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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016
EM PAUTA
A realidade indistinguível1
The indistinguishable reality
La realidad indistinguible
Fabio Herrmann (in memoriam)
Médico, docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), membro efetivo e analista com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Os problemas psicanalíticos mais comuns requerem, não raro, os mais inusuais processos de demonstração. Este texto deve ser lido como uma ficção teórica, bem assim as pessoas, locais, situações, entidades e teorias mencionados, em que qualquer semelhança com figuras reais será mera coincidência, a menos que não o seja. De mais a mais, coincidência é quando duas realidades se encontram de maneira indistinguível.
Palavras-chave: coincidência; obra de arte; realidade psíquica.
ABSTRACT
The most common psychoanalytic issues often require the most unusual demonstration processes. This paper as well as the mentioned people, places, situations, entities, and theories should be read as a theoretic fiction, in which any resemblance to actual figures is purely coincidental, except if it is not. Moreover, coincidence happens when two realities meet each other in an indistinguishable way.
Keywords: coincidence; artwork; psychic reality.
RESUMEN
Los problemas psicoanalíticos más comunes requieren, a menudo, los procesos de demostración más inusuales. Este texto debe ser leído como una ficción teórica, así como las personas, locales, situaciones, entidades y teorías mencionados, en los que cualquier semejanza con figuras reales será una mera coincidencia, a menos que no lo sea. Por otra parte, coincidencia es cuando dos realidades se encuentran de manera indistinguible.
Palabras clave: coincidencia; obra de arte; realidad psíquica.
Alguns críticos consideram que a única pintura significativa de Lukas van de Velde, o mais obscuro e enigmático membro da ilustre família de artistas holandeses, tenha sido seu assim chamado Autorretrato,lamentavelmente perdido no incêndio que consumiu a casa do pintor uns três meses após sua morte, ocorrida em setembro de 1635. Outros ainda opinam, atendo-se à mais fria objetividade empírica, que este foi o único trabalho de sua obcecada vida. Com efeito, à parte os esboços monótonos que, em geral, não se consideram merecedores de figurar no acervo exposto dos museus especializados e permanecem confinados em sonolentos porões, vez por outra mencionados como mera curiosidade por algum scholar, não se conhece outro quadro qualquer que se lhe possa atribuir com certa probabilidade.
Tais esboços apresentam detalhes do que se crê ter sido seu ateliê, na cidadezinha de R., próxima a Leyden. A mesinha de canto, por exemplo, com seu jarro de flores pousado sobre uma toalha rendada, figura em nada menos de quinze esboços, sob todas as luzes imagináveis, ostentando rosas, anêmonas, margaridas, flores estivais e de outono, exuberantes ou secas - e duas vezes vazio o jarro e à luz mais mortiça de quantas se haja valido a pintura de interiores, sugerindo que o artista prosseguia sua preparação com iluminação natural também durante o inverno. Contam-se apenas cinco portas traseiras, sempre acanhadas e entreabertas, permitindo que se vislumbre uma ponta de tapete na sala vizinha, mas, em compensação, a maçaneta da porta é objeto de doze esboços conhecidos. Certos desenhos a carvão ocupam-se tão somente da perspectiva geométrica do canto do ateliê, que com tanta ansiedade Lukas desejava capturar, e são anotados, incompreensivelmente para nós, numa escrita fina e precisa, com indicações de hora e posição, testemunhando os diferentes ângulos de visão do pintor à medida que reposicionava seu cavalete. Mais que tudo, todavia, impressiona a infindável série de mãos direitas empunhando o pincel, sempre retratadas no ato de golpear a tela decididamente, porém corrigidas e corrigidas, o que lhes confere a característica algumas vezes descrita como decisão hesitante. Não cabem dúvidas de que seja a do próprio Lukas, e a hipótese mais sensata é a que atribui ao autor a intenção de fixar o movimento de sua mão no ato de pintar a própria mão. Curiosamente, não se conhecem esboços do artista de corpo inteiro, figura que afinal não deveria estar ausente num autorretrato.
