios, as ideias de Bion, não passou junto com elas, com igual sucesso, o termo intuição, que está em seus textos. Repete-se sim, frequentemente, em nossos encontros científicos, o conhecido conselho de "não memória e não desejo", mas é comum não haver referência ao fato de que isto serviria, na visão bioniana, para aprimorar a captação intuitiva. Outras explicações têm mais sucesso: "para entender o analisando", "para poder ser um bom continente", "para não ser invadido pelos elementos β" etc.

Esta característica de aludir à intuição sem nomeá-la é comum nas obras psicanalíticas desde Freud. Dissemos só haver neste autor três citações, bastante vagas e um tanto negativas, sobre ela. Todavia, poderíamos afirmar que ele não a levou em conta? Que não a utilizou? Certamente não. Freud foi um grande intuitivo e provou sê-lo descobrindo verdades incontestáveis diante das quais inúmeras gerações tinham se tornado cegas. Além disto, na prática da psicanálise, sempre aconselhou um tipo de postura e de aprimoramento, por parte do terapeuta, que só poderiam desenvolver seus dotes intuitivos. A regra da atenção flutuante, a obrigatoriedade da análise didática, os avisos dados sobre técnica (Freud, 1912/1969) a respeito do perigo da recordação voluntária, das aspirações do terapeuta sobre o paciente e das anotações teóricas, durante o tratamento, são provas de seu cuidado em evitar que a captação do analista ficasse obscurecida por material espúrio. O próprio Bion, que nunca negou ser continuador do mestre, relembra que este, numa carta a Lou Andreas-Salomé, "suggested his method of achieving a state of mind which would give advantages that would compensate for obscurity when the object investigated was peculiarly obscure. He speaks of blinding himself artificially" (1965, p. 18). Bion se refere, com isto, às seguintes palavras de Freud: "Sei que me ceguei artificialmente, em meu trabalho, com o fim de concentrar toda a luz numa única passagem escura" (Freud & Lou Andreas-Salomé, 1978). A "luz" à qual alude é o que Bion denominará intuição dirigida para O, isto é, para o desconhecido.

León Grinberg (1973/1976) confirma a comparação que fizemos entre a atitude intuitiva diretamente aconselhada por Bion e a usada e sugerida (sem ser nomeada) por Freud.

Em muitos trabalhos psicanalíticos, a pouca clareza na delimitação de conceitos favorece o anonimato desta função, embora suspeitemos haver alusões indiretas a ela. Assim escreve Ferenczi, em 1919 (1950):

[analytic therapy] requires of him [the doctor] the free play of association and phantasy, the full indulgence of his own unconscious: we know from Freud that only in this way is it possible to grasp intuitively [itálico nosso] the expressions of the patient’s unconscious.

Sempre que não se trate de um erro do tradutor, há um curioso lapsus calami no psicanalista Max Schur, médico pessoal de Freud, seu biógrafo. Ao querer reproduzir a frase de seu famoso cliente, em que este critica a filosofia, acrescenta um não que não consta no correspondente trecho freudiano. Max Schur assim "copia": "Perde-se [a filosofia] nos seus métodos de superestimar o valor epistemológico das nossas operações lógicas ao não [itálico nosso] aceitar outras fontes do conhecimento como a intuição" (1981, p. 533).

Seria interessante verificar, nos escritos dos discípulos próximos a Freud, se haveria outros trechos com a valorização (direta, indireta, involuntária) da intuição que não ficara explícita nas obras deste.

Passando para os autores psicanalíticos atuais, o artigo de Guillermo Sánchez Medina é quase uma raridade por ser dedicado especificamente à função intuitiva. Em "A intuição no processo do conhecimento em psicanálise" (1980), revela-se como a intuição participa dos processos mentais e pode levar ao conhecimento lógico. A investigação e a ciência iniciam-se, em muitas ocasiões, desta atividade sã, reparadora, reconstrutiva, que precede ao lógico.

É dada, no artigo, uma definição de intuição científica ao dizê-la:

capacidade do aparelho mental de perceber um fato, uma ação, um fenômeno sem os elementos próprios da lógica, mas com a imaginação: sem o instrumento da palavra, mas com a capacidade de [...] fazer conexões de signos e significados pré-verbais [...]. [Ela] é um saber sem um porquê ou para que [...]; é o início do pensamento sem discurso [...] mas que leva à ideia e ao conceito. No ato intuitivo o sujeito "vê" a coisa, ou melhor, "sente-se sentir" [...]: é um pré-sentir. (pp. 485-486)

O autor conclui: "Freud não penetrou explicitamente no fenômeno da intuição; contudo, deixou-o implícito ao se referir aos diferentes processos que se dão entre os chamados processos primários e secundários" (p. 482).

No caso específico da psicanálise, continua Sánchez Medina, o clínico, pela atenção flutuante, "abre-se" ao campo do inconsciente em que atuam os pré-conceitos, os pré-signos, o pré-verbal. A capacidade intuitiva age como um instrumento que inicia o processo cognitivo. Ela estaria situada na percepção interna da imagem (objeto), do desejo, do impulso, movidos pelo instinto com sua configuração de fantasia inconsciente.

