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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

 

INTERFACES

 

Parentalidade e diversidade cultural

 

Parenthood and cultural diversity

 

Parentalidad y diversidad cultural

 

Parentalité et diversité culturelle

 

 

Marie Rose MoroI; Tradução Claudia Berliner

IProfessora de psiquiatria da criança e do adolescente na Universidade Paris Descartes. Chefe de serviço da Casa de Solenn, Casa dos Adolescentes, do Hospital Cochin. Diretora da revista transcultural L'Autre. Presidente da Associação Internacional de Etnopsicanálise (AIEP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A cultura da parentalidade é um tema muito importante no século XXI, tanto no plano social quanto no plano clínico. Examinaremos a questão do ponto de vista da clínica transcultural, que associa de forma complementar antropologia e psicanálise. Iremos analisá-la durante a gravidez e no estabelecimento das interações precoces pais-filhos com a ajuda de vinhetas clínicas. Estudaremos também as implicações para a segunda geração de crianças nascidas na França nas famílias de migrantes, particularmente em relação ao saber e ao mundo exterior. Mostraremos a importância da contratransferência cultural íntima e política, que relega o outro a uma posição inferior, negando suas competências, seus desejos e sua singularidade.

Palavras-chave: parentalidade, clínica transcultural, contratransferência cultural, filhos de imigrantes, relação com o saber


ABSTRACT

In both the social and the clinical levels, the culture of parenthood is a very important matter in the 21st century. We shall discuss this issue from the perspective of the transcultural practice, which provides a complementary association of anthropology with psychoanalysis. We shall analyze, by employing clinical vignettes, parenthood throughout pregnancy, and while the earliest interactions between parents and child are being established. We shall also study the influence or effects upon the second generation of children from migrant families, especially regarding knowledge and the external world. We shall show the important role of a cultural countertransference, which is both intimate and political. This countertransference places the other in an inferior position by denying their competences, desires, and singularity.

Keywords: parenthood, transcultural clinical practice, cultural countertransference, immigrants' children, relation with knowledge


RESUMEN

La cultura de la parentalidad es un tema muy importante en el siglo XXI, tanto a nivel social como clínico. Examinaremos la cuestión desde el punto de vista de la clínica transcultural que asocia de forma complementaria la antropología y el psicoanálisis. La analizaremos a lo largo del embarazo y en el establecimiento de las interacciones precoces padres-niños con la ayuda de viñetas clínicas. Estudiaremos también las implicaciones para la segunda generación de niños nacidos aquí en las familias de migrantes, en particular en relación con el saber y el mundo exterior. Mostraremos la importancia de la contratransferencia cultural íntima y política, que relega al otro a una posición inferior, que niega sus competencias, sus deseos y su singularidad.

Palabras clave: parentalidad, clínica transcultural, contratransferencia cultural, hijos de inmigrantes, relación con el saber


RÉSUMÉ

La culture de la parentalité est un sujet très important au XXI e siècle sur le plan social aussi bien que sur le plan clinique. Nous examinerons la question du point de vue de la clinique transculturelle, laquelle associe de façon complémentaire l'anthropologie et la psychanalyse. Nous irons l'analyser pendant la grossesse et dans l'établissement des interactions précoces parents-enfants avec l'aide de vignettes cliniques. Nous étudierons également les implications qui touchent la seconde génération d'enfants nés en France au sein de familles de migrants, particulièrement par rapport aux connaissances et au monde extérieur. Nous démontrerons l'importance de la contratransférence culturelle intime et politique, qui relègue l'autre à une position inférieure, tout en niant ses compétences, ses envies et sa singularité.

Mots-clés: parentalité, clinique transculturelle, contratransférence culturelle, enfants de migrants, rapport aux connaissances


 

 

Necessidade de um olhar benevolente para a parentalidade em toda a sua diversidade cultural

A cultura da parentalidade representa, para psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e neuropsiquiatras, e também para filósofos, professores, educadores e políticos, o desafio do século XXI (Gauchet, 2004). No entanto, é o mais antigo ofício do mundo, o mais universal, o mais complexo sem dúvida, e talvez, inclusive, o mais impossível, mas também o mais plural (Moro, Réal & Baubet, 2005; Rabain-Jamin, 1989; Stork, 1986). O que importa, poderiamos dizer, é encontrar a maneira própria de ser pai/mãe, de transmitir o vinculo, a ternura, a proteção de si mesmo e dos outros, a vida.

