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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016
EM PAUTA
Limiar: morada do sonho1
Threshold: the dreamland
Umbral: morada del sueño
Dora Tognolli
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), mestre em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
RESUMO
Uma experiência de atendimento problematiza as intensidades, o pulsional, a dificuldade de fazer transições e passagens. Da excitação sexual desmedida ao controle extremo, um paciente, que busca análise após rupturas no campo profissional e amoroso, traz ao analista questões que encontram ressonância nos textos de Freud sobre os sonhos - quando ele toma em consideração o conceito de outra cena - e nos trabalhos de Walter Benjamin, sobre as passagens. O conceito de limiar, de Benjamin, é tomado como uma ferramenta de trabalho, aludindo à dificuldade de ocupação de espaços transitórios, fluidos, muitas vezes incertos, prelúdios de transformações psíquicas.
Palavras-chave: limiar; outra cena; morada do sonho; metapsicologia; desmesura.
ABSTRACT
In psychoanalytic practice, one experienced case problematizes intensities, the instinctual, the difficulty in making transitions and passages. From the unbridled sexual excitement to the extreme control, a patient, who seeks psychoanalytic therapy after experiencing professional and romantic breakups, evokes a range of questions. These questions are related to the Freudian writings about dreams, in which Freud takes into account the idea of the other scene. They are also related to Walter Benjamin's works - Benjamin's passages. Benjamin's idea of thresholds is used as a working tool in order to allude to the difficulty in occupying transitory, fluid, and often uncertain spaces, which foreshadow psychic transformations.
Keywords: threshold; other scene; dreamland; metapsychology; disproportion.
RESUMEN
Una experiencia de análisis problematiza las intensidades, lo pulsional, la dificultad para hacer transiciones y pasajes. De la excitación sexual desmedida al control extremo, un paciente, que busca el análisis después de rupturas en el campo profesional y amoroso, trae al analista cuestiones que resuenan en los textos de Freud sobre los sueños, cuando tiene en consideración el concepto de otra escena, y en los trabajos de Walter Benjamin sobre los pasajes. El concepto de umbral, de Walter Benjamin, es tomado como una herramienta de trabajo, aludiendo a la dificultad de ocupar espacios transitorios, fluidos, muchas veces de incertidumbre, preludios de transformaciones psíquicas.
Palabras clave: umbral; otra escena; morada del sueño; metapsicología; desmesura.
Impasse
Uma porta quebrada, que dificulta a passagem para dentro da sala do consultorio. Cena bizarra, que marca o início de um tratamento, em que os personagens envolvidos, analista e paciente, conheciam-se muito pouco. Uma questão trivial, do cotidiano, ilustrou o modus operandi desse homem de quase 50 anos.
O acontecimento ocorreu nas primeiras horas da manhã. Nesse momento, a análise era praticamente o único compromisso de Antonio, após seu afastamento de um cargo importante de diretor em uma grande corporação multinacional, onde permaneceu por mais de dez anos.
Nesse dia, a porta quebrada, cujo trinco não abria, deixou na soleira analista e paciente. Antonio prontamente dedicou-se ao trabalho: mãos à obra. Como engenheiro que era, munido de dispositivos celulares conectados, registrou o nome do fabricante do código de abertura da porta e entrou em seu site. A intenção de Antonio era desmontar a engenhoca para abrir a porta. Tal disposição tomou conta da cena inusitada, e Antonio encarregou-se de resolver o impasse, protegendo a analista dessa surpresa desagradável. Rapidamente, inverteu-se a situação: era Antonio que passava a trabalhar para a dupla, tranquilizando a analista mulher em sua fragilidade e despreparo para o trabalho. Cena que lembra uma estrada, uma moça parada ao lado de seu carro com um pneu furado, esperando o herói que irá tirá-la do enrosco. Gratidão e surpresa - reações possíveis diante de tamanho empenho e solidariedade.