Como Grinberg e como nós fizemos, Sánchez Medina, a partir da descrição da postura recomendada por Freud, é levado a recordar Bion. Desta vez, é trazido um trecho de Second thoughts:

Se intuir corretamente a situação psicanalítica (prefiro o termo intuir a observar, escutarou ver, pois não encerra uma penumbra de fenômeno sensorial), o psicanalista poderá comprovar que o idioma correntemente falado é surpreendentemente adequado para a formulação da interpretação [...]. Em síntese, refiro-me ao problema suscitado por uma crescente intuição. Não sabia, naquela época, até que ponto é comum esta experiência. (Bion, 1967, pp. 111 e 134-135)

Um dos nossos objetivos, ao trazer contribuições de alguns psicanalistas, é verificar a possibilidade de entrosamento entre suas colocações a respeito da intuição e a utilização dela no setting. Conseguimos, por enquanto, estabelecer certas conexões: Jung-Bion; Freud-Bion; atenção flutuante-intuição etc. Todavia, evidencia-se, paralelamente, o quanto é lacunar em psicanálise o conceito intuição. Vimos como, conforme quem escreve, ela é "ilusão", "instrumento de conhecimento", "não científica", "ponto de partida de várias ciências", "decifração do arcaico herdado", "adivinhação do futuro", "não sentimento", "pré-sentimento" etc. Ao esboçar subsequentemente outras contribuições, veremos que haverá sim, ainda, a possibilidade de encontrar filões condutores comuns entre os autores, mas sobretudo a de aumentar a discrepância entre suas asserções. Nota-se também, já pelos autores citados, uma estranha abordagem e postura quando se trata de intuição: quem a desvaloriza a usa; quem a usa não a define; quem a valoriza a escreve entre aspas.

Gostaríamos, neste ponto, de fazer uma pequena pausa para uma outra observação relacionada ao termo intuição, favorecida pelo que relata Sánchez Medina. Este, após ter descrito como esta função é instrumento importante do psicanalista e com isto podendo citar inúmeros casos de seu trabalho clínico diário, limita-se a apresentar um só exemplo de sua experiência em que se observou, conforme diz, o "pré-sentimento" ou a "intuição". Relata que, ao atender um telefonema de uma paciente que se desculpa por não poder vir à sessão, sente, contratransferencialmente, pesar e pensa que o motivo da ausência é uma pena-luto, um enterro. Quando a cliente vem à sessão seguinte, confirma as fantasias conscientes do terapeuta dizendo ter faltado para ir a um enterro. Diz o autor:

Esta situação não foi a única e posso expressar como, em muitas ocasiões, durante a análise, deparei-me com um "pré-sentindo", "intuindo" o que mais tarde a mim se confirma por uma linguagem direta: eis aqui outra linguagem, a da intuição. (Sánchez Medina, 1980, pp. 489-490)

No exemplo dado, porém, nós preferiríamos usar só o termo intuir, pois foram captados vivências e fatos que estavam ocorrendo, reservando o uso da palavra combinada pré-sentir para quando se tratar de algo "sentido" previamente, antes de o fato pré-sentido ocorrer. Esta é uma das tantas pequenas discrepâncias na utilização de termos em psicanálise, termos que, para algumas pessoas, têm sentido de sinônimos, mas para outras não.

No conceito intuição está incluída, até pelo uso corrente, a possibilidade decifrativa espetacular de verdades não veiculadas pelos meios comunicativos comuns. Quando isto ocorre, o intuitivo fica estupefato. Percebe ter em si, partindo de seu inconsciente, um instrumento precioso, penetrante, cognitivo, que o amplia na definição de si mesmo e na decifração do outro. Foi particularmente agudo e sintético o comentário de um amigo-colega (que agradecemos e citamos no final deste trabalho) que, ao ouvir o esboço de nossas colocações, comentou que, "tratando-se de intuição, devemos diferenciar uma intuição com i minúsculo de uma intuição com I maiusculo". Não pensamos provir esta, com I maiúsculo, de outro tipo de função, mas da mesma em momentos de particular acuidade.

Vários outros autores tentaram detectar quais fatores podem favorecer ou prejudicar a captação do analista. Entre estes, Racker (1960), que considera a intuição uma capacidade a mais de percepção nas identificações e contraidentificações (concordantes e complementares) que se processam no encontro transferencial-contratransferencial do setting.

Rosenfeld (1966) descreveu como pode ficar diminuída a acuidade captativa quando as identificações projetivas se tornam maciças, provocando confusão psicótica, pela perda de limites entre ego e não ego. Também quando, pela ausência de identificações projetivas, o processo analítico paralisa-se. A inveja destrutiva, a excessiva carga agressiva, com suas culpas subsequentes, podem cortar o "vínculo" entre paciente e analista, prejudicando o contato intuitivo. Grinberg (1957), Bion (1965) e muitos outros apontam como um analista "bom continente" é capaz de intuir, receber, decifrar o que angustia o paciente, devolvendo-o a ele elaborado, através da interpretação. Pensamos que é necessária também a intuição para entender o que, como, em que momento, em qual medida e forma será feita esta devolução construtiva ao analisando.

O texto de Walter Trinca (1983), embora baseado na experiência diagnóstica, contém um amplo capítulo sobre intuição. Ao lidar com o cliente, não contaríamos com uma forma exclusiva de pensar - são apontadas catorze possíveis modalidades, sendo principalmente uma delas que teria presidido a pesquisa do entrevistador. A modalidade de pensamento por imagens intuitivas, que Paivio (1971) define como "representações análogas a informações perceptuais", diferenciando-as do sistema verbal, pode se tornar o fator decisivo na conclusão diagnóstica. São "imagens especiais" que se distinguem pela marcante presença e vivacidade, tendo analogia com os sonhos, sem se confundirem com as alucinações, que são percepções convincentes de algo que não estaria no local (Krech & Crutchfield, 1971). Paivio (citado por Lester, 1980) observa terem estas imagens uma organização sincrônica pela qual informações complexas são integradas de modo simultâneo numa unidade, mas, infelizmente, elas não têm recebido muita atenção, mesmo entre os psicanalistas.