Parentalidade é uma palavra estranha, que forjamos em diversas linguas, nesses últimos anos, a partir da palavra inglesa. Fizemos um neologismo em francês, assim como em espanhol, em italiano e, sem dúvida, em muitas outras linguas. De certa forma, é como se tivéssemos, recentemente, tomado consciência do grande valor que todos os pais do mundo têm nas mãos. Também constatamos que alguns pais, excessivamente vulneráveis ou em situações difíceis, às vezes inumanas, ficam tão ocupados criando estratégias de sobrevivência, em todos os sentidos do termo, psíquicas ou materiais, que ou enfrentam dificuldades para transmitir, ou não têm outra opção senão oferecer a precariedade do mundo e suas complexidades. Por isso, é importante estudar as situações de imigração que produzem nos pais transformações e, às vezes, rupturas, as quais complicam o estabelecimento da relação pais-bebês se a variável imigração não for levada em conta. Além do mais, as imigrações se dão em todas as sociedades modernas, múltiplas e mestiças, e devem ser motivo de nossa preocupação clinica. A partir do momento em que consideramos essa variável, o risco é transformado em potencialidades criativas, tanto para as crianças e suas familias quanto para os profissionais, como mostraremos por meio da experiência francesa de acolhimento e cuidados de bebês (Moro, 2010). Compreender, cuidar e acolher melhor os imigrantes e seus filhos na Europa é a maior tarefa que temos para a prevenção e a clinica precoce inscrita na sociedade tal como ela é.

 

Componentes da parentalidade

Não nascemos pai/mãe, tornamo-nos pai/mãe... A parentalidade se constrói a partir de diversos componentes. Alguns são coletivos e pertencem a toda a sociedade, mudam com o tempo, podem ser históricos, jurídicos, sociais ou culturais. Outros são mais intimos, privados, conscientes ou inconscientes, e pertencem a cada um dos pais enquanto pessoas e enquanto futuro pai ou mãe, ao casal e à própria história familiar do pai e da mãe. Aqui entra em jogo o que se transmite e o que se esconde, os traumas infantis e a forma como cada um pôde tapá-los. Existem, ademais, outros fatores próprios da criança e que são aqueles que transformam os progenitores em pais. Alguns bebês são mais bem-dotados que outros; alguns nascem em condições que favorecem a tarefa dos pais; outros, por suas condições de nascimento (prematuridade, sofrimento neonatal, deficiência física ou psíquica.), têm de vencer vários obstáculos e mobilizar múltiplas estratégias, geralmente custosas, para entrar em relação com o adulto atônito. O bebê, como sabemos pelos trabalhos de Cramer, Lebovici, Stern e muitos outros, é um interlocutor ativo na interação pais-filhos e, através desta, na construção da parentalidade. Ademais, contribui para a emergência do maternal e do paternal nos adultos que o cercam, o carregam, o alimentam e lhe proporcionam prazer, num intercâmbio de atos e afetos que caracteriza os primeiros momentos da vida da criança.

Há mil e uma maneiras de ser pai ou mãe, como nos mostram sociólogos e antropólogos (Lallemand et al., 1991). Toda a dificuldade reside em conseguir deixar espaço para que brotem as potencialidades e para nos abstermos de qualquer juízo sobre "a melhor maneira de ser pai ou mãe". Mas esse é um trabalho difícil, já que a tendência natural de todo profissional é pensar que sabe melhor que os pais como ser com a criança, quais são suas necessidades, suas expectativas... Nosso papel, então, seria não tanto dizer como se deve ser, ou, até, como se deve fazer, mas permitir que brotem as capacidades parentais e apoiá-las. Portanto, elementos sociais e culturais participam da construção da função parental. Os elementos culturais têm uma função preventiva por permitirem antecipar como tornar-se pai/mãe e, se necessário, dar um sentido aos acontecimentos cotidianos na relação pais-filho e prevenir a instalação de algum tipo de sofrimento.

