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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

COM A PALAVRA, OS EX-EDITORES

 

Nós, que nos amovamos tanto1

 

 

Paulo Cesar Sandler

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP). Psiquiatra no Instituto de Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IMRea) - FMUSP. Diretor-superintendente da Revista Brasileira de Psicanálise de 1987 a 1989

Correspondência

 

 

Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se - e depois reencontrar-se: pressuposto que se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma pessoa.

(Humano, demasiado humano, Friedrich Nietzsche)

Ex-editores elaborando sobre memórias: gentil solicitação, esta, de Silvana Rea, para comemorar meio século de publicação da Revista Brasileira de Psicanálise. Talvez, Silvana e sua equipe pensem que um "povo que não conhece sua história, condena-se a repeti-la" (Santayana, 1906/2005); além disto, o que não é publicado não consegue ser trabalho científico (Bion, 1992/2000) nem artístico. 50 anos... Coisa rara em nosso meio para periódicos científicos. O convite coincidiu com o falecimento de Ettore Scola, autor de parábolas essenciais sobre o existir humano. Algo que nós, psicanalistas, também tentamos. Dele, empresto o título deste artigo. Vou falar do número 2, volume 23 (1989), que trouxe novidades editoriais e de impressão:

■ Incluiu formulário destacável, antes usado apenas para angariar assinaturas, denominado Auxilie sua revista. Operacionalizava investigação estatística a respeito de interesses, inclinações, grau de informação, esperanças e mensurações de utilidade da publicação. Convidando enfaticamente o leitor a apresentar sua experiência com a RBP, sugeria: "Imagine-se como editor." Foi a primeira e até agora única pesquisa com tal amplitude e profundidade na RBP.2 Intencionava implantar um sistema que denominei Participação e Representatividade. Para futuros editores, proveria condições mais representativas. Baseei-me em constatação empírica, sobre a qual discorri em meu editorial para este mesmo número: preponderavam interesses da elite minoritária mandante, no movimento psicanalítico, às expensas de necessidades de leitores. A experiência mostrava que autores queriam ver seu trabalho impresso,3 mas pareciam não se importar se os trabalhos estavam sendo lidos:

A revista é para os autores que nela escrevem? Ou é para seus leitores, que a sustentam? Ou é para os dois? Em minha experiência, a Revista Brasileira de Psicanálise acabou se tornando, ao longo dos anos, uma revista para autores. O barco adernou [...] até que ponto pude contribuir para [...] não continuar a afundá-lo, como também [...] desaderná-lo? (1989b, p. 188)

■ Este número continha detalhadas normas para colaboradores, aprovadas pela SBPSP e pela ABP (Associação Brasileira de Psicanálise)4 para evitar pessoalismos travestidos de política;

Plano de trabalho, enfatizando pauta estável: artigos originais; traduções; contraponto: sessão inspirada em periódico de psiquiatria norte-americano - um colega comentava o trabalho de outro, orientado por crítica kantiana de métodos (criticismo), comum em ciência e epistemologia; resenhas de livros (estes dois, "feitos de modo profundo, crítico e analítico", evitando-se exercícios de eulogia); noticiário, "sob forma redacional jornalística, se possível, ilustrada com fotos" - tentando replicar minha experiência na Ide, quando tivemos representantes "cobrindo" ao vivo certos eventos; obituários; cartas dos leitores; "pelo menos um artigo" de psicanálise aplicada à filosofia, epistemologia, medicina e crítica literária; entrevistas; mesas-redondas "sobre temas relevantes promovidos pelos Departamentos Científicos das várias Sociedades [...] inovações na revista, retirando-a de seu papel de administrar a oferta espontânea de artigos - algo que tem deixado a RBP um tanto monótona e restrita"; e opinião do leitor.O plano contemplou números especiais, com monografias, artigos de revisão de cunho didático, mesas-redondas, simpósios, debates e números temáticos para abordar assuntos em profundidade, sob vários pontos de vista - o plano "preparando para o futuro", detalhando possiblidades de funcionar para a equipe: sua composição, política e critérios editoriais, enfatizando coerência interna e bibliografia dos artigos, evitando julgamentos de valor; seu relacionamento com a ABP e Sociedades componentes;

■ Meu editorial incluiu relatório sobre "situações recentes" (1989c, p. 352), que pode ser de interesse ainda nos dias de hoje; contou com o apoio do CNPq/Finep, raro na época, obtido principalmente pelo trabalho de David Léo Levisky; impressão a cores - leitores atuais dificilmente avaliarão o que foi isto em tempos de tipografia, antes da impressão computadorizada;

■ Notícias ilustradas sobre Sociedades não filiadas à ipa: escrevi sobre o Centro de Estudos Mario Martins, de Porto Alegre (1989a) - entidade exemplar de orientação clínica, fazendo serviço de utilidade pública, realizado por analistas, era atacada por alguns e apaixonadamente defendida por outros; foi embrião do que hoje é a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;

■ Publicação ampla e irrestrita, sem interferências ditas políticas ou ideológicas - assunto aprofundado no plano de trabalho. Alguém que coteje a gama de artigos publicados neste número perceberá a presença de autores nacionais e estrangeiros de todos os matizes.