Do ponto de vista fenomenológico, chama a atenção o preparo de Antonio para enfrentar questões triviais, solução de problemas, "buchas", como ele dizia. Habilidades operativas que ele desenvolveu durante toda a vida, que o ajudaram a enfrentar os impasses e conflitos, até certo ponto.
Vamos dar um giro e pensar, junto com Freud e com sua bruxa metapsicologia, que as representações não são nada tranquilizadoras: traduções de moções e exigências de trabalho interno que assolam o sujeito, que mal sabe o que está ocorrendo, nesse limiar entre o dentro e o fora.
Walter Benjamin e as passagens
Cito um fragmento de Walter Benjamin (Passagens, 1926, citado por Gagnebin, 2014) que aborda a questão do limiar, das passagens, do trânsito (lembrando que aqui nos interessa o trânsito psíquico):
Ritos de passagem - assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade etc. Na vida moderna, estas transições tornam-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências limiares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. [...] O limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira (Grenze). O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra. [...] Morada do sonho. (p. 34)
Esse pequeno fragmento contém vários estímulos para reflexão, todos eles muito instigantes. A diferença entre fronteira e limiar coloca em cena diversos dispositivos humanos, organizadores da vida psíquica e da vida prática. Fronteira tem o sentido de delimitação, contorno claro, interdição à passagem imediata. Basta pensarmos nas fronteiras entre as nações e nos problemas graves que o mundo tem vivido, como se as fronteiras novamente tivessem se espessado, se enrijecido. Limiar, por sua vez, refere-se a metáforas espaciais, fluidas, virtuais, que apontam para transições. As imagens da arquitetura que Benjamin inclui em seu texto são de extrema utilidade: passagens, soleiras, escadas, umbrais, pórticos - construções projetadas como convites à passagem, à entrada; permitem a transição; incluem tempo e espaço, atravessamento.
Limiar não significa meramente separação, mas também um lugar e um tempo intermediário, indeterminado. Designa uma zona constituída de dicotomias tais como dentro/fora, público/privado ou feminino/masculino. Estamos no campo das dualidades de Freud e do raciocínio grego, em que categorias aparentemente opostas estão próximas, em tensão, como o demônio Eros, de O banquete de Platão.
No texto, Benjamin destaca o empobrecimento dessas experiências limiares, que acarreta o embotamento das percepções delicadas da vida; a pressa moderna nos aproxima do tédio veloz ou da apatia excitada - oximoros complicados de entender, mas que traduzem vivências de angústia, melancolia, alienação.
Benjamin exemplifica experiências limiares a partir de dois escritores: em Proust, estamos diante da experiência perdida, extensa, estendida, que passeia por limiares indecisos do dormir, do acordar, da memória; em Kafka, num outro oposto, limiares tão espessados que se transformam em fronteiras, de difícil ultrapassagem, que convidam à estagnação, quase morte, vagando de limiar em limiar, portas, portais, lugares de detenção e aprisionamento.
Nossa dificuldade de viver experiências limiares, sob o signo da pressa, da evitação do vazio, com o tédio como pano de fundo, resultaria numa vida de indiferença, alienação, de um fazer mecânico, operativo, burocrático, em que localizaríamos a morte do sujeito psíquico.
Freud: os sonhos, a metapsicologia
As passagens e os limiares de Benjamin nos remetem diretamente a Freud: ao onírico, à fantasia. Cito um pequeno trecho do "Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos" (1917[1915]/2010):
Não costumamos pensar muito sobre o fato de que toda noite o ser humano tira os panos que cobriam sua pele, e talvez ainda as peças complementares de seus órgãos, na medida em que logrou compensar-lhes as deficiências com próteses como óculos, perucas, dentes etc. Podemos acrescentar que ao adormecer ele realiza um desnudamento análogo na psique, renuncia à maior parte de suas aquisições psíquicas e efetua assim uma extraordinária aproximação, dos dois lados, à situação que foi o ponto de partida de seu desenvolvimento vital. Somaticamente, dormir é uma reativação da estadia no ventre materno, preenchendo-se as condições de repouso, calor e ausência de estímulos; e muitas pessoas retomam, dormindo, a posição fetal. O estado psíquico de quem dorme se caracteriza pela retração quase total do mundo que o cerca e cessação de todo interesse por ele. (p. 152)
O texto de Freud, tal como o de Benjamin, provoca um turbilhão de associações. É bastante interessante a ideia de Freud das duas cenas que o estado onírico propõe - metáfora dos dois sistemas, consciente/inconsciente, que o sonho põe em contato e problematiza. O sonho e o trabalho do sonho tratam de limiares e espacialidades, que também servem de modelo à construção do aparelho psíquico, caracterizado por trânsitos, soleiras, portais, passagens. Vida psíquica sugere movimento, ultrapassagem e tradução. Fixidez, insônia, falta de sonho nos aproximariam da doença, do sofrimento.