Os elementos culturais se misturam e se unem aos elementos individuais e familiares de maneira profunda e precoce. Embora acreditássemos ter esquecido nossos vínculos e relações míticos, culturais, fantasmáticos, a gravidez, por seu caráter iniciático, nos faz recordá-los. Como se proteger no exílio? Como ter bebês lindos (Lallemand et al., 1991)? Em certos lugares, não se pode anunciar a gravidez; em outros, é preciso evitar comer alguns peixes ou tubérculos que amolecem quando cozidos; em outros ainda, também o marido não pode comer certos alimentos durante a gestação de sua mulher; em outro lugar, é preciso esconder seus sonhos, interpretá-los e respeitar as demandas feitas neles, já que nos sonhos é a criança que fala. Esses elementos da ordem do privado no exílio (em que não são compartilhados pela sociedade) às vezes contradizem a lógica externa dos cuidados médicos, psicológicos, sociais e culturais. A seguir vem o parto, momento técnico e público - dá-se à luz no hospital sem a presença das pessoas próximas. Também existem mil e uma maneiras de parir, de receber a criança, de lhe apresentar o mundo e, depois, de pressentir suas mudanças, às vezes seu mal-estar. Todos esses "pormenores", reavivados em situação de crise, reativam representações, às vezes adormecidas ou que acreditávamos estar superadas.

Em nome de uma universalidade vazia e de uma ética reducionista, não integramos essas lógicas complexas, sejam elas sociais ou culturais, em nossos dispositivos assistenciais e em nossas teorizações. Raramente nos interrogamos sobre a dimensão cultural da parentalidade, mas sobretudo não consideramos que essas formas de pensar são úteis para estabelecer uma aliança, para compreender, prevenir, tratar. Consideramos, sem dúvida, que a técnica é nua, sem impacto cultural, e que basta aplicar um protocolo para que os atos se realizem corretamente.

No entanto, como diversas experiências clínicas mostram (Moro et al., 2005), essas representações compartilhadas são de uma eficácia certa. De um ponto de vista teórico, renovam nossa forma de pensar, nos obrigam a nos descentrarmos, a complexificar nossos modelos e a nos desfazermos de nossos juízos precipitados. Pensar essa alteridade significa permitir a essas mulheres viver as etapas da gravidez e da parentalidade de maneira não traumática e se familiarizar com outras formas de pensar, outras técnicas... Pois a imigração traz consigo essa necessidade de mudança. Ignorar essa alteridade supõe não só se privar do aspecto criativo do encontro, mas também correr o risco de que essas mulheres não sejam incluídas em nossos sistemas de prevenção e assistência. Implica também obrigá-las a um pensamento e a uma vida solitários: para pensar precisamos coconstruir juntos, trocar, confrontar nossas percepções com as do outro. Quando isso não é possível, o pensamento se apoia apenas nele mesmo e em suas próprias sensações. Essa não confrontação pode, também, conduzir a uma rigidez, a um retraimento psíquico e identitário. O que me modifica é a troca com o outro.

 

Transparência psíquica/transparência cultural

Sabemos que, além dessas dimensões sociais e culturais, as funções maternas e paternas podem ser afetadas pelas vicissitudes do funcionamento psíquico individual, por antigos sofrimentos não mitigados que reaparecem de forma às vezes brutal no momento de construir a própria descendência: todas as formas de depressão pós-parto, inclusive de psicoses, que conduzem ao sem-sentido e à errância. A vulnerabilidade das mães, de todas as mães, durante esse período já é bem conhecida e teorizada, sobretudo a partir do conceito de transparência psíquica (Bydlowski, 1991) - por transparência entendemos o fato de que, no período perinatal, o funcionamento psíquico da mãe é mais legível, mais fácil de captar do que de costume. Com efeito, as modificações da gravidez fazem com que nossos desejos, nossos conflitos, nossos movimentos se expressem mais facilmente e de forma mais explícita. Por outro lado, revivemos os conflitos infantis que se reativam, em particular as manifestações edípicas. Depois, o funcionamento se torna novamente opaco. Essa transparência psíquica é menos reconhecida nos pais, que no entanto também atravessam múltiplas turbulências ligadas à revivescência de seus próprios conflitos, à atualização de sua própria posição de filho e ao trânsito de filho a pai. Eles os revivem e expressam mais diretamente do que de costume. O período perinatal autoriza uma regressão e uma expressão específicas.