Trinca escreve:

Para além da natureza e significado inteligível da comunicação oral do paciente e, aparentemente, sem qualquer relação evidente com ela, surgem de modo espontâneo imagens intuitivas na mente do profissional. São imagens de conteúdo tal que, no primeiro momento, podem ser experimentadas como fora do contexto das observações e da conversação [...]. Ao se dar atenção a elas e ao sentido que possuem, verifica-se, porém, que não são independentes da situação emocional do paciente; ao contrário, correspondem àquilo que ele pretende comunicar a respeito de seus estados mentais mais profundos. No momento em que o significado dessas imagens é revelado ao paciente, este reconhece-o como algo relevante que lhe diz respeito. [...] Isto devido ao fato de que o paciente não consegue comunicar, por meio de palavras, tudo quanto necessita, havendo áreas mentais inacessíveis a sua simbolização. A comunicação do conteúdo destas áreas é, então, tentada pelo paciente de modo não verbal e pode ser captada pelo profissional de maneira igualmente não verbal, e com êxito, por via de imagens intuitivas [...]. O fato de conduzir a resultados bem-sucedidos constitui uma prova a favor de seu uso. (1983, pp. 161-164)

O autor cita como ilustração do pensamento intuitivo por imagens a oferecida por Judith Andreucci (1979) quando tem a impressão de que os olhos de sua paciente são de vidro, que toda ela é pétrea como uma estátua de granito fincada num mausoléu. Sua voz, sem timbre, sugere o crepitar de folhas secas. Estas imagens intuitivas caracterizam surpreendentemente o "mundo interno" da paciente. Trinca, ele também, deriva seu estudo chegando a Bion. Há situações emocionais em que o paciente não consegue verbalizar, pelo excessivo uso de identificações projetivas que o impedem de sintetizar e de articular as impressões sensoriais. Não ter palavras para as situações significa, por outro lado, que as palavras são "coisas", objetos encapsulados na personalidade do paciente, e não representações simbólicas. Quando este é o estado psíquico do paciente, poderá ele tentar outras formas de comunicação não verbal, entrando então em jogo as imagens intuitivas. Estabelece-se algo semelhante à relação primária bebê-mãe, sendo projetadas nesta, por identificação projetiva, "partes" psíquicas dissociadas da criança incapaz de conter e utilizar elementos sensoriais de estimulação interna e externa. Se a mãe for capaz de rêverie, receberá esta comunicação, a elaborará e terá com seu filho um tipo de "diálogo" que favorecerá, neste, o significado daquilo que "evacuara" nela, alcançando-se a expressão verbal e o nível simbólico. Este modelo de relação aplica-se ao encontro clínico. O paciente, ao procurar entendimento, poderá usar meios primitivos de comunicação. Um dos modos de o profissional captar o que se passa na relação é através das imagens intuitivas. Se o paciente é realmente compreendido pelo clínico, que lhe transmite significados, será realizada a passagem para o pensamento verbal. Aquilo que tinha sido um conglomerado de sensações sem nome, para o analisando, passa a ser experienciado como algo com significado emocional. Todavia, com relação a estas imagens intuitivas, Trinca insiste em dizer que se deve fazer um uso cauteloso delas, buscando constantes verificações, como com qualquer outro material de pesquisa científica. Concordamos plenamente com este conselho, como também com o de não contarmos só com um tipo de modalidade de pensamento em nosso trabalho clínico.

Após ter reunido estes textos, concluiríamos:

■ Estes autores mostram ter feito o mesmo périplo meditativo que nós fizemos -partindo do interesse pela intuição, acabaram desembocando em Bion;

■ Sendo que, conforme quem escreve, foi escolhido ora um trecho, ora outro deste autor, qual ponto de apoio do valor da intuição, isto sugeriria que nestas "caminhadas" conclusivas não houve imitação entre os teóricos;

■ Torna-se então mais evidente o descaso, nos meios psicanalíticos, pela função intuitiva, Cinderela que não entra na festa apesar do convite assinado pelo príncipe e confirmado por alguns de seus ministros;

■ Todavia, nada do que foi apresentado até agora explicaria ser ela posta à margem por colidir com alguma conceitualização, não só de Bion, mas também da Escola Inglesa em geral;

■ E aqui vai um questionamento: foi salientado, várias vezes, como Bion chama de conhecimento intuitivo aquele que difere do provindo da percepção sensorial; entraria este autor numa contradição quando, por exemplo, em Volviendo a pensar (1972), mostra como o recém-nascido, incapaz de utilizar os elementos sensoriais, projeta estes conteúdos na mãe, que, se tiver boa comunicação com a criança, os conterá, os intuirá, os elaborará, realizando a transformação das impressões sensoriais em elementos mentalmente utilizáveis (ocorrendo algo análogo numa sessão)?

Enfim, em poucas palavras, para Bion, a intuição tem ou não tem a ver com as impressões sensoriais?

Pensamos não haver contradição no pensamento bioniano. O analista, tentando investigar o inconsciente do paciente, realmente não usa a percepção sensorial no sentido de ver, cheirar, tocar, por ser este impalpável, mas sua intuição. No entanto, será esta que permitirá ao analista, ao interpretar suas próprias imagens intuitivas, captar núcleos regredidos do paciente no qual os modelos do pensar estão ainda em nível "concreto", em que até as palavras são "coisas" e em que as emoções não saíram ainda, pela dimensão significante, do fisiológico-pulsional. E será ainda a intuição que funcionará como ponte entre o pré-verbal e o verbal, entre a confusão e a decifração.