O interesse pela obra de Lukas van de Velde haveria de renascer brevemente quando, há coisa de três anos, descobriu-se aquilo que passou a ser chamado Grande esboço, quando das obras de restauração do imponente palácio que domina a vilazinha de Č.-K., na Boêmia meridional. Um pequeno quarto de serviçais foi então desobstruído, exatamente na entrada da galeria que leva do corpo do castelo aos jardins que coroam o elevado penhasco posterior. Lá, durante mais de dez anos, vivera um certo Jakob Macreus, discípulo de Lukas, enquanto executava a comissão dos castelões, que lhe propuseram fazer uma série de retratos imaginários de ancestrais da família, em paramentos de cruzados, projetados para ornar a galeria baixa e outorgar aos novos possuidores da mansão senhorial a antiguidade e a nobreza que talvez sentissem faltar. O quarto é pequeno e escuro, mas a visão sobre o rio Vltava, o antigo Moldavia, compensa largamente a escassez de conforto. Da janela estreita, quase uma seteira, que também estava obstruída quando do início das obras, pode-se admirar a estrutura maciça da ponte de pedra que liga os dois penhascos, aquele que sustenta o castelo e o detrás, ocupado pelo parque, ponte ao feitio de aqueduto romano, composta por três ordens de arcos superpostos. O rio ali é alegre e estreito, quase um riacho, mas bordejado de árvores e, hoje, navegado por turistas austríacos que acorrem às corredeiras para praticar canoagem.
O quartinho nada continha senão um catre e um baú de roupas, mas dentro deste último encontrou-se, enrolada e ainda em razoável estado de conservação, uma tela de 80 cm de largura por 1 m e 20 cm de altura que constitui a maior aproximação a que já se chegou do importante Autorretrato de Lukas van de Velde. O quadro não está assinado, mas isto não oferece qualquer óbice para a identificação da obra, uma vez que nele estão reunidos todos os elementos constantes dos esboços. Vê-se o canto direito de um aposento razoavelmente espaçoso, com toda a certeza uma sala de visitas convertida em estúdio. Na parede lateral, abre-se a janela, protegida por delgada cortina, que deixa filtrar uma luz primaveril sobre o vaso na mesa cantoneira, agora exibindo um ramalhete de flores silvestres, azuis e amarelas, que datam a feitura provável da tela para os primeiros meses quentes do ano. Ao lado esquerdo da mesa, a tão conhecida porta entreaberta, com sua curiosa maçaneta de gomos, exatamente pintada como no melhor dos esboços. As paredes são ocres e um tanto descascadas pelo tempo; no entanto, o chão de tábuas corridas parece meticulosamente limpo e encerado. No primeiro plano, como seria de esperar, figura o cavalete sustentando a tela. Esta foi pintada com a precisão de um acabado miniaturista, retratando a mesma cena do quadro principal em tanto pormenor que mesmo a tela dentro da tela repete fielmente a cena, ainda quando examinada com uma lupa.
À frente da tela, mais ou menos à altura da trava horizontal do cavalete, mergulha, como que vinda de fora, a mão do pintor, empunhando o pincel mais fino, com o qual parece retocar uma última vez o punho de renda da mão retratada, aprontando-se para iniciar o desenho do braço. Mas não há braço nem corpo. O exame radiográfico do retrato não revelou, aliás, qualquer tentativa de fazer figurar o pintor em seu Autorretrato. O que apareceu, isso sim, foi uma superposição absurda de pequenas correções, sobretudo notáveis no desenho das flores: supressão de algumas pétalas, correção da forma, do lugar e até da coloração de outras, como se Lukas desejasse ser obstinadamente fiel à deterioração que o tempo despendido no trabalho ia cobrando de seu ramalhete. É interessante notar também que a cada correção do ramalhete corresponde idêntica correção, extremamente custosa, daquele que aparece sobre a tela retratada.