Supondo que "elogio em boca própria é vitupério", substituí autopropagandas daquilo que pude fazer: registrei o que percebi não ter podido fazer, como conselho e alerta para o eventual futuro da RBP:

O que de verdadeiro [...] eu tenha podido fazer, em benefício dos leitores, do esforço, tempo e dinheiro gastos e também dos autores que se esforçaram por exprimir ideias por escrito e, acima de tudo, em prol de uma melhoria nos níveis científicos da comunicação escrita em psicanálise, haverá de se autoevidenciar por si e não precisa de propaganda. Se não apareceu por si mesmo. então, não foi feito. (1989b, p. 187)

Além da inflação desenfreada que a quase todos esmagava, havia outros determinantes históricos: (a) a imagem de psicanalistas brasileiros como não escritores: teriam produção escrita mínima, embora nunca minimalista; de 1949 até 1987, apenas dois autores - Virgínia Leone Bicudo e Alcyon Baer Bahia - puderam publicar no International Journal of Psychoanalysis;5 (b) a RBP, acossada por muitos, por parecer "excessivamente paulista", criava problemas. Por exemplo: por "compromisso político assumido anteriormente", tornou-se imperioso traduzir do inglês um artigo de Inaura Carneiro Leão. A equipe de redação dividiu-se: no impasse, resolvemos fazê-lo. A pedido de David, traduzi-o rapidamente, já que outros membros não se sentiam em condições de fazê-lo. Ao publicarmos a versão em português, a autora, profundamente desagradada, teria ordenado à editoria anterior - que insistiu para que nós assumíssemos o trabalho - que nãose publicasse o artigo, pois no entretempo "seria publicado no IJP". A diretoria da ABP movimentava-se para retirar a editoria de São Paulo, apoiando-se em argumentos racionalizados, mais típicos de juristas: "Nem sede a RBP possui!" Exemplifica o problema a notícia ilustrada com foto avisando sobre a ocupação de uma sala doada pela SBPSP: pela primeira vez, vendeu-se a revista em livrarias, para cobrir custos de mobiliário adequado.

 

A história acontece como tragédia; repete-se como farsa6

Scola espelha a realidade humana em uma história de ativistas lutando pela liberação da bella Italia do jugo de ditadura autoritária: organização grupal "demasiadamente humana". O autoritarismo ocupa a parte central numa curva de Gauss7 em que a democracia fica enjaulada nas extremidades. A intelligentsia julga que ditaduras constituem patologia social; a realidade histórica, plena de "ironias" (Deutscher, 1966/1968), revela que muitos dentre os que apregoam combatê-las, o fazem para instalar outra ditadura, novinha em folha. Scola mostra o eclodir da verdade no ódio mútuo que se seguiu ao amor, trinta anos depois do término da guerra. No reencontro de

Nicola, Antonio e Gianni,8 o último, tornado advogado, mostra como "se vence na vida" - algo que só acontece com "quem diz sim".9 A dupla Nicola e Antonio não"vence na vida" por incorporar crenças ideais juvenis à idade adulta. O que conduz ao "sim": submissão social e individual ao establishment, regido por escravidão ao princípio do prazer/desprazer - psicanalistas sabem que ódio é forma mais primitiva de amor (Freud, 1920/1955; Klein & Riviere, 1953).

 

Colegiados: a obra é tudo; o homem, nada?10

vinte e sete anos, este número da RBP, então com vinte anos de publicação algo interrompida, compactou tudo o que foi minha administração. E o destino de um colegiado, agora reduzido a duas pessoas - Juarez Strachman e eu. Havíamos implantado a primeira tentativa de direção colegiada explícita, com apoio do então presidente da SBPSP, Deodato Curvo de Azambuja. Questão estatutária impedia que o editor da RBP tivesse outra qualificação que não a de membro efetivo. Meu intuito científico independia de qualificações formais. Aceitei, de bom grado, a sugestão de Deodato para trabalhar com David Léo Levisky, cuja condição societária era membro associado; desejava ser editor. Havia sido superintendente nos dois anos anteriores - função tradicionalmente exercida por pessoas sem maiores qualificações societárias. O fundador da RBP, José Nabantino Ramos,11 reconhecido advogado, era candidato do Instituto;12 um dos donos da Folha de São Paulo fora origem, fulcro e cerne da RBP: verdadeira coluna espinal para Virgínia Bicudo, que precisa ser vista, neste modelo, como cérebro.

