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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016
EM PAUTA
Silêncio: uma escuta metapsicológica
Silence: a metapsychological listening
Silencio: una escucha metapsicológica
Ignácio Alves Paim Filho
Psicanalista, membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre CEpdePA, membro titular com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBpdePA, professor convidado da pós-graduação em psicologia clínica da Universidade de Caxias do Sul UCS e da Universidade de Passo Fundo UPF
RESUMO
Como poderá ser visto no decorrer deste texto, será realizado um breve percurso pela temática do silêncio, visando equacionar alguns postulados teóricos e clínicos, centrados na dualidade pulsional - morte e vida -, de modo a possibilitar uma escuta metapsicológica para ele. Nesse processo, busco desfazer a ideia de que o silêncio é decorrente, exclusivamente, da pulsão de morte, o que julgo um equívoco. Para realizar tal meta, estabeleço a diferença entre pulsão de morte e pulsão de destruição - resgatando sua vinculação com a discórdia - e proponho que a ruptura do silêncio se dá no embate pulsional. Nesse sentido, advogo que o silêncio mais absoluto está no que poderíamos chamar de fusão incompleta - pulsão de destruição precariamente ligada pela libido - e/ou na fusão completa - pulsão de destruição excessivamente ligada pela libido. Portanto, o silêncio é decorrente da ausência de diferenças significativas entre as forças pulsionais, o que implica a morte do desejo e/ou a não construção deste. Essa ausência contribui com a homeostasia psíquica: baixo grau de entropia psíquica.
Palavras-chave: silêncio; Eros; pulsão de destruição; discórdia; fusão; desejo.
ABSTRACT
As one may see in the course of this paper, the author explores briefly the theme of silence in order to solve some theoretical and clinical postulates about instinctual duality - that is, life and death. His purpose is to enable a metapsychological listening at this silence. In this process, the author proposes to discard the idea that silence is exclusively a result of death drive - which, according to the author, is a misconceived idea. In order to fulfill this purpose, the author establishes a difference between death drive and destructive drive, and he also restores the relation between those drives and disagreement (or discord). Therefore, the author continues, silence is broken in the instinctual clash. In this sense, the author advocates that the most absolute silence lies in which one might call the incomplete fusion, which means the destructive drive that is precariously connected to libido, and/or the complete fusion, which means the destructive drive that is, in the other hand, excessively linked to libido. Thus, silence is a result of the lack of expressive differences between the instinctual forces. This lack implies the death and/or the no construction of desire. This lack also contributes to the psychic homeostasis (a low level of psychic entropy).
Keywords: silence; Eros; destructive drive; disagreement; discord; fusion; desire.
RESUMEN
En este texto se hace un breve recorrido por la temática del silencio, objetivando formular algunos postulados teóricos y clínicos, centrados en la dualidad pulsional (muerte y vida), que permita una escucha metapsicológica para este. En este proceso se busca deshacer lo que juzgo una equivocación, la idea de que el silencio es derivación, exclusivamente, de la pulsión de muerte. Para alcanzar tal meta se hace distinción entre pulsión de muerte y pulsión de destrucción - rescatando su vinculación con la discordia - y se propone que la ruptura del silencio se da en el embate pulsional. En ese sentido, defiendo que el silencio más absoluto está en lo que podríamos llamar fusión incompleta - pulsión de destrucción precariamente ligada por la libido - y/o la fusión completa - pulsión de destrucción excesivamente ligada por la libido. Por lo tanto, el silencio es resultado de la ausencia de diferencias significativas entre las fuerzas pulsionales, lo que implica en la muerte del deseo y/o en la no construcción de este. Esa ausencia contribuye con la homeostasia psíquica: bajo grado de entropía psíquica.
Palabras clave: silencio; Eros; pulsión de destrucción; discordia; fusión; deseo.
Mas é em vão que um velho anseia pelo amor de uma mulher, como o teve de sua mãe; só a terceira das Parcas, a silenciosa Deusa da Morte, tomá-lo-á nos braços.
(S. Freud, 1913)
Portanto, desde que estejamos atentos para não subestimar o papel de Eros, podemos dizer sobre o id: nele, tudo decorre como se estivesse sob o domínio das silentes e poderosas forças da pulsão de morte.
(S. Freud, 1923)
Silêncio, ausencia de som, palavras e murmúrios... Escutar o que não produz sonoridade; em vez disso, sensações diversas - sensações que nos impelem a fazer ações ou, quem sabe, antes de tudo, convidam a nos deixarmos ser tocados por suas vibrações.