Por esta razão, quem sabe, um dos primeiros estudos sérios do Grande esboçosugeria a necessidade de um exame microscópico das sucessivas telas, a que aparece no quadro, mas também aquelas que figuram nesta última, uma dentro da outra, a fim de detectar quantas vezes a mesma cena se repete. Infelizmente, o fato de o quadro ter sido enrolado e desta maneira ter viajado por metade da Europa, além de haver assim permanecido por mais de trezentos anos, fez com que a pintura rachasse em muitos pontos, tornando ineficaz qualquer tentativa de microscopia mais acurada. Tão cedo revelou-se a impossibilidade, surgiram interpretações perfeitamente visionárias do Grande esboço. A mais curiosa delas propunha que o retrato de Lukas devia aparecer defronte a seu cavalete, porém apenas na última das telas embutidas; não faltou, evidentemente, quem sugerisse que o pintor havia sido engolido pelo quadro a que dedicara a vida, não tendo sequer morrido, mas que estaria procurando repintar-se, de dentro para fora de seu quadro, tela após tela, da menor para a sucessivamente maior, e assim por diante, ao longo de três séculos e meio de insano e vão labor.
Esta rebuscada história nunca teria atraído minha atenção, não fora por um telefonema que recebi de meu amigo Jíři Vorísek, há poucas semanas, em Praga. Havíamo-nos conhecido no Congresso Internacional de Roma, quando ele me presenteou com alguns de seus trabalhos. Além de bem-dotado para a música, como tantos tchecos, e descendente longínquo do célebre compositor, a curiosidade de seu temperamento arrasta-o para quantos mistérios nossa titubeante realidade confronta o espírito humano. Seus escritos sobre a psicanálise da obra de arte, em particular, renderam-lhe alguma notoriedade e muitas suspeitas dos meios oficiais, pela originalidade de seus pontos de vista e estranheza de interesses. Não recordo uma só interpretação sua que fosse possível classificar entre as grandes correntes que dividem a psicanálise atual. O problema da realidade fascina-o desde há muito e, como este é também um dos centros de minha preocupação, nossas primeiras conversas e a correspondência que se seguiu foram sempre extremamente estimulantes para mim.
Havia-o avisado que passaria por Praga, a caminho do Congresso de Amsterdam, porém sem muita esperança de encontrá-lo, pois a ocasião coincidia com suas férias. É fácil compreender a excitação em que ficamos minha mulher e eu quando recebemos seu telefonema, em nosso quarto no velho Hotel Jalta, na Praça Venceslau. Ele nos convidava para uma cerveja às sete da tarde, no U svatého Tomáse, e, com sua desconcertante polidez, pedia-me repetidas desculpas por ter de nos submeter à leitura de algumas notas sobre o Autorretratode Lukas van de Velde, que cogitava apresentar em São Francisco, daí a dois anos, como trabalho livre, dentro do tema realidade psíquica.
Nossa curiosidade era tanta que às quatro já saíamos do hotel e, batendo pernas pela Cidade Velha, quando nos demos conta, já estávamos cruzando a Ponte Carlos, sob um céu francamente ameaçador. Antes que a chuva desabasse, entramos na Igreja de São Nicolau, onde nosso amigo garantira que poderíamos assistir a um concerto inesquecível. De fato, a enorme igreja na penumbra, as grandes estátuas barrocas de bispos e papas mirando o altar e o órgão que acompanhava uma soprano em árias de Bach e Corelli logo nos fizeram esquecer o mau tempo, levando-nos ao estado de ânimo fluido e sonhador que, como ele mesmo já devia ter antecipado, haveria de facilitar a escuta de seu relato.