O colegiado de quatro pessoas13 compartilhou todas as funções, dissolvendo diferenças entre editoria e superintendência, que haviam sido epicentro de turbulências relacionais em meados dos anos 1970. Houve problemas na demarcação de funções, logo exacerbados por interferências da ABP.14 Nesta infância da RBP, houve a bem-intencionada tentativa de lidar com tais problemas: uma criação interminável de regras externas, por estatutos e nomenclaturas15 - algo parecido ao usado na infância humana.

O editor anterior recusara-se a continuar trabalhando, menos ainda no regime de colegiado. Outras pressões "políticas" faziam-se sentir na eleição de determinados ídolos, refletindo-se nos rumos editoriais. Consequências: interrupções na publicação, extinção de sessões, como resenhas de livros e obituários.

Com base em experiência editorial de vinte e cinco anos,16 supus que direções únicas favoreciam, conscientemente ou não, tendências ideológicas caracterizadas por autoritarismo e arbitrariedade, promovendo a formação de elites minoritárias dominantes (Toynbee, 1972; Bion, 1961; Jacques, 1976/1981), sustentando e sendo sustentadas por redes de influência dita política,17 que seleciona artigos de maior interesse desta mesma elite18 - algo que poucas vezes coincide com motivações provenientes de âmbitos técnicos, científicos ou artísticos, utilizados, conscientemente ou não, como degrau racionalizado para manutenção "política" destas mesmas elites.

Como analistas, podemos perceber a presença da "equação pessoal",19 igualmente fator em turbulências e resoluções delas: capacidades ou habilitações individuais, genéticas ou adquiridas,20 podem ser submetidas, em graus variáveis, à subserviência ao desejo, confundidas com sobrevivência: algo real na manutenção de elites.21

Na minha primeira experiência em publicações científicas, inclusive na SBPSP,22 surgiu-me a ideia23 - típica do Zeitgeist politizado dos anos 1970 - de implantar direção colegiada. Parecia-me oferecer alternativa para equilibrar tendências, evitando orientação por indivíduos em particular.

Entre os fatores de minha "equação pessoal" na minha decisão de assumir funções diretivas da RBP, figurou o fato de que meu pai, Jayme Sandler, fez parte do primeiro corpo de "redatores" da RBP, auxiliando Virgínia Leone Bicudo, José Nabantino Ramos e David Ramos no re-nascimento da RBP. Saído recentemente de gravíssimo enfarte no miocárdio, era um dos pouquíssimos analistas que dominavam a língua inglesa. Fazia traduções, como os primeiros artigos de Frank Julian Philips, recém-chegado ao Brasil, preferindo que seu nome sequer fosse impresso. Dizia: "O importante é o autor, não o tradutor. Faço apenas um serviço para colegas." Concordou no registro de seu nome na tradução de um artigo póstumo de Melanie Klein, "As origens da transferência" (1968), pela insistência de Virgínia: "É uma questão de contrato com a Hogarth Press." Fazia ainda resenhas de livros e também foi autor. Fajga Szterling (1979) escreveu sua visão sobre o que teria movido meu pai, tipificando a visão de seus contemporâneos: "Amor à psicanálise e aos colegas" (p. 546).

Pude colocar meus planos em plena prática apenas no número sobre o qual discorri; e, depois (2000-2006), no Departamento de Publicações da SBPSP, nas gestões de Marcio Giovannetti e Luís Carlos Menezes.

O plano e a pesquisa ainda podem ser examinados; as respostas se perderam; não interessaram às editorias posteriores. Em formidável rearranjo "político" da SBPSP, nem eu, nem David Léo Levisky, nem Juarez Strachman estávamos incluídos.

Fui substituído por Elias Mallet da Rocha Barros, "que iria de qualquer modo fazer parte de uma planejada equipe comigo" (Sandler, 1989b, p. 193), por meu convite, e por Luiz Meyer - que "manifestaram desejo" de levar adiante a RBP.

 

50anos: maioridade?

