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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

COM A PALAVRA, OS EX-EDITORES

 

Nas portas da liberdade

 

 

David Léo Levisky

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Especialista em psicanálise de crianças e adolescentes. Médico psiquiatra com especialização na infância. Doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de inúmeros livros técnicos e romances. Editor da Revista Brasileira de Psicanálise de 1987 a 1989

Correspondência

 

 

A ideia da editora da Revista Brasileira de Psicanálise, Silvana Rea, de promover um historial da revista gerou entusiasmo e um sentimento de reconhecimento. Oportunidade ímpar para relembrar momentos de tensão, desafio e realização de um período longínquo, e até certo ponto esquecido, que graças ao estímulo dado se recupera.

Assumimos a superintendência da RBP ainda na gestão da querida Fajga Szterling, que dedicou anos de carinho e de conhecimento à coordenação da revista. Minha transição para a função de editor foi lenta. A época era difícil. Havia-se saído há pouco do período ditatorial, terminado em 1985. Durante longos anos, viveu-se a perda dos direitos humanos, da liberdade e das relações democráticas. O clima da ditadura e das relações hierárquicas verticais permeava os vários níveis das relações intersubjetivas e inclusive institucionais. As Sociedades psicanalíticas não estavam fora desse contexto, recebendo influências libertárias e impositivas.

A RBP não era distribuída a todos os psicanalistas como um produto do trabalho das quatro Sociedades que compunham a Associação Brasileira de Psicanálise: São Paulo, Rio de Janeiro (duas) e Porto Alegre. Ela era adquirida por assinatura por quem a desejasse, como forma de expressão da liberdade e do direito individual de cada um escolher. Impor a assinatura ou distribuí-la a todos era tido por alguns como uma manifestação ditatorial, levando a RBP a um estado de penúria. Com muito esforço de convencimento, conseguiu-se reverter esse pensamento e introduzir a revista como parte das atribuições representativas da ABP. Mediante pequena contribuição adicional à mensalidade, diferenciada para os que à época eram candidatos, conseguiu-se tirar a revista do fundo do poço.

Todos teriam voz e acesso aos conhecimentos e debates das diferentes ideias e correntes psicanalíticas, em uma época em que havia uma disputa entre os que defendiam a existência da "psicanálise verdadeira" contra a "psicanálise mundana", que fazia concessões. A técnica parecia prevalecer sobre as questões da variabilidade humana. Os pensamentos predominantes eram binários e distantes do pensamento complexo e multicêntrico, dominante na cultura pós-moderna e, consequentemente, na psicanálise.

Nossa gestão, portanto, pautou-se por uma questão basicamente de política de gestão. Explico melhor: procurou-se transformar a RBP num porta-voz da psicanálise brasileira. Inicialmente de propriedade da Sociedade de São Paulo, depois da ABP, para se tornar uma instituição representativa nacional, não apenas de fachada, mas de fato e de direito. Para isso foi necessário estabelecer critérios de linha editorial, de seleção de trabalhos, de redação, de distribuição, de indexação, até então muito ao sabor das amizades e tendências prevalentes de grupos de influência, para dar lugar, de forma democrática, representativa e criativa, à manifestação das vozes e atores da psicanálise nacional.

Durante o XI Congresso Brasileiro de Psicanálise, organizado pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, em Canela, outubro de 1987, conseguimos definir as diretrizes e a operacionalidade que norteou os passos da RBP, como fruto do encontro do corpo diretivo da RBP com representantes da ABP, das Sociedades componentes, do conselho editorial e redatores.

Como consequência, a RBP adquiriu corpo e condições para se tornar representante e porta-voz dos pensamentos psicanalíticos nacionais, ao seguir critérios internacionais de revistas científicas reconhecidas. Demos nova vida econômica à RBP e fomos, por isso, contemplados, durante quatro anos consecutivos, com verba específica para aprimoramento da revista graças ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/Finep).

Alguns colegas defendiam a aceitação irrestrita de trabalhos, alegando a pobreza da produção nacional. Uma atitude mais exigente era vista como fator que esvaziaria o interesse pela revista. Felizmente, prevaleceu a visão de critérios objetivos de qualidade na elaboração dos trabalhos, de seleção, do mérito e do esforço de aprimoramento dos autores em vários níveis (conceitual, redacional, originalidade, clareza) para se tornar o que é hoje a RBP.