Às sete, atravessamos a Praça Malostranské e entramos na antiga cervejaria. Ele já nos esperava, numa mesa sossegada, bem ao fundo, sob os arcos góticos, protegida da algazarra dos turistas e dos praguenses que se misturavam nas longas mesas rústicas de madeira do salão principal. Munidos cada um de meio litro da maravilhosa cerveja escura, que ainda lá se fabrica exclusivamente para consumo local, e de um cálice suado de becherovka geladíssima, mergulhamos diretamente em sua história.
"Como vocês sabem", começou, "venho interessando-me por aquele doido pintor desde que descobriram o Grande esboço aqui em meu país. Até publiquei umas notas num pequeno jornal de arte.
Provavelmente por causa disso, no mês passado, o diretor do Departamento de Conservação Artística mandou chamar-me. Ele queria uma opinião psiquiátrica, e não sobre qualquer de seus subordinados, que bem a mereceriam, mas sobre Jakob Macreus!
"Acontece que a tela não foi a única coisa encontrada no baú de roupas velhas em Č.-K. Havia também um caderno de notas. Parece que durante os anos que Jakob passou a pintar no castelo, seu mestre esteve constantemente a escrever-lhe, dando notícias de suas pesquisas para a elaboração do Autorretrato, pois, pelo que se depreende das notas, não só o projeto era o único de Lukas como Jakob foi seu único discípulo e confidente.
"Pois bem. O caderno de Jakob não endossa nenhuma dessas bobagens de o pintor ter sido engolido por seu quadro, é claro. Aliás, se tivesse de ser engolido, não o seria pelo esboço, mas pela obra final, não acham?"
Concordamos de imediato. Esse tipo de solução fantástica para as coisas inquietantes sempre me pareceu de ridículo mau gosto, simples falta de capacidade para deixar que um mistério permaneça misterioso. Foi isto que lhe respondi.
Jíři concordou: "Justamente. E no entanto... Não diria que a ideia se tenha tornado mais razoável, porém parece ter acertado nalgo, embora por vias tortas. O fato é que nunca houve um óleo final chamado Autorretrato. Houve um projeto, e o Grande esboço era, pelo que tudo leva a crer, o modelo exato do que Lukas van de Velde tinha na cabeça. Só que o quadro devia ser muito maior, monumental, uma Ronda noturna, como a que Rembrandt pintaria poucos anos depois, quem sabe até maior. Na verdade, Lukas projetara-o para ter tamanho natural. Além disso, devia ser sincrônico, exprimir cada transformação dos objetos da sala, as flores sobretudo, mas também a luz e as ondulações da cortina, de forma que um observador não pudesse distinguir o quadro da realidade.
"Ora, é claro que o observador da cena dificilmente poderia ser outro que não o próprio Lukas, caso contrário o quadro teria de ser repintado continuamente, a cada nova visita. Isso, porém, não o embaraçou. Combinara com Jakob que, no momento de dar a última pincelada, ele estaria a seu lado. Seria uma vez só, um instante privilegiado de contemplação, que valeria, porém, o esforço de uma vida. Por isso, correspondiam-se amiúde, enquanto Jakob trabalhava em sua empreitada medíocre. Como Lukas vivia totalmente só e nada devia ganhar do trabalho, é provável que lhe enviasse quase todo o dinheiro que recebia, a fim de sustentar a maravilhosa obsessão do mestre.
"Havia um problema, porém: Lukas não conseguia decidir a forma de fazer-se representar na obra-prima. Em qualquer posição em que se pusesse, seu vulto encobriria parte dos objetos da tela, sem que o mesmo estivesse ocorrendo com os objetos da sala. Só isto já denunciava a impossibilidade da obra indistinguível."
A essa altura fomos interrompidos pela chegada de uma farta travessa de ganso assado, especialidade regional que atacamos em silêncio. A história, entretanto, dava voltas à minha cabeça. Por fim, não resisti à pergunta óbvia: "Diga-me, Jíři, esse nosso Lukas poderia ser um tanto amalucado, mas com certeza não era estúpido. Ninguém pode confundir uma pintura com uma sala, se está dentro da sala. Aliás, como enfiar na sala uma tela do tamanho da sala?"