Constato que parte dos meus planos de trabalho foi implantada por muitos colegas - alguns os conheciam. Alguns não os conheciam: eram pensamentos sem pensador. A todos estes colegas, meus mais sinceros parabéns; de modo especial, à equipe que agora assume: todos vocês me provêm do sentimento de dever cumprido e de que um tipo de "filha" imaginária pode sobreviver.

Afinal, l’oeuvre c’est tout; l’homme c’est rien.

 

Notas

1 C’eravamo tanti amati, filme de Ettore Scola.

2 Feita sob métodos estatísticos.

3 "Amor à fama: o clímax da vaidade fútil" (Santayana, 1906/2005); "Fama: semente que não germina em solo mortal" (Milton, 1654/1982).

4 Associação Brasileira de Psicanálise, ancestral da Febrapsi.

5 Alcyon Baer Bahia, um pioneiro, introduziu as ideias de Bion no Brasil. Hoje a situação é diversa, mas desproporcional, em relação a autores estrangeiros.

6 Marx (1852/2011).

7 Seus danos, marcando ausência de civilização, foram notados por muitos (Freud, 1930/1961).

8 Interpretados, respectivamente, por Stefano Satta Flores, Nino Manfredi e Vittorio Gassman.

9 "Vence na vida quem diz sim", canção de Chico Buar-que e Ruy Guerra (1973) - auge da terceira ditadura brasileira.

10  "L’oeuvre c’est tout; l’homme c’est rien" - Conan Doyle, em A liga dos cabeças vermelhas, atribui esta frase a Gustave Flaubert, que a teria escrito em carta para George Sand.

11  De quem também "herdamos" nossa colega, sua filha, Heloísa Ramos.

12  Hoje, membro filiado.

13  Gradativamente diminuído para duas, por questões cujo exame foge ao escopo do presente relato.

14  Por decisão individual, talvez extemporânea, de Laertes Moura Ferrão.

15  Editor, editores adjuntos, redatores, comissão de relações públicas e vários outros.

16  Resumidamente: desde 1963, na Folha de São Pauloe em periódicos na escola secundária; na Revista de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; como autor, tradutor e também em cargos administrativos em periódicos de origens e propósitos diversos, institucionais e comerciais (cf. Carneiro, Vieira & Frausino, 2014). Publicações institucionais, em geral, obtêm financiamento "a fundo perdido": assinatura compulsória cobrada pela sociedade à guisa de condição sine qua non do pertencimento.

17  Expandindo um termo cunhado por Young, denominei estes sistemas sociais de meritocracias, política e técnica (Sandler, 2012, 2015a, 2015b, 2015c).

18  Notícias, se a natureza técnica for jornalística, ou estudos, se a natureza for científica ou artística.

19  "Reconhecemos em outras pessoas uma regra de lei, aquela que dispensa o exame de processos mentais; por que fazemos exceção dos nossos próprios processos mentais?" (Freud, 1926/1959, p. 220). Cf. Sandler (2013).

20  Prevalência do princípio do prazer-desprazer, às expensas do princípio da realidade, determinando tendências ditas narcísicas ou esquizoparanoides, incluindo idealização (auto ou hetero), tendências depressivas e tendências sádicas. Em termos grupais: formações por pressupostos básicos, prejudicando ou eliminando grupos de trabalho. Manifestam-se, no âmbito dos fenômenos, se adotarmos qualificações da psiquiatria, por delinquência e psicopatia, ou ausência das duas; em psicologia do sistema consciente, por benevolência, oportunismo, vaidade.

21  Em organizações com acima de 300 pessoas, acrescem-se tendências burocráticas, ditadas por novo estamento, o administrativo. O que era um sustentáculo funcional, um meio, torna-se um fim-em-si-mesmo. Neste âmbito, a RBP - até 1989 - nunca teve nenhum sofrimento, pela organização exemplar feita pelo senhor Moacyr Costa Correa.

22 Ide, implantada em conjunto com Raquel S. Nelken; inspirado por Sonia Azambuja e Amazonas Alves de Lima, que funcionavam espontaneamente deste modo; nos Boletins de Notícias da Associação de Candidatos Luiz Vizzoni e no Boletim da SBPSP, ambos por mim criados. Iniciei-me na RBP com Fajga Szterling e Paulo de Paula e Silva, ao sugerir a reintrodução de resenhas críticas de livros.

23 Provavelmente por influência externa, macrossocial, em época bastante politizada, de enorme ênfase em esperanças por implantações de sistemas políticos democráticos.

 

Referências

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