O exílio apenas potencializa essa transparência psíquica que aparece em ambos os pais, de maneira diferente nos planos psíquico e cultural. No plano psíquico, expressa-se pela revivescência de conflitos e exteriorização de emoções. No plano cultural, pelo mesmo processo, mas aplicado às representações culturais, às diversas maneiras de fazer e de dizer próprias de cada cultura. Todos esses elementos culturais, que acreditávamos pertencer à geração precedente, são reativados, tornam-se de súbito importantes e preciosos; voltam a ganhar vida para nós. Convém, então, propor aqui a imagem de transparência cultural para pensar e imaginar o que esses pais atravessam. A relação com a cultura de seus pais muda e, em consequência, muda também a relação com eles.

 

Por uma prevenção precoce das vicissitudes da parentalidade

Nessa realidade em que diferentes planos interagem, a dimensão psicológica ocupa um lugar específico em termos de prevenção e assistência. A prevenção começa, com efeito, desde a gravidez, ajudando as mães em dificuldade a pensar o bebê que vai nascer, a investi-lo, a acolhê-lo, apesar da solidão em que vivem, solidão social, mas sobretudo existencial. A cultura compartilhada permite antecipar o que vai ocorrer, pensá-lo, proteger-se. Serve de suporte para construir um espaço para o futuro filho. As vicissitudes dessa construção do vínculo pais-filho encontram na experiência do grupo social os elementos nucleares que dão sentido e que, na imigração, são bem mais difíceis de apreender. Os únicos pontos que permanecem, então, são o corpo e o psiquismo individual; o resto é inconstante e precário. Em relação aos outros pontos, as mulheres autóctones em situação de ruptura social, também isoladas, veem-se sozinhas para fazer todo o trabalho de humanização do bebê, próprio de todo nascimento - o filho é um estranho que é preciso aprender a conhecer e reconhecer.

Durante o período perinatal são necessários os ajustes entre a mãe e o bebê, mas também entre marido e mulher. É possível haver disfunções, às vezes inevitáveis, mas em geral transitórias se interviermos suficientemente cedo. Para isso, têm de ser identificadas em sua tradução somática ou funcional, em demandas às vezes difíceis de formular, já que não se sabe a quem dirigi-las nem como fazê-lo. Faz-se necessário, então, aprender a reconhecer o desamparo e a dúvida das mães imigrantes nas pequenas queixas (queixas de ordem somática, queixas em relação ao bebê, pedidos de ajuda social etc.). É preciso, sobretudo, permitir que o digam em sua língua quando necessário, com a intermediação de outras mulheres da comunidade.

A prevenção precoce se dá desde o início da vida, período crucial para o desenvolvimento do bebê. É também nesse momento que se constrói o lugar da criança na família. Prevenção, por certo, mas assistência também. As dificuldades cotidianas com as famílias imigrantes, ou socialmente vulneráveis, e seus filhos nos obrigam a modificar nossa técnica de atenção psicológica, assim como nossa teoria, para adaptá-las a essas novas situações clínicas cada vez mais complexas. Devemos mudar nossas formas de fazer, mas também nossas formas de pensar (Réal & Moro, 1998). Trata-se, então, de modificar nosso próprio enquadre para acolher de forma adaptada essas crianças e seus pais ou encaminhar para um atendimento especializado, se for o caso, no âmbito de uma rede assistencial que possibilite a comunicação e idas e vindas entre os espaços de prevenção e de assistência, numa necessária complementaridade.

Analisemos algumas etapas-chave para a mãe imigrante e seu bebê.