A temática do silencio e da escuta tem sido objeto de estudo do mundo psicanalítico há um longo tempo. Provavelmente, teve início quando Emmy von N. solicitou a Freud que silenciasse e a deixasse falar: que a escutasse (Freud,1893-1895/1969d). Como sabemos, nesse caso temos encenado o ato inaugural da regra fundamental, a associação livre. Nesse sentido, trabalhar o silencio e sua escuta, no processo analítico - o mais além das palavras -, permeia também as recomendações freudianas aos que exercem a psicanálise.
Diante desse contexto, visando fazer a interação entre a metapsicologia e o exercício do ofício do analista, pretendo tecer especulações sobre a possibilidade de uma escuta metapsicológica para o silencio, esse enigmático ser que, em seu trânsito pela psique, revela as mais variadas formas de apresentação - do irrepresentável ao representável: silencio como resistencia, silencio como trabalho de elaboração, silencio pela ausencia de sentido, silencio pelo vazio, silencio por... Todavia, o silencio a que pretendo me reportar no decorrer deste escrito é aquele que revela uma ausencia de um trabalho psíquico transformador, em que opera a repetição do mesmo, a indiferenciação.
Tendo em mente essas múltiplas formas assumidas pelo silencio, vejamos o que a teoria pulsional, centrada na dualidade pulsão de morte versus pulsão de vida, tem a nos dizer. Regressemos ao trabalho de Freud de 1920 (2006), atravessado pelas inquietudes oriundas da clínica e da cultura, que rompe com o pensar restritivo da lógica do princípio do prazer - pensar que impunha um estranho silencio para as ressonâncias do que não está sob o seu primado. Nesse texto, vamos encontrar o nascimento simbólico da nova dualidade pulsional, que anuncia a existencia da pulsão de morte. Na década que segue, esse conceito vai se desenvolvendo, atingindo sua maturidade e alta relevância para a metapsicologia freudiana em 1930, em O mal-estar na civilização, quando recebe, entre outros, o qualificativo de sua ubiquidade (1969b p. 142), ou seja, sua presença em todos os lugares ao mesmo tempo: a pulsão por excelencia. O que fez Freud atribuir somente à pulsão de destruição essa onipresença? Retornaremos a essa questão a seguir. Essa propriedade merece ser revista à luz do texto de 1924 (2007b) “O problema econômico do masoquismo”.
Ao se defrontar com a problemática do masoquismo, nesse novo cenário, Freud lança as bases para fazer deste o agente fundador da psique, que está implicado em todo o processo de desenvolvimento do psiquismo: “O masoquismo erógeno teria participado de todas as fases evolutivas da libido, extraído delas suas variadas e cambiantes roupagens psíquicas” (p. 110). Eis aí um dos assinalamentos de sua ubiquidade. Seguindo esse percurso, destaco que o masoquismo primário e erógeno é produto da ligação da pulsão de morte pela pulsão sexual, mediado pelo fator determinante da solidariedade-excitatória-sexual (Paim Filho et al., 2011/2014). Esse postulado, juntamente com a proposição formulada no texto sobre o narcisismo (Freud, 1914/2004), em particular sobre o narcisismo primário, oferece elementos para estruturar a ideia de que a pulsão sexual tem sua fonte no objeto. Se assim o for, ela é uma aquisição - produto do investimento libidinal dos objetos primários -, diferentemente da pulsão de morte, que é constitutiva. Creio que essa compreensão fortalece a questão de sua onipresença: podemos ter pulsão de morte sem libido, porém não temos libido sem pulsão de destruição. Como diz a Teogonia: no início era o caos, com seu silêncio inebriante.
Esse tempo das origens - pura pulsão de morte - incita e solicita a demarcar o início da vida psíquica: a ação específica (Freud, 1950[1895]/2003, p. 196) - cujo agente é um semelhante, que sacia a fome e viabiliza o alvorecer da pulsão sexual; ação que vai delineando o pulsional e, nesse processo, trabalha para o surgir da palavra, com suas múltiplas possibilidades de romper e construir significados e ressignificados para o silêncio. Recordemos que, segundo Freud, a palavra tem a missão de amaciar o ato (1926/1969h p. 214), esse que, muitas vezes, vem acompanhado de um silêncio ensurdecedor.