Há pouco, tentamos ver os possíveis pontos de contato entre Bion e Jung. Também neste caso poderia haver um. Jung considera que, quando a função intuitiva é a mais eminente, será a sua oposta - isto é, a percepção sensorial - que, infantil, caracterizará o inconsciente. Levaríamos longe demais as ideias junguianas ao imaginar que, então, um analista particularmente intuitivo teria, devido às características próprias de seu inconsciente, mais aptidão para vivenciar as experiências sensoriais regredidas de seu cliente? Por outro lado, a intuição, para Jung, ao se desenvolver, tornar-se-ia pensamento, favorecendo esta função.

Lendo estes dois autores, consultando outros e baseando-nos em nossas experiências, concluiríamos que a intuição, pelos seus aspectos mais profundos e mais desenvolvidos, pode ser considerada como o traço de união entre o sensorial e o intelectual, embora em si própria não seja percepção sensorial. O analista, decifrando suas próprias captações intuitivas, "que parecem percepções", as transformaria em entendimento. Analisando suas imagens, alcançaria a integração de níveis diferentes da comunicação, isto é, entre o pré-verbal e o verbal, entre os processos primários do inconsciente e os secundários da consciência avaliativa. Pensamos assim que a intuição, qual Jano Bifronte,4 olharia então em duas direções opostas, entrosando-as, havendo nela também a possibilidade de, na encruzilhada dos vários tempos, sincronizar as heranças mais arcaicas, de símbolos universais, com a captação de um presente ainda subliminar e com o pressentimento daquilo que, embrionário no atual, iria se desenvolver no próximo futuro.

Meditando sobre estas questões, sobre os atributos dados pelos autores citados à intuição, seria possível construir uma definição que, também concordando com nossa experiência, incluiria necessariamente ser ela: primária, podendo ser elaborada pelos processos secundários; ponto de ligação entre a captação inconsciente e a meditação consciente sobre estas produções; originada de uma fantasia compartilhada que, manifestando-se em nova versão do analista e pelo "preparo" deste, quando decifrada, evidenciaria o conteúdo latente do encontro; instrumento analítico que enriquece a interpretação com aspectos criativos - vivenciais - do terapeuta; um tipo de conhecimento não provindo da dedução racional ou da percepção sensorial, mas de um processo de captação espontânea e súbita de camadas profundas, de estados mentais de si mesmo e do outro, por meio de "imagens" (visuais, proprioceptivas, auditivas etc.) indicativas de uma ligação muito íntima entre duas pessoas, permitindo a comunicação de estados ainda inacessíveis à verbalização e a simbolização de vivências arcaicas, quando até as sensações corpóreas não tinham nome; receptora de "mensagens" que não seriam alcançadas por outros meios; instrumento indispensável ao analista em seu trabalho clínico etc.

Poderíamos completar esta já ampla definição com outras características típicas dela relendo autores, burilando os termos, harmonizando noções... Enfim, achar que só faltaria fazer arremates e que nosso objetivo estaria finalmente alcançado: o de ter uma definição de intuição, embora não oficial, mas que permitisse falar dela sem equívocos.

Todavia. Quando depois disso, ao descrever fenômenos desse tipo, comunicássemos aos colegas "tratar-se de intuição", alguém poderia ainda, com outras razões, também justas, provindas de diferentes premissas, comentar que "não se trata de intuição, mas de outro processo"; "que a intuição não tem estas características, mas outras"; "que ela não é isto, mas aquilo". E nós nos encontraríamos, novamente, numa situação de possíveis mal-entendidos ao dialogar sobre estes fatos psíquicos.

Passamos por esta surpresa. Ficamos confusos. Suspeitamos estarmos errados ao perceber que autores e colegas esclarecidos referiam atributos, que pensáva-mos pertencerem à intuição, a diversas funções, privando-a deles, retirando-a de seu lugar primário, no processo cognitivo, para colocá-la no secundário. Nestas novas alusões não parecia mais a mesma que conhecêramos pelas leituras e pelas experiências vivenciadas. E nem os fenômenos que ocorriam, em certos momentos, teriam ainda direito ao nome com o qual os indicávamos até aquele instante. Teria sido em vão o trabalho de burilar um conceito quando este já perdia seus contornos?

Foi então que entendemos não haver erro nem da nossa parte nem da parte de quem a julgava outra. Trata-se simplesmente de uma lacuna dentro da psicanálise pela qual, conforme o autor e a linha teórica, atribui-se um termo ou outro a semelhantes fenômenos, ou explica-se a evolução cognitiva com diferentes sequências, ou chamam-se as etapas desta com diversos nomes.

Percebemos, mais uma vez, como em psicanálise raramente alcançamos definições claras e, quando sim, estas não são sempre universais. Também porque os psicanalistas, ao optar pela linha teórica que privilegiam, raramente se dão ao trabalho de verificar ou diferenciar o que se descreve nesta com o que se define em outras. Os vocabulários psicanalíticos silenciam sobre alguns conceitos ou os definem em harmonia com uma só linha teórica. Faltam discussões construtivas sobre os alicerces do pensamento que são as delimitações de conceitos. Sem estas, perpetua-se a "Torre de Babel", na qual cada um fala a própria língua, não decifrando a alheia - até às vezes contestando e questionando alguém que parece afirmar algo bem diferente, quando na verdade, se fossem esclarecidos equívocos no uso de termos, se evidenciaria que se está falando de ideias semelhantes.