A teorização sobre o recalque, sobre as pulsões, sobre movimentos do corpo à realidade externa e vice-versa tem em seu cerne os conceitos de espacialidade e de temporalidade, desafios para o sujeito. O estado onírico, quando atravessado, torna-se matriz de associações, metáforas, trânsitos.
Antonio e suas migrações
Voltemos a Antonio, na companhia de Benjamin e Freud. A análise representou uma passagem que Antonio se propôs a experimentar. Seu relato biográfico, soterrado pelas queixas orgânicas e burocráticas, quando pôde emergir, trouxe notícias de diversas passagens que Antonio abreviou e quis controlar, de forma a não se perder, não se desestruturar. A adolescência foi marcada por adesão a uma seita religiosa mais autocrática que sua família nuclear: sai de casa para um ambiente religioso, cercado de proibições. A universidade, época de descobertas amorosas, fraternas e culturais, parece ter sido achatada e resumida a estudos solitários. O casamento foi um contrato rápido, sem sexo, apenas regras e leis. Antonio virgem, tamponando a inibição sexual com engenharia e direito e muito dinheiro no bolso.
Os contratos falharam: divórcio e desemprego, trazendo à tona o corpo sofrido, depressão e hipertensão. Começa a análise contando seus infortúnios. Insônia, solidão, mudança de cidade - companheiros de viagem.
A cena da porta quebrada nos traz Antonio nos primórdios da análise, meio sem graça, um adulto organizado em termos de vida prática, e uma criança na vida amorosa. Seu constrangimento em falar da sexualidade infantil, muito infantil, foi aos poucos dando lugar a uma necessidade de contar todo o sofrimento que o acompanhou durante toda a vida e que perdura até hoje.
Antonio apresenta um sintoma, uma atuação, que tem complicado demais sua vida: ele estoura, briga, fica violento, em ambientes corporativos. Deixou o último trabalho por conta de descontroles que o envergonhavam. Violência e vergonha: duas marcas que lhe fazem companhia. Num emprego recente, o empresário que o contrata mostra-se muito mais violento que ele próprio. Antonio vive seu duplo e choca-se muito com essa forma bruta de tratar os outros. Reconhece, mesmo assim, que não controla esses impulsos tão fortes.
Diante da solidão, do desemprego, do tempo livre, Antonio passa a olhar para sua vida amorosa. Reconhece que a ex-mulher, apesar de suas diferenças e da exploração que o assolava, uma vez que era ele o provedor, faz falta: ao menos, tinha alguém que o esperava e dividia a casa com ele. Ao pensar no casamento, brotam sentimentos de revolta, de ressentimento, de arrependimento. Em sua grandeza e disponibilidade, Antonio se vê como vítima da mulher, aproveitadora e cínica. Seus relatos sobre esse momento de vida deixam-no bastante transtornado, pronto a refazer um pacto e um compromisso, baseado na premissa de que nunca mais será enganado por mulher nenhuma. Nesse diálogo, de si para si, em que não há brechas para intervenção da analista, Antonio oscila do papel de vítima da mulher ardilosa e interesseira para o de um gladiador que deseja a morte de quem dele se aproxima, o que me inclui.