A partir dessa matriz fundamental, fornecida pelo masoquismo primário, vamos ter os seus desdobramentos no masoquismo feminino e no masoquismo moral. Em um trabalho anterior, propus a existência de um masoquismo primário não erógeno (Paim Filho, 2012/2014), primeiro tempo do que viria a ser o erógeno. Ao postular esse tempo primeiro do masoquismo, penso em traumas precoces (impedidos de serem metabolizados), na ausência de história, no irrepresentável, que se manifestam, por exemplo, na compulsão à repetição do mais além do princípio do prazer: descarga em ato, o silêncio do aquém da palavra. Provavelmente, um trauma precoce associado ao que Freud chamou, em 1923 (2007a), de fusão incompleta das pulsões. Observemos fusão incompleta,1 que é diferente de defusão. Defusão comporta a ideia de desligar o que já esteve ligado, enquanto a fusão incompleta remete à ligação que nunca ocorreu, o precariamente ligado nos primórdios do psiquismo do homem: das Ding - a coisa em torno da qual se darão os registros psíquicos, dos seus atributos (Freud, 1950[1895]/2003, p. 205), essa que é inapreensível em sua totalidade, que segue sendo o indicador do encontro, sempre parcial, da pulsão com o objeto: o vazio pulsional das origens, nossa mitologia, com seu silêncio pulsante.
Tomando essa proposição como ponto de referência, proponho-me a refletir sobre sua implicação na gênese do silêncio. Freud, como posto na epígrafe, anuncia a mudez da pulsão de morte - silente e poderosa. Com isso, pareceria que o silêncio é tributário exclusivamente dessa pulsão. Seria assim? Acredito que essa inferência merece ser mais bem escutada. Creio ser pertinente ousar fazer uma discriminação entre pulsão de morte e pulsão de destruição.2 Freud as trata, normalmente, como sinônimas, mas só se refere à pulsão de destruição quando a pulsão de morte está ligada pela libido. Acrescenta, porém, como em 1940[1938] (1969c), que passa a ser chamada de destruição ao ser desviada para fora, deixando então de ser silenciosa. Essa afirmação aciona o surgimento de uma interrogação, respondida por Freud parcialmente: que fora seria esse? Entendo-o sob a perspectiva da lógica imposta pelas instâncias psíquicas e pelo aparelho psíquico como um todo; por exemplo: desvio do id para o eu, do supereu para o eu, ou ainda do eu para o mundo externo, como também do corpo para a psique. Esses dispositivos de dentro e fora - intrapsíquico e extrapsíquico - podem ser exemplificados quando Freud assinala, em 1933[1932] (1969b), a possibilidade de o eu ser tomado como objeto pelo supereu: “O eu pode tomar-se a si próprio como objeto, pode tratar-se como trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer consigo mesmo. Nisto uma parte do eu se coloca contra a parte restante” (p. 77).
Essa compreensão me habilita a fazer a seguinte construção: a pulsão de morte, quando não ligada, remete ao inefável caos pulsional, enquanto conceito-limite entre o somático e o psíquico, ou ainda, nas profundezas do id, é silenciosa, não está submetida a nenhum princípio organizador, pura potência dispersa, mantendo seu caráter conservador - visa apenas a descarga, e seu objeto são todos e ao mesmo tempo nenhum: a silenciosa Deusa da Morte; quando de sua captura pela libido, instauração do masoquismo primário não erógeno e posteriormente o erógeno, põe em marcha o conflito pulsional, Eros buscando ligar e a pulsão de destruição buscando romper: construção e demolição (Freud, 192j/2007a, p. 50). Com esse processo de ligação, aciona-se o disparador para a criação do estado de desejo e começa a se romper o silêncio de nossas origens. A pulsão de morte, na forma de destruição, passa a ter uma meta de desfazer conexões, visando a sua descarga, gerando murmúrios e sussurros; revela ao desejo sua impossibilidade de satisfação plena, uma vez que seu enlaçamento será sempre parcial, pois o objeto fonte da libido é sempre incompleto. Estabelece-se a vigência do princípio de nirvana - tributário do enlaçamento pulsional, comprometido com a meta da pulsão de destruição -, o qual terá como sucedâneo o princípio do prazer, que apesar de sua origem vai opor-se, pelo menos em parte, à tendência zero do princípio primordial.