Jíři, não levantou os olhos do prato, enquanto trabalhava com minúcia de cirurgião a pele crocante de uma coxa, mas respondeu meditativo: "Também pensei nisso e não concluí nada. Minha hipótese é que, num primeiro momento, o projeto ainda não estivesse completamente claro. Mas enquanto trabalhava nos esboços, procurando veracidade absoluta, a ideia de uma obra indistinguível deve ter tomado conta do pintor. Todo autorretrato aspira mais ou menos a isso: é obra e espelho. Só que Lukas quis levar a proposição a sua última e lógica consequência. Contudo, uma representação que não se possa distinguir da realidade será a própria realidade. Todavia, se a representação for mesmo a realidade, já não há o que representar, não é mesmo?"
Assenti impaciente: "E nesse caso..."
Ele prosseguiu: "Nesse caso, é forçoso que a indistinguibilidade seja posicional. Numa posição é indistinguível, noutra não. Isso significa que a posição em que a representação não se pode distinguir da realidade define exatamente o autor da representação, o sujeito, e com tanta exatidão que este não se pode confundir com nenhum outro. Da posição de Lukas, o quadro que pintava era exatamente a sala que via como pintor, embora não como residente da casa. Afinal, ele tinha outras vias de contato com o jarro de flores, por exemplo, devia trocar a água e, de quando em quando, substituir as próprias flores. Também andava pela sala, limpava ou via alguém limpar os móveis etc. Porém, como pintor, a sala era apenas seu modelo. O problema insolúvel, se não me engano, foi só o de retratar-se na pintura. Ele simplesmente não tinha lugar possível. Isto é: o quadro definia o pintor, mas este não se podia meter dentro dele, sob pena de termos dois Lukas - um, no quadro, outro, o próprio."
A ideia encantou-me, e sugeri-lhe que isto daria um trabalho psicanalítico de primeira ordem, pois a situação me parecia definir perfeitamente a condição de realidade de uma sessão, em que faltam outros modos de acesso à realidade que não associações e interpretação. Quantas vezes nossos pacientes não se esforçam desesperadamente para definir-se, explicam longamente como são e como desejariam ser, criticam-nos por não os vermos com seus próprios olhos. Temos de ser mais pacientes que os pacientes durante essa inevitável fase da análise, pois faltam palavras para explicar que o analisando está inteiro no ato de dizer o que diz, fale ou não de si; e, tal como o pintor que é definido pelo quadro que está pintando, sem que precise para tanto enfiar-se nele, tudo aquilo que diz o define, sendo até levemente autocontraditório querer explicar quem é.
Jíři interrompeu o que me parecia uma promissora conferência, concordando taxativamente.
"Isso é exatamente o que pensei colocar em meu trabalho sobre realidade psíquica. Psíquica é a realidade mesma, não há uma segunda versão interna. A de fora já é criação psíquica. E, ao mesmo tempo, é a realidade objetiva, pelo menos enquanto ambas são posicionalmente indistinguíveis. Depois, a gente pode dizer que se enganou ou mudar de ideia. Mas tudo o que houve no segundo momento já foi um cotejo entre uma e outra versões psíquicas da realidade. Ora, por outro lado, não teria cabimento dizer que uma representação é indistinguível da realidade e negar a existência da realidade. Logo, sobra um terrível paradoxo, porque toda realidade é sempre representação. Representação de quê? Meu ponto é que este insolúvel paradoxo impulsiona o processo analítico, criando novas representações indistinguíveis, mas também impulsiona a cultura humana como um todo, em especial a arte.