O tempo livre, decorrente da falta de trabalho, transforma Antonio num adolescente em busca de companhia feminina. A tecnologia, que ele tão bem domina, o transporta para um mundo virtual pautado por vasta oferta de mulheres e convites eróticos de vários tons. As sessões de análise são preenchidas por descrições de visitas a sites de relacionamento, que divertem Antonio. Nas sessões, ele passa a me tratar como um colega de folguedos e sacanagens: ele, "o cara esperto", que sabe das coisas; eu, a ingênua, "bobinha", que tenho muito a aprender com suas experiências.
Antonio faz roteiros, escritos e falados, sobre sites, técnicas de conquista, tipos de mulheres, textos sacanas e românticos, "cantadas", envio de músicas, vídeos etc. Planeja estratégias de encontros, de abordagens, de sedução. Há muito prazer nesse plano de conquistas, descrito num tom lúdico e amigável.
Alguns encontros amorosos começam a ter lugar. Vários tipos de mulheres desfilam na sala de análise, trazidas por Antonio. Ele relata, sem pudor e com muita dor, seu empenho em conquistar e entender as mulheres. Conta compulsivamente o que ocorre nos fins de semana, como se sai sexualmente, como proporciona prazer a cada mulher que encontra. De virgem que era, rapidamente transforma-se num garanhão. Quando se dá conta da minha presença, que fica soterrada pela sua fala compulsiva, pede desculpas por falar assim diante de uma mulher, constrangido e envergonhado.
Quanto tempo perdido, quanto desperdício (!), murmura Antonio, que passou parte de sua vida dedicado ao trabalho e a um casamento pouco gratificante. Essa nova jornada começa a se revelar problemática: muitos encontros acabam em nada; jantares caros, saídas malucas e fim de linha. As mulheres abusam de sua generosidade, de sua dedicação. O clima de exploração retorna. Muitos questionamentos sobre a possibilidade de relações de troca.
Surge uma namorada em sua vida: uma moça simples, de condição econômica e cultural aquém, bem inferior à mulher oficial que Antonio teve e o traiu. Essa namorada cria entusiasmo: com ela, parece experimentar uma sexualidade prazerosa. Cozinha para ela e a recebe em sua casa com muito capricho e empenho. Sente que ela gosta dele, que gosta de seu corpo. Ele corresponde. Vivem um namoro intenso, mas que também começa a ser problematizado por Antonio, que coloca em questão se a namorada gosta mesmo dele ou se gosta meramente da vida boa que ele proporciona, uma vez que paga todas as despesas, planeja todos os passeios e ainda a ajuda profissionalmente.
Antonio vive um paradoxo: de um lado, tão completo e dedicado, amoroso e fiel; de outro, inseguro, feio, velho, joguete das mulheres. Paradoxo humano, conflito psíquico, mas que na perspectiva de Antonio precisa ser resolvido. O questionamento do namoro desperta nele o desejo de experimentar outras mulheres. E o faz: volta a frequentar sites de relacionamento, em que busca aprovação e reconhecimento. Dessa vez, mais ousado, propõe conversas eróticas e de grande exposição. Algumas mulheres querem vê-lo nu, antes de sair da virtualidade. Ele não passa em alguns testes, o que o deixa triste e chateado. Parece que estamos fazendo um trajeto pelo perverso polimorfo freudiano clássico.
Nesse jogo virtual, levado muito a sério, Antonio se coloca numa posição passiva: busca o olhar das mulheres e, ao mesmo tempo, teme desaprovação e rejeição. Vivências de muita dor, como se não houvesse chance amorosa para ele. Entramos no território da angústia e do desamparo. Cenas da infância retornam: ele, ao lado dos irmãos e irmãs, sempre teve que provar que era melhor para conquistar o amor da mãe e a aprovação do pai. Cuidou dos pais e os acompanhou até a morte, mas seu registro psíquico aponta que jamais foi amado como gostaria. Brota muito ressentimento dessa memória dolorida da falta de amor que o acompanhou durante toda a vida.