 

Gravidez e parto no exílio

Tradicionalmente, a gravidez é um momento iniciático no qual a futura mãe se apoia nas outras mães do grupo: acompanhamento, preparação para as diferentes etapas, interpretação de sonhos... (Moro, 2010). A imigração supõe várias rupturas nesse processo de apoio e de construção de significado. Primeiro, uma perda do acompanhamento por parte do grupo, do apoio familiar, social e cultural, e a impossibilidade de dar um sentido culturalmente aceitável para as diversas disfunções, como a tristeza da mãe, o sentimento de incapacidade, as interações mãe-bebê desarmônicas... Ademais, as mulheres deparam com modos de intervenção médica que não respeitam os meios de proteção tradicionais. Para essas mulheres, essas práticas médicas ocidentais são, às vezes, violentas, impudicas, traumáticas, "pornográficas" até (algumas pacientes minhas utilizaram esse termo). Percebi de forma clara a magnitude da efração vivida por mulheres imigrantes grávidas logo no começo de meu trabalho com elas; refiro-me a mulheres imigrantes procedentes de regiões rurais do Magreb, da África negra, de Sri Lanka. Para as mulheres de origem urbana, esses processos de tanta violência existem evidentemente, mas, sem dúvida, de forma menos explícita.

 

Cada dia é uma vida

Recebo Médina, uma mulher soninquê de Mali, encaminhada por causa de uma depressão pós-parto com elementos aparentemente delirantes, que, depois de uma avaliação transcultural, constatei serem a expressão cultural de uma vivência traumática. Apesar da expressão singular, não havia delírio, apenas trauma. Médina é uma linda mulher, alta e esbelta, com um olhar profundamente triste. Em nosso primeiro encontro, está vestida com uma túnica africana de um amarelo vivo e um pano da mesma cor em volta do cabelo. Seu rosto grave está marcado por escarificações rituais: um traço vertical na altura do queixo, dois traços horizontais na altura dos pómulos e um traci-nho vertical na testa. Fala em soninquê com uma voz monocórdia. De vez em quando, as lágrimas correm por seu rosto; ela as ignora e continua falando da total incompreensão do que lhe aconteceu enquanto seu filho, Mamadu, ainda estava no ventre. Nesse dia, carrega Mamadu nas costas. Ele tem 2 meses e é seu primeiro filho: é uma criança pequenina, come mal, chora muito, geme de forma dolorosa. Não conseguiu amamentá-lo - ele mamava com pouca força; além disso, Médina estava convencida de não ter leite ou, pelo menos, de não ser suficientemente nutritiva para seu bebê. Está na França faz um ano e veio para se encontrar com o marido, que mora neste país há oito anos.

Vários momentos podem funcionar como verdadeiras efrações culturais e psíquicas para essas mulheres rurais imigrantes. Mas, antes de analisá-los, insistamos no fato de que o que é violento é o ato em si efetuado sem preparação. Essas intervenções técnicas estão intimamente vinculadas ao contexto cultural ocidental. Para aqueles que não o compartilham, esses atos, pelo que carregam de implícito, se convertem em verdadeiros indutores de efrações psíquicas. As mulheres não conseguem antecipá-los e representá-los. A decisão que se impõe não é a de privá-las deles - isso seria totalmente intolerável tanto eticamente quanto do ponto de vista da saúde pública. Privá-las deles seria excluí-las mais ainda de nosso sistema de saúde e contribuir para sua marginalização social. Pelo contrário, trata-se de realizar essas intervenções de tal modo que sejam eficientes e atinjam realmente seus objetivos. Para adaptar nossas estratégias de prevenção e de atenção, somos obrigados a pensar essa alteridade, para que, longe de ser um obstáculo à interação, seja uma oportunidade para novos encontros.

Quais são os momentos que podem funcionar como possíveis efrações psíquicas para as mulheres imigrantes grávidas? Retomemos, para descrevê-los, o percurso de Médina tal e como ela o conta.

 

A declaração de gravidez

Tradicionalmente, a gravidez deve ser ocultada pelo maior tempo possível ou, pelo menos, deve-se falar a respeito o menos possível para não induzir a inveja da mulher estéril, da que não tem filho homem, da que tem menos filhos, da estrangeira... Isso explica o medo que Médina sentiu quando foi ver a assistente social para que ela preenchesse os formulários de declaração de gravidez. Sentia-se ameaçada por não estar protegida. Poderia

acontecer-lhe qualquer coisa, inclusive ser atacada por bruxaria e perder o filho que portava. Esse medo a perseguiu ao longo de toda a sua gravidez, e mesmo quando a criança nasceu continuava aterrorizada: essa criança não estava protegida e, a qualquer momento, podia voltar para o mundo dos ancestrais, ou seja, morrer.