"Lukas era um homem lido. Provavelmente conhecia algo da filosofia medieval e não devia estar alheio aos problemas do nominalismo e do realismo. E era um pintor sintonizado com seu tempo. Seus parentes e contemporâneos estavam precisamente trazendo a pintura para o dia a dia, retratando paisagens, interiores burgueses e os próprios donos do dinheiro. As duas Companhias das Índias acabavam de ser criadas. Os holandeses haviam-se libertado da Espanha e estavam inventando um mundo onde o negócio substituía o rei e as coisas valiam por elas mesmas, não eram mais símbolo de qualquer outra realidade suprema. Para ele não seria, pois, repugnante a ideia de que o pintor nada mais é que seu quadro.
"Assim, lentamente, deve ter germinado a fantasia de um autorretrato exatíssimo em que o retratado não podia figurar, mas onde também não era necessário. Só que então as ideias puseram-se a galope. Para que seria preciso usar uma tela? Bastava a pintura. E, no verão de 1635, logo após ter completado o Grande esboço, pelo que se depreende das notas de Jakob, ele pôs-se a pintar os objetos da sala minuciosamente, cobrindo a superfície da mesa, das cadeiras, o chão e o teto, cortina e janela de uma camada finíssima de tinta que reproduzia perfeitamente a cor original. Pintou as paredes e reproduziu meticulosamente o descascado. Até as flores repintaria no fim, imaginem o trabalho!
"Talvez o Grande esboço visasse à produção do quadro monumental. Desconfio, porém, que já era um esboço do primeiro hapenning artístico de que se tem notícia. Por uns tempos, pensava ele ainda em enquadrar a própria sala e consultou seu fornecedor habitual sobre o preço da moldura, que deveria correr pelas paredes, isolando o canto escolhido. Depois desistiu da ideia, não tanto pelo preço e pelas dificuldades práticas, mas por se convencer de que a emolduração seria supérflua. O fato mesmo de ter repintado a sala fazia dela uma representação artística, já agora, esperava ele, indistinguível da realidade.
"De tudo isso temos indícios nas notas de Jakob. Os planos são descritos com entusiasmo, mas não se pode dizer que ele conseguisse acompanhar o pensamento do mestre. No máximo, acreditava estar assistindo a um evento extraordinário, que haveria de mudar o curso da história da arte. Em momento algum julgou Lukas um louco. Tinha por ele o máximo respeito.
"Não assim nosso diretor do Departamento de Conservação Artística, que praticamente tentou convencer-me a passar um certificado de insanidade mental retrospectivo a Jakob Macreus. Ele queria que eu desacreditasse o caderno de notas como simples fantasia delirante, protegendo a convicção estabelecida na existência de uma obra-prima normal, destruída num incêndio, de que nosso Grande esboço seria o precioso e único remanescente. As notas estão trancadas a sete chaves no Departamento, pois teme-se com razão que, divulgando-as, acabemos por desencadear uma peregrinação de adolescentes drogados a Č.-K., em busca de novo objeto de adoração psicodélica, o que certamente espantaria os turistas austríacos. Com isso, nem sei se é prudente publicar meu pequeno ensaio. Sem provas e tendo de fazer tudo parecer uma ficção, além de ficar malvisto aqui, o diretor de algum departamento de conservação psicanalítica que porventura exista pode vir a considerar meu caso igualmente problemático. Com a abertura, estamos todos meio temerosos dessa enxurrada de turistas jovens, saudosos de Woodstock. Aqui tudo é tão barato... Você certamente viu o espetáculo na Ponte Carlos, parece coisa de nossa juventude, não da deles.
"De um lado, o Departamento, de outro, o interesse da ipa pela Europa Central. Ninguém quer um escândalo a esta altura dos acontecimentos. Por isso fiquei aqui, esperando-o, enquanto minha mulher e as crianças foram para Paris. Queria falar com você. Que acha, arrisco?"