Foi preciso um intenso e árduo trabalho de articulação, integração e coesão, nem sempre exitoso, diante de resistências pela manutenção do statu quo e da preservação de poderes. A RBP transformou-se num meio de livre expressão do pensamento psicanalítico, suas diferentes correntes em busca de qualidade conceitual, científica, redacional. Abriu portas para uma visão mais atual do pensamento, com maior integração entre psicanálise, cultura e suas múltiplas interfaces, sem perder o rigor clínico, científico, embasado em critérios conceituais articulados de maneira coerente e defensável pelos seus autores.

A RBP passou a ser entendida como pertencente a todos nós, um espaço para a expressão dos pensamentos originais e dos melhores trabalhos de cada Sociedade e de seus integrantes, ideia que norteou nossa gestão ao introduzirmos o contato direto com nossos colaboradores, esclarecendo, sugerindo e justificando a aceitação ou recusa dos textos. Procurou-se elevar o nível de respeito, confiança e seriedade entre autores e leitores, o que permitiu aumentar a qualidade das produções e ampliar o quadro de colaboradores e interesses dos leitores. Trabalhamos para a indexação da RBP.

Tivemos a oportunidade de criar o primeiro número nacional temático da RBP, voltado à psicanálise da criança, espaço geralmente preterido pelos psicanalistas da época como uma "psicanálise menor". Defendíamos ser fundamental a qualquer psicanalista ter vivido a experiência de analisar uma criança para se tornar um psicanalista pleno, divergindo completamente daqueles que achavam ser dispensável, pois acreditavam que ser analista é analisar a criança que cada um de nós carrega em si. São coisas distintas. Hoje, a formação do psicanalista abre espaço para esse nível de experiência complementar.

Outro número temático significativo da RBP foi sobre contratransferência, tema conflituoso que, para uns, era falta de análise e, para outros, uma oportunidade para se alcançar aspectos mais primitivos do inconsciente. Tive a honra de participar desse número com um trabalho intitulado "Inscrição mental pré-verbal e contratransferência", em que levantava a hipótese de que o acting out e outras manifestações corporais podiam ser utilizados como via de expressão de afetos primitivos e das primeiras representações mentais - a contratransferência como um instrumento importante e estruturante do psicanalista, na elaboração inconsciente e consciente, em suas tentativas de compreensão mobilizadas pela transferência do paciente.

Estabelecemos convênio com a bireme (Biblioteca Regional de Medicina - Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde) e assim tivemos acesso ao sistema lilacs (Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde).

Para concluir, nossa gestão redemocratizou a RBP; fez sua reabilitação econômico-financeira; atualizou equipamentos; estabeleceu uma rotina processual protocolada para avaliação dos artigos e orientação aos autores; regularizou sua distribuição; elaborou critérios e instituiu a procura constante de aprimoramento dos meios de seleção de trabalhos, da busca de especialistas colaboradores, para tornar a escolha mais adequada e representativa do movimento psicanalítico brasileiro; impessoalidade, tanto quanto possível; criatividade e pragmatismo quanto às questões emergentes da psicanálise nacional e do movimento internacional; promoveu-se a aproximação dos colegas e das Sociedades por meio de trocas científicas; utilizou-se das diferentes sessões disponíveis ao leitor, criando-se, inclusive, uma sessão de contrapontos, que abria o debate psicanalítico e o tornava público e participativo.

Foi, para este editor, um período de extraordinária experiência, pleno de motivação, desafios e criatividade na busca de alternativas, que deixou lastros de vivências pelas quais sou imensamente grato tanto à RBP quanto aos colegas que em mim depositaram sua confiança e estímulo. Hoje me orgulho de ver que pude contribuir, junto com minha equipe, para que a RBP se tornasse um prestigioso porta-voz da psicanálise brasileira como órgão a serviço da Febrapsi, ligada à Associação Psicanalítica Internacional (IPA).

 

 

Correspondência:
David Léo Levisky
Rua Bruno Lobo, 218, Butantã
05578-020 São Paulo, SP
Tel: 11 3628-8123
davidlevisky@terra.com.br

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