Atravessamos um período de muita excitação psíquica, que desemboca no corpo: dores de cabeça, pressão alta, dificuldade para dormir, retorno ao cigarro de forma exagerada, aumento de peso. Além da análise, Antonio recorre a um psiquiatra. Conta agora com um casal que o escuta, em suas doenças, queixas e fragilidade. Bastante irônico, diz que precisa pagar para ter atenção: encontrou um bom psiquiatra e uma boa analista que o tratam muito bem e torcem por ele.
Em algumas sessões, aparece sua excitação, seu corpo inquieto: ele se mexe sem parar na cadeira, pede licença para ir ao banheiro, como se sua fala empolgada houvesse estimulado o corpo a um movimento desenfreado e não desse conta de sua usina pulsional. Presencio certo incômodo diante desse descontrole, linguagem corporal e bruta, que escapa ao recalque e à disciplina do mundo adulto.
A excitação desmesurada também surge no mundo corporativo. Um episódio de violência no trabalho o assusta - ele chega dizendo: "Aconteceu!" Inseguro com um contrato de consultoria, pelo qual é responsável, e diante da "burrada" de um funcionário, Antonio se descontrola e grita, na frente de um grupo de trabalho que lidera. Ficou muito envergonhado. Não gostou do que fez e reconhece que pode colocar em risco o trabalho recém-conquistado, depois de um longo período sem projetos.
Destaco um relato de Antonio, espécie de cena onírica que ele viveu a partir de uma ferramenta de relacionamento, Tinder. Convidado por uma mulher a ir tirando a roupa, virtualmente, Antonio foi até onde deu, não ficou totalmente nu, mas aproveitou para observar como era seu corpo, o que ele havia forjado, de bom e de ruim, as partes que o contentavam e as que demandavam mais cuidados. Não se rendeu à mulher voraz que lhe fazia um convite para se expor, mas, através dela, pôde se olhar e dar um contorno para uma força física e psíquica que estava perdida atrás de uma porta.
Durante alguns meses, o tema da análise é a relação amorosa com a namorada e as tentativas de contato com o mundo feminino: sites de paquera, garotas de programa, jantares, colegas de trabalho etc. Antonio questiona a relação com a namorada e começa a controlar seu grau de generosidade e prontidão. Até que ponto a namorada está com ele por interesse? Ele, que tanto provê, está sendo usado? Decide colocar limites e não atender cegamente aos pedidos que ela lhe endereça. Se, num primeiro momento, tentou ocupar o lugar de mestre, orientador e provedor dessa mulher, agora passa a controlar sua tendência em resolver problemas alheios.
Nos nossos encontros, mostra-se impaciente e agressivo, revoltando-se com as falas que proponho, vividas como invasão, interrompendo seu raciocínio lógico: "Não gosto que você me interrompa, porra! Assim, não consigo concluir meu pensamento!" Parece que as sessões não dão conta da avalanche de pensamentos e palavras que habitam o corpo de Antonio. Mais gordo, com cheiro muito forte de nicotina, ele surge como uma fera descontrolada. Quando termina o horário, fico exaurida. E ele, insatisfeito, parece querer mais.
No final do ano, Antonio anuncia que vai parar de fumar e tentar uma dieta menos "tranqueira". A namorada... Bem, está em observação, e parece que a análise também. Em dezembro, comunica que vai fazer um sabático e só retornará no final de março. Eu tiro férias, e ele interrompe a análise. Ao retornar das férias, entro em contato com ele, e ele reafirma seu projeto: por ora, interrompemos.
Um mês depois, recebo uma mensagem, enviada às 4h da manhã, comunicando que precisa retornar: tem algo importante para me contar. Marcamos um horário, que ele reivindica com urgência. Relata que a namorada rompeu com ele, que eu estava certa: "Você tinha cantado a bola..." Ele não aceitou o rompimento por telefone, mas ela estava irredutível. Ele ficou no chão, em pânico, chorou demais, como nunca na vida. E ouviu um conselho de um amigo: "Cara, é assim, sofre mesmo, nada de ser durão. E depois, acho que essa moça fez um favor para você. Ela não era para você. Cara, vai fundo que depois tudo passa.'" Essa voz amiga e compreensiva, que reconhece a fragilidade e a humanidade de Antonio, o incentiva a retornar para a análise.