Consequentemente, a pulsão de destruição, ao estar implicada no trabalho psíquico, deixa de ser silenciosa, na direta proporção em que a libido busca domesticá-la. Contudo, façamos um pequeno parêntese, objetivando esclarecer: Eros tem como meta maior o aglutinar, fusionar, agregar... Sendo assim, estaria comprometido com a homeostasia psíquica, com o que Freud chama de uma possível pulsão de atingir a completude (1920/2006, p. 165). Com esse contexto em mãos, sinto-me inclinado a pensar que Eros também tem como meta o silêncio, a quietude, que a ideia de completude contempla. Freud, referindo-se a Platão em O banquete, recorda o compromisso de Eros com o “desejo de fundir-se em um só ser” (1920/2006, p. 178): estabelecimento do silêncio da fusão completa das pulsões - uma quase morte da pulsão de morte. Logo, podemos deduzir, o silêncio mais absoluto está implicado no acontecer das fusões incompletas e/ou nas fusões completas. O barulho se produz nas diferenças, no conflito, entre as forças que visam desconectar e as que visam conectar. Nem tão ligado que silencie o desejo, nem tão desligado que silencie as vias criadoras do desejo. Como nos adverte Freud: “Um excesso de agressividade sexual transformará um amante num criminoso sexual, enquanto que uma nítida diminuição no fator agressivo torná-lo-á acanhado e impotente” (Freud, 1940[1938]/1969c, p. 174).
Sendo assim, na vigência do masoquismo primário não erógeno, temos uma ruptura incipiente do silêncio, muito aquém da palavra; intensidades que produzem murmúrios, marcadas pela autodestrutividade; suas formas de manifestação se fazem no corpo, como na psicossomática, e/ou em atos caracterizados pelos destinos pré-recalque: transformação no contrário e retorno contra si mesmo. Esse não silêncio, que é quase um silêncio, das intensidades pulsionais, das fusões incompletas, carece de valor simbólico; há nele a ausência de um verdadeiro conflito (pela soberania da pulsão de destruição). Tempo do objeto do anseio, anterior à construção do objeto de desejo (Paim Filho et al., 2016). Entretanto, quando do emergir do masoquismo primário erógeno, temos uma verdadeira ruptura do quase silêncio. O embate pulsional está posto - maior simetria entre essas forças antagônicas. A pulsão de destruição vê-se sob o julgo domesticador de Eros. Decorrente dessa nova configuração da psique, nossa pulsão originária vai impor trabalho à libido para realizar o desejo. Nesse fazer trabalhar, produzirá barulho.
Diferentemente de Freud (1923/2007a, p. 66), entendo que a qualidade de ser irrequieto de Eros é consequência da pressão exercida pela demanda de descarga da pulsão de destruição, e não uma característica intrínseca a ele. Ele por si só também é conservador. Em 1930, ao mencionar a relação amorosa, Freud destaca: “Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de, de mais de um, fazer um único [...] quando alcança [...] recusa-se a ir além” (1969b p. 129). Recusar-se a ir além não significaria uma estase psíquica, permeada pela repetição do mesmo? Não poderia implicar uma morte do desejo? Penso que sim, o silêncio da unicidade, a indiferenciação. Recordemos que na morte e na vida psíquica as intensidades pulsionais com sua dinâmica marcam destinos. Fazer-se um único é destituir-se das singularidades fomentadoras do desejo. Seguindo por essas trilhas, via regressão, resgato o trabalho de 1895 (2003), juntamente com o de 1900 (1969e). Neles encontramos subsídios para afirmar que a experiência de satisfação - mola propulsora do desejo -, quando realizada via identidade de percepção, é indiferenciadora, enquanto a experiência de dor, que implica o não acontecer da identidade de percepção, determina a busca desta pela identidade de pensamento, produzindo diferenciações. Desse modo, na primeira temos a chamada via curta, em que predomina o desejo narcísico: desejo e realizo; na segunda, a via longa, na qual predomina o desejo edípico: desejo - não realizo - trabalho para efetivá-lo. Portanto, a riqueza da psique está no jogo fecundo da dor (o não encontro) com a satisfação (o encontro).
Visando fazer um exercício teórico-clínico, escutemos o sintoma. Sendo essa a nossa meta, creio que o trabalho de 1937 (1969a) “Análise terminável e interminável”, espécie de recomendações finais aos que exercem a psicanálise (Paim Filho, 2012), pode ser um instigante interlocutor, em especial o ponto 6, momento em que Freud revê sua última dualidade pulsional. Nesse rever, destaca três estados ou, ainda, condições: adesividade da libido, libido particularmente livre e inércia psíquica (1937/1969a, pp. 274-275).