Isto nos recorda uma situação ocorrida com uma senhora recém-chegada da Itália anos atrás, que, magoada, voltara para casa sem conseguir comprar manteiga num empório. Ela não entendia por que tinham feito tão pouco caso dela. Mas, assim que descreveu o ocorrido, foi possível decifrar o não atendimento. Estando a loja cheia de fregueses, ela, com pressa, da porta ficara gritando, repetidamente, olhando firme para o vendedor: "Burro!" (manteiga, em italiano).

Se não é possível alcançar-se uma definição aceita por todos, é necessário, pelo menos, conhecer-se algo a respeito do que é afirmado em outras linhas teóricas. A respeito das imagens intuitivas visuais,não demos ainda outros pontos de vista que encontramos em obras de diferentes abordagens.

Mark Kanzer (1955,1958, 1980a,1980b) considera a troca verbal só uma parte da comunicação entre paciente e analista, sendo essencial, desde Freud, a captação de mensagens inconscientes. As imagens visuais que ocorrem ao paciente durante a associação livre, como as do sonho, representam a relação analisando-analista; portanto, são diádicas, e não monádicas.Porém, o autor não está de acordo com o que é dito normalmente, isto é, que esta comunicação visual é primária e infantil, sendo, do ponto de vista dele, o resultado de processos mentais mais elevados. O próprio hieróglifo, muitas vezes comparado à linguagem do sonho, nada tem, para este autor, de primitivo. Devido a isto, a linguagem visual do paciente deveria então ser traduzida com a ajuda da lógica e da consciência, por parte do analista, e não pelo simples acesso da intuição ao acaso.

Embora Kanzer continue o estudo das imagens visuais, provindas das associações livres, iniciado por Lewin (1954/1973), não concorda com este que sejam devidas a processos primários, mas sim a "secret island of resistance", quando uma censura bloqueia a entrada na consciência a uma ideia perturbadora, que é transformada, então, num componente perceptual regressivo. Vemos portanto que, pela tese deste autor, o que era descrito como primário será secundário;o acesso às imagens não seria pela intuição, mas pela lógica consciente. A troca de informações pela imagem visual, antes considerada favorecida pelo entrosamento entre duas pessoas, agora é prova de uma secreta resistência.

Warren (1961) confirma Kanzer ao dizer que o paciente que fica calado pela resistência tem vívidas cenas visuais, descarregando nestas impulsos retidos em lutas defensivas.

Bennet Simon (1981), estudando a convergência de imagens semelhantes entre paciente e analista, coloca a hipótese de uma dificuldade na comunicação (crítica, isolamento, mal-entendido), que é assinalada por este tipo de representação visual, a qual permite, quando decifrada, superar o impasse. Cita a opinião de James Skinner, que considera ocorrerem comunicações parapsicológicas quando o analista é menos acessível ao paciente, devendo este exercer um certo esforço para se manter em contato com seu terapeuta. Se agora compararmos o que afirma Bennet Simon com o que, por exemplo, diz Marie Langer (1957), notaremos grande diferença: quando esta última descreve uma experiência "telepática", considera ter ocorrido porque "eu tinha entrado no mundo da paciente", "engrenado com ela", "a interação entre nós duas era de nos formarmos uma só Gestalt".

Não pretendemos conciliar asserções; o que estamos sugerindo aqui é ser lacunar o conceito de intuição dentro da psicanálise. Foi lendo outros autores que entendemos mais uma razão que explica esta lacuna: para muitos deles, será a empatia, e não a intuição, que terá lugar de destaque no processo terapêutico.

Arlow (1969) trará o estudo dos elementos visuais que acompanham a atenção flutuante do analista, salientando a importância da reconstrução pictórica do passado-presente do analisando por parte do terapeuta, "ligado a ele pela empatia".

Muitos serão os autores que, como este, estudam as "imagens" não dentro do contexto da intuição, mas no da empatia.

Ross e Kapp (1962) salientam como as imagens evocadas no analista, pelo sonho do paciente, darão inesperadas descobertas que recuperarão a empatia temporariamente perturbada. Em todo este artigo nunca há referências à intuição, pois o interesse dos autores é continuar os estudos de Gitelson (1952), Cohen (1952), Menninger (1958) e Colby (1958) sobre as reações inconscientes contratransferenciais do analista e da empatia conturbada e restabelecida. Ross e Kapp ensinam uma interessante técnica empática (inspirada em Kanzer), achando que, da mesma forma que o terapeuta conceitualiza, através de suas próprias imagens associativas, o sonho do cliente, embora numa versão diferente, ele retrata a sua própria mente assim como a do paciente. O analista associa "visualmente" e a autoanálise dos sentimentos tidos dá a chave das vivências que ocorrem na sessão.

Também James W. Kern (1978), na sessão, imagina e "visualiza" uma situação semelhante à descrita pelo paciente, mas retirada de sua própria vida. A imagem é analisada, encontrando-se vivências de seu próprio passado, que se tornam revelações sobre o que o paciente não estaria conseguindo verbalizar. O autor acha que, quando a análise corre o risco de atolar, a compreensão destas imagens daria entendimento dos conflitos transferenciais dos quais se defende contratransferencialmente o analista, renovando-se a capacidade empática em relação ao analisando - aqui também se salienta a empatia e a contratransferência, mas não se fala de intuição.