Antonio encaminha-se para outro tópico: um texto retirado da Internet, que trata de mulheres interesseiras e descreve o perfil delas. Essa é sua namorada: interesseira! Ele já tem o diagnóstico. Cercado de inimigos, ele se vê novamente sozinho.
A sessão é intensa - nosso tempo acabou, mais de uma hora na sala. Eu pergunto se ele quer voltar outro dia e comento algo que não recordo agora. Palavras suficientes para Antonio se irritar e dizer que sou muito ansiosa e que tenho mania de interrompê-lo. É disso que não gosta. Marcamos um retorno, que logo depois é desmarcado por ele. Recebo uma mensagem: ele decidiu interromper por mais um tempo, pois está falido, sem projetos de trabalho, sem dinheiro. Após dois meses, ele propõe que retomemos.
Triste, cansado, mais magro, retorna e sugere um contrato novo: duas sessões semanais, horários diferentes, que combinem com a academia que ele resolveu começar. Precisa emagrecer, comer melhor, tratar da cabeça. E tem uma sugestão para nosso melhor entendimento: munido de um caderninho de notas, propõe que eu respeite os tópicos que ele trará toda sessão. Ele se encarregará das pautas, e eu devo aceitar os temas de interesse, sem interrompê-lo. Como eu o ajudei a se conhecer melhor, ele quer me prevenir dessa ansiedade que dificulta as relações e a própria análise.
Assim retomamos: caderninho em riste, aceito as condições de Antonio, que logo são subvertidas pelo próprio método analítico e pelo inconsciente, que não se submete às leis da razão.
A travessia recomeça...
A travessia da análise
Quando o processo de análise acontece, ele coloca em cena territórios que estavam na sombra. A alavanca desse processo, a transferência, põe em movimento regressivo o aparelho psíquico, da fachada para o interior, numa espécie de convite ao encontro das fantasias recalcadas, que não encontraram passagens para vir à luz.
Breves relatos, trazidos na análise, desenham uma paisagem da infância. Através da associação livre, pensamentos latentes, vestígios de experiências muitas vezes contradizem e entram em tensão com a fachada do que é apresentado. Em A interpretação dos sonhos (1900/2013), no capítulo que trata do infantil como fonte dos sonhos, ao analisar seu sonho do conde Thun, Freud compara as fantasias evocadas pela visão do conde Thun com fachadas de igrejas: "essa fantasia [...] é apenas como a fachada de uma igreja italiana, que não tem ligação orgânica com a construção atrás dela; aliás, diferentemente dessas fachadas, ela é lacunar, confusa e elementos do interior irrompem em muitos pontos" (p. 232).
Num salto de quase trinta anos, quando Freud propõe a chamada segunda tópica, cujo desenho demonstra várias fronteiras e atravessamentos, refere-se à fachada do ego, seu lado revelado, que pode ser associado à ideia arquitetônica da igreja. Penetrar em seu interior nos revela surpresas e enigmas nem sempre acessíveis e fáceis de decodificar.
Uma das rupturas atordoantes que enfrentamos parece acontecer com nosso corpo, supostamente familiar, mas que não passa de mais um estranho que precisamos decodificar ao longo de nossa existência. Embora nosso corpo se pareça conosco, paradoxalmente, provoca estranhamentos inúmeras vezes: no espelho, na dor, na ruptura, a partir do olhar do outro. Nosso idioma interno, dentro do esquema metapsicológico inventado por Freud, parece não ter palavras, movimentando-se em busca de passagens até ganhar representação e expressão.