Respondi-lhe que, se fosse ele, também ficaria em dúvida. O Grupo de Estudos de Praga ainda não fora reconhecido, e os futuros membros haviam de mostrarle cidadãos acima de qualquer suspeita. Mas, e a história, ninguém a conheceria? Além disso, sua teoria da indistinguibilidade estaria perdida, certamente uma pena para todos os terapeutas, analistas ou não.
Foi então que Jíři pediu-me o favor estranho de escrever sua descoberta como se fosse uma história inventada, mantendo em essência os fatos e certas referências, mas alterando alguns nomes e locais, tal como o teria feito num relato clínico, para preservar sua sobrevivência intelectual. A minha, conforme ele aduziu com a mesma polida objetividade com que nos convidara a escutá-lo, não correria demasiados riscos. Suas ideias eram suficientemente parecidas às minhas para que ninguém suspeitasse de uma inocente ficção conceitual. Demais, sempre poderia eu escrevê-la num estilo ambíguo, entre testemunhal e fictício, para proteger-me da eventualidade remota de que as notas de Jakob fossem divulgadas de repente e, com elas, viesse à luz também a autoria da hipótese teórica.
Comecei a ceder a seus argumentos. De qualquer modo, a fantasia de um pintor hiper-realista bien avant la lettre fascinava-me tanto quanto a ele. E, se algum dia fosse eu acusado de plágio ou de apropriação indébita, sempre poderia defender-me com o próprio conceito de indistinguibi-lidade. Como distinguir teoria e ficção num primeiro momento? Uma ficção, sustentada por largo tempo, costuma criar a realidade que a transforma por fim em teoria. Exemplos não faltam, dentro e fora da psicanálise. Até que isso ocorresse, se viesse a ocorrer, sua teoria não se pode-ria distinguir de um inocente conto; logo, seria realmente um conto, por definição de indistinguibilidade.
Para resolver-me, sobrava, entretanto, uma última questão. Como fechar a história de Lukas e Jakob, dos quais ninguém mais ouvira falar depois do ano da graça de 1635? Lukas já era um ancião e, ao que se sabe, morrera em seguida, mas o discípulo não teria mais de 40 anos e, mesmo sem ser brilhante, algum traço deveria ter deixado. Pelo menos em Č.-K., onde haviam ficado suas coisas e uma encomenda por completar, alguém devia ter inquirido de seu paradeiro.
"Pois perguntaram, mandaram cartas e mais cartas. Parece que aqueles esnobes gostavam realmente dos retratos de seus antepassados em roupa de cruzados e queriam ter a coleção completa, incluindo algumas figuras históricas sem qualquer parentesco remoto com a família. Na verdade, achavam Jakob um gênio, seu gênio artístico particular. Mas ele sumiu de todo, nunca respondeu a uma carta sequer nem pôde ser localizado pelas autoridades de R., a cidadezinha onde estudara com Lukas. A história é de mistérios realmente, daquelas antigas, um pouco de Conan Doyle e muito de Borges. Por que você não a escreve no rigor do estilo? Linguagem de velha novela detetivesca, um intrincado problema intelectual, um pouco de teoria, um toque de ambiente gótico - quem sabe possa até mencionar nosso jantar na cervejaria: quem vai saber se U Tomase existe ou não? Só os tchecos, e estes não vão ler... Olha que o Eco ficou rico mais ou menos com os mesmos ingredientes."
Minha mulher apreciou o desafio, e confesso que me deixei seduzir. Não levo jeito de contista, mas como falso ficcionista talvez pudesse me sair bem, como falso autor de ficção e falso teórico, a propósito. Mas ainda me faltava o fim.
Jíři concedeu-mo relutante.