A divergência entre os autores acerca das imagens visuais é clara, pois, para alguns, elas aparecem pelo processo primário; para outros, pelo secundário; para alguns, brotam da intuição; para outros, da empatia; para outros, da contratransferência. Quanto ao que elas reproduzem da situação analisando-analista, para alguns autores, é prova de contato e de entrosamento muito íntimo; para outros, de dificuldade de contato; para outros, de não querer ter contato; para outros, de uma tentativa desesperada de contato.

Baseando-nos em nossa experiência, opinaríamos que todas estas situações emocionais podem ocorrer. Certamente, o entrosamento íntimo favorece a captação entre duas pessoas, mesmo fora da análise, quando uma delas traduz o que pensava, sentia ou mesmo não conscientizava ainda a outra. Pelo desejo de comunicar-se, podem também ser vencidas as maiores barreiras: distância espacial, mensagens através de imagens quando o nível de vivência não alcançou ainda o verbal ou o da consciência etc. Entretanto, pensamos que a captação não ocorre somente quando o outro está próximo afetivamente e quer comunicar-se. Se fosse assim, o ser vivo seria privado, dentro e fora da análise, da possibilidade de decifrar situações emocionais negativas, antipatias, "ciladas", que, pelo contrário, até uma criança, um animal "decifram", protegendo-se contra elas. Será então em situações de semelhantes dificuldades, numa análise, que a captação favorecerá a decifração de impasses no relacionamento e de entraves na comunicação e na cognição, favorecendo, em tempo, chances de superá-los.

Tentamos com isto entrosar estas várias contribuições dizendo que uma delas não exclui necessariamente as outras. Todavia, que nome dar a cada um destes fenômenos que indicamos genericamente como captações?

Pela proposta de Kohut, que desde 1959 desenvolve a de Robert Knight, de 1946, será sempre mais salientada, na psicologia do self, a vantagem de a psicanálise basear-se na empatia, sobretudo tratando-se de pacientes muito regredidos. Kohut (1971) define a empatia: "a mode of cognition which is specifically attuned to the perception of complex psychological configuration" (p. 300). Ele acha que a empatia é de grande importância para entender e interpretar os vários tipos de transferência, dentre os quais a narcísica, e que é o instrumento essencial ao analista. Lendo o que escrevera este autor em 1959, temos a surpresa de encontrar, relacionados à empatia, comentários semelhantes ao que Bion, anos depois, dedicará à intuição. Kohut aconselha aprimorar um novo órgão receptor, a empatia, e pelas seguintes razões:

The inner world cannot be observed with the aid of our sensory organs. Our thoughts, wishes, feelings, and fantasies cannot be seen, smelled, heard, or touched. They have no existence in physical space, and yet they are real, and we can observe them as they occur in time: through introspection in ourselves and through empathy (i.e., vicarious introspection) in others. (1959, p. 459)

Kohut continuará fiel a estas colocações, conforme escreve em 1977:

Al final de cuentas, la psicología profunda no puede demostrar sus afirmaciones con el tipo de pruebas disponibles a ciencias tales como la física y la biología, que estudian el mundo externo a través de la observación sensorial. A pesar de ello, la investigación válida en psicoanálisis resulta posible porque la comprensión empática de la experiencia de otros seres humanos es una capacidad humana tan básica como la visión, el oído, el tacto, el gusto y el olfato. (1977/1980, p. 107)

Mas por que ocorre este deslocamento de acento da intuição para a empatia em Kohut e, em consequência, nos outros autores da psicologia do self? Lendo Lichtenberg (1981), encontramos uma das possíveis interpretações deste fato:

According to A glossary of psychoanalytic terms and concepts, empathy is "a special mode of perceiving the psychological state or experiences of another person. It is an 'emotional knowing’ [...] rather than intellectual understanding. To empathize means temporarily to share, to experience, the feelings of the other person [...]. Empathy establishes close contact in terms of emotions and impulses; intuition does the same in the realm of ideas" [...]. I disagree with Kohut’s phrasing in which he essentially follows the Glossary’s definition of the empathic process and explicitly excludes intuition as a prime method of perception by the analyst. My view disagrees with a conception of the empathic process that would limit it to an understanding of emotions. (p. 331)

Para Lichtenberg, a vantagem do uso da empatia por parte do analista (modo de percepção pelo qual ele orienta sua escuta para dentro da mente do paciente) leva-o a utilizar: (a) sua empatia; (b) sua intuição; (c) seus mais elaborados raciocínios cognitivos. Com isto, seria mantida a distinção entre empatia e intuição, diz Lichtenberg ("preconscious automatized, learning cognitive sharing"), e a psicanálise não seria acusada de colocar demasiada ênfase no emocional.

Torna-se claro como, pela definição do Glossary, a função intuitiva perde algumas de suas características em nome da empatia. A valorização crescente dada à empatia (Shapiro [1981] observa que, de 1932 a 1955, o Psychoanalytic Quarterly registrava somente 1 citação de empatia e 42 sobre insight; em contraste, de 1967 a 1980, empatia constava 23 vezes e insight apenas 6) favorece a diminuição dos possíveis trabalhos, já tão escassos, sobre intuição. Além disso, por haver, entre os que escrevem sobre empatia, uma certa divergência de ideias a respeito do que ela abrange, teríamos indiretamente como consequência que, para a intuição, "sobrariam" mais ou menos atribuições conforme a empatia fosse vista menos ou mais abrangente.