As cenas primitivas, fontes de excitação, que conduzem a representações errantes ou se recusam à ligação com representações outras, levam uma vida clandestina, secreta, no fundo da memória, num território híbrido do aparelho psíquico.
Para Freud, as vivências sexuais infantis não cessam de impregnar a vida do sujeito, e é disso que ele se defende. Os sintomas, dentro desse modelo infantil recalcado, seriam a marca de um trauma sexual tangente, não rememorado, mas sexualmente ativo.
O processo analítico é alavancado pela transferência, que coloca em movimento o aparelho psíquico em sentido regressivo, da fachada para o interior. A análise seria um convite ao encontro da fantasia recalcada, e não da lembrança - esta sempre encobridora e perdida no tempo.
O tema das fronteiras e limites nos permite pensar angústias intensas, de perda e intrusão, que caracterizam a transferência de certos pacientes, como Antonio, que nos remetem às transferências de cunho negativo, marcadas por intensidade, território da pulsão de morte, que rompe e ataca o vínculo.
O resto inconsciente seria a fonte pulsional ativa e inesgotável - no caso de Antonio, uma usina de excitação que provoca sofrimento e atuação operativa no mundo externo, da qual ele quer se evadir, mas não consegue. O retorno a essa fantasia e à cena infantil, qualquer que seja ela, causa desprazer e promove mais força de recalque. Assistimos a movimentos rápidos e intempestivos.
Tomo a metáfora da fachada para retornar ao episódio da porta quebrada, que fez com que analista e paciente ficassem trancados do lado de fora. Antonio nos apresenta, como fachada, sua capacidade de lidar com o mundo operativo, povoado de objetos, gadgets, tecnologia. A porta trancada impede o atravessamento do limiar, que nos introduziria no mundo interno, surpreendente sempre, como as igrejas mencionadas por Freud. Para adentrar esse território, ninguém está preparado, já que ele nos é bastante desconhecido e assustador. Mal sabia Antonio que abrir a porta era mais fácil que atravessar o limiar rumo a seu mundo interno. Freud está coberto de razão ao descrever o interior como lacunar e confuso.
A partir do momento em que a porta é aberta, estamos vulneráveis às pulsões, que impõem novas traduções e circuitos. Antonio deixa claro que pode ter reações violentas quando seu limiar é ultrapassado. Seu caderninho de anotações, adotado quando retorna à analise após brusca interrupção, pode ser uma proteção a esse descontrole que o mundo interno traz à tona. Essa é uma questão central na análise de Antonio, o qual revela grande dificuldade de lidar com excitações psíquicas e eróticas.
O estado agônico de Antonio, em fibrilação constante, parece dar sinais de querer experimentar fluxos diferentes, prazerosos, criativos, humanos. Em diversas situações tensas, assistindo ao funcionamento operativo e eficaz de Antonio, me vi fabulando, ou sonhando acordada. O episódio da porta quebrada é um dos exemplos: a cena evocou em mim a imagem de uma mulher diante de um pneu furado, aguardando um resgate masculino; já a exigência da pauta rígida, colocada por Antonio como condição para retornar à análise, me inspirou a ideia de transgredir, não obedecer, apostar na potência do método de livre associação, que opera na contramão da rigidez e dos decretos.
Curiosamente, a apresentação deste trabalho em reunião científica na instituição contou com comentários de dois colegas de campos diferentes de trabalho, literatura e psicanálise, que permitiram que cruzássemos limiares ricos de significados. O trabalho analítico, as conversas com colegas, a escrita de trabalhos que tratam de limiares vastos permitem que, de um mundo povoado de pactos, atravessemos para uma vida de jogos, brincadeiras, em que surge o onírico, o desejo, a fantasia.
Se há um infantil, pulsante, como Freud propõe desde A interpretação dos sonhos e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ele está à procura de outras cenas e de uma linguagem expressiva para se apresentar. Os sonhos e as obras de arte nos convidam a converter em linguagem expressiva as pulsões, em busca de caminhos e trilhas.
