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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016
RESENHAS
E o pai? Uma abordagem winnicottiana
Carlos Alberto Plastino
Psicanalista, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-Rio e professor aposentado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ
Organizadora: Claudia Dias Rosa
Editora: DWW, São Paulo, 2014, 336 p.
Resenhado por: Carlos Alberto Plastino
A coletânea publicada sob o título E o pai? Uma abordagem winnicottiana, organizada por Claudia Dias Rosa, constitui uma valiosa e oportuna contribuição aos debates em torno de questões fundamentais da teoria psicanalítica. Os capítulos que formam a obra abordam importantes aspectos dos diversos papéis que cabem ao pai ao longo do processo de desenvolvimento emocional, papéis que, como demonstra o primeiro artigo da coletânea, de autoria da organizadora, extrapolam em muito sua intervenção no desenvolvimento do drama edipiano.
Na perspectiva elaborada pela psicanálise ortodoxa, profundamente marcada pelas crenças e práticas largamente hegemônicas na época de Freud, o papel paterno foi compreendido no essencial como aquele que, representando a lei social, interdita o desejo incestuoso do filho e promove a imposição da instância superegoica. Essa compreensão limitada do papel paterno e as concepções elaboradas em torno dela - tendo como pano de fundo as ideias de conflito, repressão e dominação - associaram o processo de castração ao esmagamento da matriz materno-infantil, esmagamento sustentado na desvalorização das experiências que presidem a vivência inaugural do infante humano, centradas na comunicação corporal, intuitiva e afetiva. Assim, claramente inspirado no imaginário patriarcal encampado por Freud, esse processo constitui também uma peça central na reprodução desse imaginário.
A transformação do papel paterno operada na vida social no último século, bem como os conhecimentos tornados possíveis pela extensão da experiência psicanalítica aos primeiros anos de vida e o trabalho com pacientes psicóticos e borderline, obrigaram a modificar profundamente o papel atribuído ao pai pela teoria ortodoxa. O peso da tradição, todavia, ofuscou a cabal compreensão dessa transformação, mesmo para muitos que, através da leitura da obra de Winnicott, afastaram-se em diversa medida das crenças que estruturam a psicanálise ortodoxa. Corrigir os equívocos existentes nos estudos sobre a obra de Winnicott em torno do papel atribuído ao pai é o que se propõe essa coletânea, a qual, por meio de uma leitura detalhada da obra do autor inglês, mostra que a centralidade que ele outorga às relações mãe-bebê não significa que a problemática referida ao papel do pai não tenha merecido sua atenção. Pelo contrário, não apenas reconhece na sua obra a enorme importância do papel paterno como o faz não restringindo essa importância a sua decisiva intervenção no estágio edípico, reconhecendo os diversos papéis que o pai cumpre ao longo das diversas fases do desenvolvimento emocional do indivíduo.
Essa mudança de percepção, de profundas consequências teóricas e clínicas, não significa minimizar a importância da descoberta de Freud em torno da questão edipiana, embora modifique e enriqueça sua compreensão. É que, se a fonte da qual surge o saber produzido pela psicanálise é a experiência clínica, as descobertas operadas nessa experiência não devem ser confundidas com a sua elaboração teórica. Isso porque entre os conhecimentos adquiridos na experiência clínica e a elaboração teórica dessas experiências existe a necessária mediação da reflexão teórica, inevitavelmente tributária das “crenças” dominantes em cada época histórica em torno de questões fundamentais, como a forma de ser da realidade, do conhecimento, do homem e das relações entre os homens. A clareza quanto à existência dessa mediação é fundamental para o irrenunciável exercício da crítica e condição para o progresso da elaboração teórica, progresso que percorre os caminhos abertos tanto por novas experiências clínicas quanto por transformações operadas no imaginário dominante pela evolução geral das ciências e saberes.
A ignorância dessas complexas relações entre experiência, elaboração teórica e imaginário dominante leva inevitavelmente ao enrijecimento das formulações teóricas, transformadas em camisas de força. No campo da teoria psicanalítica, esse enrijecimento esterilizante da teoria é, em larga medida, representado pela teoria metapsicológica, e isso apesar das reiteradas afirmações de Freud com relação à provisoriedade de suas formulações metapsicológicas e mesmo das sucessivas modificações introduzidas em seu pensamento. Isso se deve, creio, ao fato de que, mesmo tendo modificado, no registro da metapsicologia, suas teorias tópica, pulsional e da angústia, em momento algum Freud questionou as crenças fundamentais que embasaram seu trabalho, crenças solidamente ancoradas na concepção patriarcal do mundo, da vida e das relações humanas, reproduzidas no advento da modernidade através da hegemonia alcançada pelas crenças que organizam o paradigma da modernidade.