"Se você quer saber que escuros devaneios tive, posso contar, mas a responsabilidade é sua se os puser no papel. Imagine que Lukas tenha escrito uma última carta a Jakob, pouco antes de morrer, declarando sua obra completa. Este sairia correndo, sabendo da saúde periclitante do mestre, para não perder o instante de contemplação suprema, tão longamente preparada. Deixaria seus trastes e mesmo a tela, que já não tinha maior importância, até o caderno de notas, pois estava de partida para a descoberta da pintura final, do retrato falado da coisa em si, como se pode dizer. Pensava em voltar logo, transformado num artista de verdade. Que sonhos de glória deve ter alimentado no caminho! Pelos meus cálculos, a viagem a R. há de ter-lhe custado muito mais de um mês. Contando a demora da carta de Lukas, isso perfaria quase exatamente os três meses entre sua morte e o incêndio do ateliê.
"Digamos ainda que Lukas van de Velde tenha falecido quase exatamente depois de postar a carta, ou seja, mais ou menos no dia em que dera por completo o ensaio geral de sua obra. A coincidência não é tão fantástica, uma vez que o detalhismo absurdo do projeto, que levava às últimas consequências a mania de exatidão da pintura dos Países Baixos, havia de exigir de qualquer modo manutenção contínua. Lukas ainda teria de dar os últimos retoques quando Jakob chegasse, no mínimo trocar e repintar as flores do vaso. Declarar completa a pintura podia ser um sinal de exaustão. Por outro lado, morrendo o artista, a pintura ficou automaticamente terminada. Ou, se vocês preferem acreditar em efeitos inconscientes, pode ter sido a própria Psique da Arte, invocada por Lukas, quem interveio para prevenir a obscenidade que se perpetrava: o desmascaramento prático da contemplação estética.
"Se virmos as coisas por esse ângulo, Jakob também teria funcionado como instrumento da mesma força de interdição. Pensem um pouco. Nada mais esperava o aprendiz em R., senão uma sala meticulosamente pintada para parecer que o não fora. Mas as flores já estariam murchas, o pó acumulado sobre os móveis. Seria como visitar um palco depois de acabada a peça, o brilho da criação se perdera, sem nunca ter sido admirado por ele. Isso já de si seria intolerável. O mais grave golpe viria, porventura, da falta do elemento principal do Grande esboço, a mão do artista, enterrada, ausente. Que autorretrato seria aquele sem a mão de Lukas figurando em primeiro plano? Frustrado, enfurecido, Jakob cumpriu então, imagino que sem qualquer um dos dois o suspeitar, o último desejo do mestre incendiando sua casa. Depois, pode até se ter engajado na expedição de Nassau e ido para o Brasil. Vocês riem? Por que não? O tempo alcançaria para tanto. Além de Frans Post, outros pintores menores devem ter sido contratados. Vi uma exposição de brasilianas nalguma parte e havia um bocado de quadros anônimos. Se bem que, se fosse ele, nunca mais me aproximaria de uma tela ou de um pincel."
A noite já caíra quando deixamos o restaurante, com um litro e meio de cerveja e umas três becherovka dentro de cada um. Caminhamos em silêncio até o hotel, pelas ruas estreitas da Starometská. Só na despedida, meu amigo Jíři voltou ao assunto.
"Veja. Lukas permaneceu em sua obra; não havia como entrar mais ou sair dela. Jakob, este sim, foi engolido, e talvez ainda esteja tentando sair de dentro das telas embutidas uma na outra. Só me pergunto é que papel farei eu nessa história se algum dia você a escrever. Transferência gera realidade, e é mais seguro que psicanalistas não inventem. Talvez não soubesse distinguir-me da personagem que estamos criando, por exemplo. O pior é que nossa situação tem um vago sabor de autorretrato, tem duplos demais esta história toda. Prometa-me que a publica em sua terra, que me faz saber das reações, mas que em hipótese alguma me deixará pôr os olhos em cima dela. Vivendo na terra de Kafka, jamais consigo estar completamente seguro de como vou acordar pela manhã."
Nota
1 Trabalho original publicado em 1993: Revista Brasileira de Psicanálise, 27(4),739-750.