Schwaber (1981) segue Kohut na valorização da empatia, considerando-a uma forma de escuta para conhecer e responder (tanto no relacionamento primário mãe-bebê como na análise) a realidade subjetiva do outro. Para Schlesinger (1981), empatia é permanecer em sintonia com os significados variáveis das experiências do paciente. Para Hamilton (1981), a resposta empática é uma forma de percepção determinada pela combinação de fatores emocionais e cognitivos.

Outros autores colocam-se francamente contra Kohut. Um deles é Shapiro (1981) e pelas seguintes razões: Freud nunca valorizou a empatia, mas a intuição (pelo uso da atenção flutuante); da maneira que está sendo colocada, é como se a empatia fosse um novo órgão, independente das outras funções. Este autor acha que a escuta empática certamente permite apreender as profundas raízes da dificuldade do paciente. Ela, porém, não é primária, não é percepção imediata; ela é "likely a part of the gestalt-building aspect of perception". Ela só pode ocorrer na diferenciação do eu e do não eu e na maturidade das funções do ego (nunca na regressão) e se for ligada aos significados verbais.

Se estamos trazendo brevemente estes autores não é tanto para falar de empatia, mas para, novamente, apontar o quanto se torna controvertido o conceito de intuição. Ora ela é inconsciente e primária, vinda antes da empatia; ora ela é compartilhar ideias, sendo esta comunhão posterior à empatia; ora a intuição é auscultar-se introspectivamente, enquanto que empatia é entrar no páthos do outro; ora é a intuição que permite a entrada na ideia do outro, e empatia é vibrar por dentro, em eco, da vibração do outro. Alguns autores diferenciam empatia de intuição; outros juntam as duas sob o termo empatia ou intuição,referindo-se a uma só função que englobaria os atributos de ambas.

Em Greenson (1981), reencontramos definições próximas à do Glossary:

tanto a empatia como a intuição são meios de obter uma compreensão rápida e profunda. Empatia é um método de estabelecer um contato íntimo quanto às emoções e os impulsos. A intuição faz o mesmo no campo das ideias. A empatia é uma função do ego observador. Estes dois fenômenos podem levar um ao outro [...], mas a empatia exige mais emocionalmente, consiste num envolvimento emocional e exige a capacidade para regressões controladas e reversíveis, não só em relação às funções do ego, mas também quanto às relações objetais. A intuição exige menos emocionalmente: é essencialmente um processo de raciocínio, ainda que uma regressão. A empatia e a intuição são as bases do "talento" para agarrar os significados inconscientes; os melhores terapeutas têm um bom estoque de ambas. A capacidade para a empatia é um requisito básico, porque, sem ela, torna-se quase impossível fazer qualquer terapia de desvendamento. A capacidade para a intuição contribui para a sagacidade, mas sem empatia ela pode ser ilusória e não merece confiança. (p. 411-426)

No belo trabalho "Sobre a função receptiva do analista", Peter Thomson (1983) considera a experiência subjetiva do terapeuta uma importantíssima função receptiva, que precede ao seu trabalho cognitivo. O analista pode usar, em acréscimo à escuta ativa do material do paciente, uma forma passiva de atenção que é menos focalizada sobre o paciente e mais sobre o próprio terapeuta. Nesta forma de escuta, ele capta estímulos que emanam de seu mundo mental, de suas emoções, de sua memória, de suas fantasias e até de sua experiência física. Ao lado disto, seu processo secundário acha-se pronto para aplicar suas funções de teste de realidade ao funcionamento de seu próprio processo primário.

O analista não deve ter pressa para atribuir significado a sua própria experiência subjetiva: "a verdade está lá, mas ela pode falar somente quando estiver pronto para ouvi-la" (Thomson, 1983, p. 88). Ele utiliza sua função receptiva para entender as resistências, para experienciar o inconsciente do paciente e ajudá-lo a encontrar uma linguagem para fenômenos ou aspectos da relação para os quais este não possuía previamente símbolos verbais.

Há neste artigo exemplos de como o autor usa sua função receptiva. Entre estes, a decifração de nomes e palavras que ocorrem na mente do analista diante da associação ou do silêncio do analisando e que dão a chave decifrativa da angústia, das fantasias e dos desejos do cliente. Thomson fala também, no fim deste trabalho, dos componentes da função receptiva, definindo extensamente cada um deles: (a) empatia; (b) afeto; (c) ocorrência inusitada de gestos; (d) fantasia; (e) regressão a serviço do ego; (f) experiências somáticas; (g) simbolismo pessoal do analista; (h) papel responsivo. Estas seriam funções do ego cuja soma constituiria a função receptiva do analista.

A intuição não foi incluída, uma vez que é essencialmente um termo que descreve o produto final da função receptiva. (pp. 128-129)

Os estoques de informações são organizados em configurações significativas fora do foco da consciência e só posteriormente são relacionados com a função cognitiva do analista. (p. 96)

O analista deve ser capaz de relaxar sua própria autonomia temporariamente e estar aberto para as necessidades do paciente nos períodos de fusão [...] em termos simbióticos narcísicos ou de "self-objeto" [...]. Deve aceitar, frequentemente, a falta de compreensão cognitiva por uma ou mesmo várias sessões, enquanto tateia seu caminho intuitivo e subliminarmente em direção a uma Gestalt. (p. 106)

Juntando estas duas asserções de Thomson - produto final da função receptiva, em que a última funciona sozinha e sem envolvimento secundário do funcionamento cognitivo; intuição usada pelo analista que tateia subliminarmente em direção a uma Gestalt -, teríamos uma definição centrada na função receptiva, que, embora diferente, recorda o que mais atrás, alegoricamente, indicamos com o Jano Bifronte, isto é, uma função que interliga os processos primários com os secundários, intermediária entre o pré-verbal e o verbal.