Esse foi o motivo fundamental, creio, que levou Winnicott (1987/1990) a se afastar da metapsicologia, a qual - escreve em correspondência para Anna Freud - dá por resolvido problemas que não estão. E, de fato, foi por ter encampado acriticamente a concepção do caráter fundamentalmente conflitivo - porque naturalmente determinado - das relações humanas e da vida social, por ter ainda aderido acritica-mente à concepção ontológica dualista, que Freud fez do conflito o ponto nodal das relações humanas, e da repressão e dominação a condição essencial para a organização psicológica dos homens e das sociedades humanas. Poderia certamente arguir-se que o fundador da psicanálise teorizou uma realidade que apresentava as características citadas. Na sua experiência clínica, lidava com adultos neuróticos pertencentes a famílias patriarcais, podendo assim constatar reiteradamente a vigência das modalidades de relações humanas presididas pelas crenças do imaginário patriarcal. Sua filiação acrítica às crenças do paradigma da modernidade, em particular, nesse caso, sua crença na vigência irrestrita do determinismo natural, lhe impediu compreender que as sociedades que construímos e nós mesmos somos consequências de processos históricos e nossa estreita relação com a natureza é marcada não pelo determinismo que em larga medida rege no mundo da matéria, mas pela criatividade.
O capítulo que abre o livro, de autoria de Claudia Dias Rosa, desenvolve uma cuidadosa e detalhada leitura do papel paterno ao longo do desenvolvimento emocional, desde segundo ambiente para o bebê, no começo do desenvolvimento, até o estágio das relações triangulares, no qual se insere a experiência do drama edipiano, quando assume o papel privilegiado de auxiliar a criança na elaboração das questões do período. Como assinala a autora, a compreensão do papel do pai ao longo do processo de amadurecimento de um bebê, inicialmente no interior de uma família e progressivamente em ambientes mais amplos, não é uma questão secundária nem meramente teórica, tendo implicações clínicas que não podem deixar de ser analisadas. Essa compreensão torna evidente uma diferença essencial entre a abordagem de Winnicott e a elaborada pela psicanálise ortodoxa. Nesta última, as relações familiares são pensadas em termos de um jogo de representações (fantasias) referido a conflitos internos vividos pelo bebê e com a função precípua de exercer a censura e a repressão da instintualidade, enquanto na abordagem winnicottiana essas relações são pensadas como constituindo o ambiente que provê cuidados reais, sendo sua finalidade fornecer proteção aos novos indivíduos, facilitando o desenvolvimento espontâneo de suas tendências naturais.
Tendo como pano de fundo essa diferença essencial, os trabalhos que compõem a coletânea se debruçam sobre diversas questões de grande relevância teórica e clínica. Zeljko Loparic discute a importante questão do monoteísmo e das diferenças que, em torno desse tema, separam as perspectivas elaboradas por Freud e por Winnicott. A contribuição de Laura Dethiville aborda o papel simbólico do pai, enquanto a de André Martins reflete sobre as funções do pai na inserção da criança na realidade compartilhada. A primeira parte da coletânea, que privilegia aspectos teóricos, inclui ainda trabalhos de Maria José Ribeiro, Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian, João Paulo Barretta e Irene Borges-Duarte. A segunda parte, que privilegia a perspectiva clínica, inclui os textos de Elsa Oliveira Dias, sobre questões referidas à identificação parental e à homossexualidade masculina, e de Conceição Aparecida Serralha, sobre a criança agressiva e o pai. Inclui ainda trabalhos clínicos sobre a problemática do falso si-mesmo no contexto edípico (Gabriela B. Galván), sobre o adolescente e sua inserção no mundo (Tânia Corrallo Hammoud), sobre um caso de impotência sexual (Maria Cecília S. S. Fonseca), sobre o lugar do pai na regressão clínica (Flavio Del Matto Faria) e sobre a função do avô (Alfredo Naffah Neto).
Em síntese, trata-se de uma obra coletiva que constitui uma valiosa contribuição à discussão do papel paterno na concepção teórica da psicanálise, inadiável na medida em que a profunda crise que atravessa a sociedade patriarcal exige a revisão das crenças que embasaram a elaboração teórica da psicanálise ortodoxa. Profundamente vinculada a questões referidas à clínica psicanalítica, é de grande interesse para profissionais e estudantes das disciplinas no campo da psicologia e da saúde emocional. É também uma valiosa contribuição para todos aqueles que, no âmbito das ciências humanas e sociais, se interessam pelas transformações em curso tanto na vida social quanto nos processos de constituição subjetiva.
Referência
Winnicott, D. W. (1990). O gesto espontâneo (L. C. Borges, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1987) [ Links ]
Correspondência:
Carlos Alberto Plastino
Avenida Lineu de Paula Machado, 117, ap. 301
22470-040 Rio de Janeiro, RJ
caplastino@gmail.com