No texto "O escritor e a fantasia" (1908/2015), Freud se pergunta de onde o escritor/artista tiraria o material de suas produções, que nos emocionam intensamente e que, de forma tão criativa e eficaz, tratam do que sentimos e vivemos. Diante da obra de arte, nos reconhecemos e alcançamos um prazer estético que fala diretamente à nossa psique, ativando fantasias íntimas, nem sempre tão tranquilas e prazerosas.
No livro Grande sertão: veredas (Rosa, 1956/2001), acompanhamos a trajetória de Riobaldo pelo sertão mineiro, até sua transformação em jagunço. Riobaldo se angustia diante de um mundo misturado e violento, e seu interesse é dominar esse mundo. O rito de transformação em jagunço lhe permitirá enfrentar essa violência; para isso, faz um pacto com o diabo, e nesse momento para de sonhar. Viver é perigoso... Sonhar também pode ser perigoso. Como Riobaldo, como Antonio, não raro fazemos pactos que nos impedem o trânsito, a travessia de limiares. Para não transitar pelas dúvidas, pelas incertezas, que geram angústia, aderimos a contratos rígidos, que empobrecem a vida e impedem novas trajetórias e travessias.
* * *
Ao observarmos os modelos de aparelho psíquico formulados por Freud na primeira e na segunda tópica, nos deparamos com passagens e barreiras. Do soma ao inconsciente, ao pré-consciente, ao consciente, para o mundo externo: mera simplificação, uma vez que esses territórios estão misturados e amalgamados. O trânsito entre esses diversos territórios virtuais deve ser observado.
O caminho dessas mensagens não é tranquilo: há várias barreiras que devem ser ultrapassadas, e em cada barreira algo novo se junta, se perde, distorce, desvia, volta para trás etc. Em Antonio, parece que o dispositivo da percepção, ligado à consciência, falha diante da intensidade pulsional que o domina. Seus rompantes, momentos violentos, reações corporais intensas revelam elementos brutos, não metaforizados, como se Antonio tivesse um sistema de ligação direta id-superego, sem mediação, sem proteção - ou, se preferirmos, sem limiares: ou porta aberta, ou dique.
O processo analítico pode se prestar à construção de novos circuitos, novos desvios. Faltam experiências limiares a grande parte dos pacientes que nos procuram, como acontece nesse pequeno relato clínico. Do racionalizado, caminhamos para o corpo pulsional, num movimento regressivo necessário, de resgate à história e ao psiquismo.
A metapsicologia é dura, esquemática, mas necessária. Carece da linguagem de afeto, que o sonho e a poesia podem complementar. Assim, concluímos com Paul Valéry (2011): "No sonho, ajo sem querer; quero sem poder; sei sem nunca ter visto, antes de ter visto; vejo sem prever. [...] É preciso esperar a fissura durante o dia" (pp. 91 e 93).
Nota
1 Versão modificada de trabalho apresentado em reunião científica, no dia 5 de março de 2016, na SBPSP. Segue aqui meu agradecimento a José Martins Canelas Neto (SBPSP) e Yudith Rosenbaum (FFLCH-USP), comentadores do trabalho, que muito contribuíram com suas ideias, várias delas incorporadas na redação final do texto.
Referências
Freud, S. (2010). Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 12, pp. 151-169). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917[1915] [ Links ])
Freud, S. (2013). A interpretação dos sonhos (R. Zwick, Trad.). Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1900) [ Links ]
Freud, S. (2015). O escritor e a fantasia. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 8, pp. 325-338). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]
Gagnebin, J. M. (2014). Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34. [ Links ]
Rosa, J. G. (2001). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1956) [ Links ]
Valéry, P. (2011). Variedades (J. A. Barbosa, Trad.). São Paulo: Iluminuras. [ Links ]
Correspondência:
Dora Tognolli
Alameda das Bétulas, 372, Alphaville 5
06539-205 Santana de Parnaíba, SP
Tel: 11 4191-6936
dorat.g@terra.com.br
Recebido em 08.08.2016
Aceito em 22.08.2016