Após estas variadas afirmações de que intuição isto", "é aquilo", "não é isto", "não é aquilo", perguntamo-nos perplexos: "Mas, afinal, o que é que ela é?"

Na antiquíssima historieta do elefante apalpado por várias pessoas cegas que o descrevem parcialmente, conforme vão tocando a tromba, o rabo, a orelha ou o traseiro, alerta-se para o perigo de definir o todo pela parte, sem se alcançar uma noção mais sincrética. Tratando-se de intuição, tudo se complica mais por ser ela "impalpável". Nem sabemos, ao certo, se se trata de um único "bicho", com vários atributos, ou de diversos "bichos", juntos, que estariam sendo misturados em nossas "apalpadelas". A isto se acrescenta o fato de que os que "tocam" nesse conceito, tão vagamente definido, frequentemente falam, entre si, línguas diversas, ou então alheiam-se diante daquilo que estaria comunicando um outro pesquisador. Daí cada um correr o risco de só se satisfazer com sua própria "verdade".

Diante destas várias "receitas" do que é ou não a função intuitiva, e em decorrência desta multiplicidade de opiniões diversas, consideramos ter, pelo menos, o direito a uma escolha, baseando-nos, contemporaneamente, em nossas experiências vivenciais e em nossas meditações (enquanto aguardamos talvez uma noção mais segura). Embora consideremos valiosas as contribuições da psicologia do self,quando nos aconselha a usar nossa empatia para decifrar qual função o paciente está necessitando que desempenhemos a seu lado, pensamos ser um tanto restritiva sua descrição de intuição (utilizada nela e que foi retirada do Glossary [Moore & Fine, 1967]). O termo intuição tem, para nós, um sentido mais amplo e profundo do que simplesmente "compartilhar ideias". Trata-se, a nosso ver, de um conceito próximo ao sugerido por Bion e quase globalmente esboçado na definição que tentamos à página 171. Baseia-se também na etimologia do termo (in = em, dentro; tuitus = particípio passado de tueri = olhar), que significa portanto "ver dentro [...], especialmente com o olho da mente, que de imediato apreende" (Pianigliani, 1942). Escolheriamos, então, esta definição mais abrangente por permitir a inclusão dos vários momentos de captação de verdades latentes: não somente do analista em relação ao seu paciente, mas também deste, intuindo, decifrando verdades de seu terapeuta; não somente durante as sessões de análise, mas em outras situações interpessoais; não somente nestas, mas também nas ciências exatas ou na arte ("arte é intuição", afirma Benedetto Croce [1923]), quando uma mente particularmente aguçada, de imediato, apreende o que estava ali, mas que teria permanecido ignorado sem o "olhar dentro" da função intuitiva.

Num próximo artigo (que trará exemplos de nossa prática clinica ou amavelmente fornecidos por colegas), pretendemos indicar ser a intuição "lacuna técnica em psicanálise", completando esta pequena contribuição na qual nos limitamos a apontar ser a intuição um conceito lacunar em nossa literatura psicanalitica.Antes de terminar este trabalho, queremos agradecer aos colegas e amigos Cecília Montag Hirchzon, Heloísa Berlinck de Barros, Luisiana Giovannini Servadio, Luiz Miller de Paiva, Waldemar Zusman e Luciano Marcondes Godoy, que muito nos ajudaram a completá-lo, fornecendo indicações bibliográficas e comentários. Também, Amazonas Alves Lima, que o revisou, e Sonia Maria Monteiro Alves, que o datilografou.

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 1985: Revista Brasileira de Psicanálise, 19(1),33-68.

2 Jung usa o conceito de irracional não no sentido de antirracional, mas de extrarracional, isto é, aquilo que não se baseia na razão.

3 Expressão francesa que tem mais ou menos o sentido de balançar o coreto.

4 Jano Bifronte era uma divindade romana representada com duas cabeças justapostas, cada uma olhando para uma direção. O nome provinha do termo ianus, usado para indicar qualquer abertura que punha em comunicação dois lugares. No calendário, o deus da passagem de um lugar ao outro tornou-se o deus da passagem de um tempo ao outro. E como cada ianus é, no espaço, uma entrada, assim, no tempo, era um princípio. Daí Jano passou a presidir as manifestações que significavam um início, como o primeiro mês do ano (januarius). Comparamos a função intuitiva a Jano pela possibilidade dela e dele de olhar simultaneamente em duas direções opostas. A efígie desta divindade bifronte, posta nos muros, arcos e encruzilhadas de Roma, indicava as direções oriente-ocidente (os pontos cardeais, quando os rostos justapostos eram quatro), tendo função orientativa central entre estes opostos. Contudo, poderiamos encontrar outras semelhanças -a falta de aceitação universal de ambos, por exemplo. Realmente, Jano Bifronte não teve nenhum culto em qualquer outra localidade fora de Roma, nunca teve um sacerdote. Só mais tarde, foi encarregado um rex sacrorum de algum ato de seu culto. Não teve nenhum edifício dedicado a sua religião. Só bem mais tarde, em 260 a.C., Milazzo erigiu-lhe um templo. Além disso, se Jano tornou-se conhecido, foi sobretudo na prática diária dos intercâmbios interpessoais (de maneira análoga ao que ocorre com a intuição), por ter sido representado no mais antigo tipo numismático, o asse, símbolo da unidade da moeda latina conservada durante toda a era republicana.

 

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