Contudo, antes de prosseguirmos, penso ser importante assinalar que, nesse texto de 1937, Freud vai declarar sua criptomnésia e a consequente dívida para com o filósofo grego Empédocles no que diz respeito à sua concepção da dualidade pulsional de 1920. Refere que o filósofo já havia anunciado, em 495 a.C., o postulado de que o universo e a alma humana eram decorrentes de duas forças primordiais: amor (Liebe) versus discórdia (Streit). Discórdia, deusa que instaura incertezas, questiona e desacomoda - não lhe cabe responder indagações. Exemplo clássico de sua intervenção encontramos na pré-história da Guerra de Troia, quando do casamento da deusa Tétis com o mortal Peleu. Ao não ser convidada para a festa, irada, vai e lança um pomo de ouro com a inscrição: “Para a mais bela.” Esse pomo vai ser objeto de disputa entre Afrodite, Atena e Hera. Para decidir essa disputa - narcísica -, é indicado Páris, o troiano, que escolhe Afrodite a fim de receber a mão da mais bela mortal: a grega Helena. Observemos que a deusa Discórdia é responsável por escutar e revelar o silencioso embate narcísico entre as imortais, mas não pelo narcisismo destrutivo dessas deusas e dos mortais, guerreiros gregos e troianos: prevalência da letalidade do narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1930/1969f, p. 136). Lembremos que a palavra discordar remete à ideia de desacomodar, que postulo como a tarefa maior da deusa Discórdia e de seu correlato, a pulsão de destruição.
Visando não perpetuar a criptomnésia freudiana, é importante ratificar: Freud vai igualar a pulsão de destruição à discórdia: “Os dois princípios fundamentais de Empédocles [...] são tanto em nome quanto em função os mesmos que nossas duas pulsões primevas, Eros e destrutividade” (1937/1969a, p. 280). Sendo assim, não estaria ele nos legando a possiblidade de pensarmos na capacidade dessa pulsão de produzir desorganização e, com isso, ruídos variados? Entendo que sim. Diante desse escopo, temos subsídios para avançar mais além da estreita configuração que faz da pulsão de morte uma mera força que visa a descarga. Ao ser capturada pelo aparato psíquico, passa a exercer também a função de fazer uma exigência de trabalho: possível potencial criativo - discordar ou, ainda, acordar: do silêncio do caos pulsional, o sono eterno, para as turbulências da alma. Ou então, nas palavras da poetisa: “O silêncio do espaço em branco; a solidez das palavras; os segredos ocultos fluidos; do caos - ainda mais” (Lamas, 2011, p. 28).
Em face desse contexto, lancemos um olhar para a neurose. Como sabemos, nela o sintoma é produto do retorno do recalcado; quando está sintónico, ou seja, estabilizado à economia psíquica, podemos dizer que se encontra silencioso, correspondendo às demandas da formação de compromisso. Em termos pulsionais, estamos em um terreno em que Eros cumpriu com sua proposição: acalmar a pulsão de destruição, silenciando o conflito, realizando o desejo. Resgato, diante dessa concepção, a proposição da adesividade da libido, com sua predisposição à lealdade catexial (Freud, 1937/1969a, p. 275), adesividade que me faz refletir sobre o amálgama libidinal (fusão completa) - prevalência de um desejo narcísico - do que se recusa a deslizar: “os sintomas são a atividade sexual dos neuróticos” (Freud, 1905/1969j, p. 153) - por exemplo, o corpo simbólico proporcionando satisfações substitutivas. Por esse percurso, somos levados a nos confrontar com a necessidade de que o analista exerça a função de ruptura do silêncio estabelecido, que essa configuração do sintoma revela: possibilidade de pór em questão a lealdade catexial, mantendo o compromisso de problematizar as soluções estruturadas pela psique - produzir desacordo diante dos acordos instaurados, muitas vezes de forma unilateral: lealdade a quem e/ou a quê? Provavelmente, aos objetos primários, com seus silenciosos ideais. A interpretação como instrumento facilitador para revelar o desejo recalcado, conferindo voz à verdade histórica.
No entanto, quando da vigência de um sintoma distônico, a economia psíquica apresenta-se desestabilizada, a formação de compromisso se fez ineficaz: isso gera turbulência - a quebra do silêncio. Esse sintoma revela a assimetria pulsional, a discórdia, a pulsão de destruição inquietando excessivamente Eros - prevalência de um desejo edípico -, fazendo-o deslizar, trabalhar em busca de outros caminhos para conter a força pulsional. Aqui nos deparamos com a libido particularmente livre, que produz desassossego, gerando uma situação paradoxal por um lado, possibilidade de conexão com o sofrimento psíquico por outro, revelando a impossibilidade de estabelecer um vínculo mais perene. Nesse contexto, o analista deve estar comprometido com a função de fazer ligação, conter o desligado, através do investimento libidinal - silenciar esse particular jeito de submissão da libido à pulsão de destruição. Parafraseando Freud: do escrito na água (1937/1969a, p. 275) para o escrito, com suas múltiplas possibilidades de retranscrição, em terra. Interpretação e construção como agentes da mudança psíquica.
Seguindo nosso roteiro, escutemos o silêncio oriundo do além do universo das representações, que tem no ato, desprovido do amaciado pela palavra, seu representante maior. Nesse universo, temos o enigma da “paralisia” psíquica, sua inércia, que nos desafia a equacionar a dinâmica pulsional. Como entender esse encontro pulsional? Quem paralisa quem? Penso aqui na letalidade da pulsão de destruição. Sim, a pulsão de destruição, indomada pela libido, determinando a paralisia desta. Seu caráter demoníaco, nessa hipotética fusão incompleta, incorpora a libido, originando a repetição do mesmo, a repetição silenciosa dos imperativos categóricos do mais além: o traumático, o que se mantém, segundo Freud (1937/1969a), imutável, fixo e rígido - o colapso do jogo dialético da atração e da repulsa. Prevalência de uma organização patológica, descortinando um baixo grau de entropia psíquica3 (Freud, 1937/1969a, p. 275). Esse estado, por si só, é irreversível, provavelmente estabelecido na vigência do masoquismo primário não erógeno. Nesse palco, não erótico, temos a possibilidade de assistir a um espetáculo que faz do corpo sua forma primordial de comunicação: a psicossomática. A letalidade da pulsão de destruição - silenciosamente - lesando o órgão. O analista convocado a construir, a partir dos traços e impressões, representações - buscando algum grau de reversibilidade; representações que possam fazer falar - não silenciar - a verdade material que esses traumas contêm: um sentido, porém sem um significado (Paim Filho, 2015).
Concluindo, o silêncio, em seu desafio de se fazer escutar, convoca-nos a não silenciar diante dos sinistros enigmas que traz consigo. Refletir sua origem metapsicológica, pelo vértice pulsional, pode ser um bom caminho para tecer possíveis deciframentos. Nesse sentido, tal qual uma esfinge, confere uma corporeidade interrogativa à necessidade de criar instrumentos técnicos e teóricos que lhe deem fundamentação. Escutar o silêncio é não deixar silenciar, ou abafar, a necessidade de fomentar o interjogo da morte e da vida, que evoca e provoca a refletir o ser pulsional do humano: conceito-limite da metapsicologia freudiana, que instiga o desejo de ampliar os limites da alma. Sendo assim, deixo assinaladas, como estímulo para reflexões futuras, palavras de Freud que constam de sua carta a Einstein: “Entretanto, não devemos ser demasiadamente apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhuma dessas duas pulsões é menos essencial do que a outra; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambas” (1933[1932]/1969g, p. 252).
Notas
1 Esclareço que as expressões fusão incompleta e completa têm um sentido relativo, baseado no fator comparação entre elas. A incompleta refere-se a um grau de fusão incipiente - quase uma não fusão; a completa, por outro lado, aplica-se a fusões mais intensas: a mais completa em sua incompletude.
2 Nesse sentido, ganha contornos de relevância a afirmação freudiana de 1937: “Esses fenômenos constituem indicações inequívocas da presença de um poder na vida mental que chamamos de pulsão de agressividade ou de destruição, segundo seus objetivos, e que remontamos à pulsão de morte original da matéria viva” (1969a, p. 276). Destaco a ideia da pulsão de destruição remontando à pulsão de morte original.
3 Entropia: conceito oriundo da termodinâmica, que se ocupa do estudo do movimento da energia e de que forma se dá o movimento. Freud o traz da física visando associá-lo com a dinâmica da energia psíquica. Designa o grau de desordem de um sistema. Essa concepção permite teorizar a relação entre os processos reversíveis e irreversíveis.
Referências
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Correspondência:
Ignácio Alves Paim Filho
Rua Felix da Cunha, 437/410
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Tel.: 51 3321-3025
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Recebido em 03.11.2016
Aceito em 17.11.2016