 

O parto

Depois vem o parto, sozinha, sem intérprete, com a presença quase obrigatória do marido, um bom muçulmano, a quem fizeram entrar na sala de parto porque as coisas não estavam correndo bem. Pensou-se em fazer uma cesárea, coisa que o marido, aterrorizado, recusou. Finalmente, esperaram um pouco, tranquilizaram Médina indo buscar outra mulher soninquê que se encontrava no mesmo serviço e que tinha acabado de dar à luz. Então, como diz Médina, a criança quis sair sozinha. Sabemos agora das consequências desastrosas das cesáreas em mulheres imigrantes e da necessidade de respeitar, sempre que possível, quando a vida da criança e da mãe não estão em jogo, a lentidão do trabalho fisiológico das mulheres da África negra.

Essas palavras, repetidas muitas vezes desde então por outras mulheres imigrantes, me fizeram reconhecer a violência de alguns atos médicos que acreditávamos ser, a priori, anódinos.

Médina tem a ideia recorrente de que a criança que carregou e que nasceu nessas condições não está protegida: está em perigo e ela também. Aqui, é a categoria falta de proteção da mãe e do filho e sua consequência cultural, a vulnerabilidade ante um ataque de bruxaria, que deve ser levada em conta, se quisermos pensar na continuação do trabalho com Médina.

Com efeito, ela começou a se tranquilizar a partir de atos culturais que contribuíram para reconstruir essa efração, essa proteção falha: os pais pediram que suas famílias, em seu país, fizessem rituais de proteção para Mamadu, o bebê, introduzindo, assim, a criança na cadeia de gerações e em toda a família. Ao mesmo tempo, elaboramos com a mãe sua tristeza e sua falta de apoio, dando vida a representações culturais que tinham perdido seu sentido devido ao exílio e aos conflitos familiares, ou seja, reconstruindo parcialmente a sustentação cultural no grupo terapêutico: ela tinha saído de seu país sem a aprovação do pai, motivo pelo qual seu primeiro filho não estava protegido. Esse trabalho de coconstrução de um significado cultural foi a primeira etapa, a da construção do enquadre.

Num segundo tempo, foram abordadas as múltiplas perdas de Médina. Sua mãe morreu durante seu nascimento e ela foi criada pela coesposa do pai. Por outro lado, vivia com dor e muita tristeza sua partida, bem como a separação das irmãs, o que sentia especialmente, sobretudo depois que uma delas faleceu sem que voltasse a vê-la... Com o suporte do grupo e do enquadre proposto, Médina vai elaborar sua tristeza, dar um sentido a tudo o que ocorreu durante a gravidez, solitária demais, e construir um vínculo "seguro" com o filho Mamadu. A proteção do avô materno, solicitada e obtida por Médina, passou, então, a ser eficaz.

No plano preventivo, vemos através dessa história, e de outras da mesma natureza, a necessidade de permitir que a mulher grávida tenha uma representação culturalmente aceitável do que ela e seu bebê vão precisar, sejam quais forem as dificuldades e vicissitudes que ocorram. Sustentar a parentalidade em sua diversidade é um processo de acompanhamento e cuidados para coconstruir com os pais, a partir de seus próprios componentes, para que, dessa maneira, ajudem seus filhos a crescer em situação transcultural. Isso também permitirá prevenir as dificuldades que poderiam aparecer mais tarde no filho de imigrantes, em especial na escola do país de acolhida de seus pais. O difícil nesse trabalho de reconhecimento do outro são os mecanismos coletivos que lhe designam uma posição inferior, que hierarquizam suas histórias, línguas e culturas, posição ao mesmo tempo etnocêntrica e, às vezes, racista no plano sistêmico e da qual devemos tomar consciência tanto no nível político quanto clínico; tomar consciência para denunciar, transformar, mestiçar. Esses mecanismos são, com efeito, transgeracionais e nunca desaparecem de forma espontânea. Denominaremos esses movimentos de rejeição do outro e de sua alteridade de contratransferência cultural íntima e política, na esteira de Devereux (1967/1980).

 

O que ocorre com as crianças nascidas na França?

Na França, para todas as crianças que pertencem a minorias, filhos de imigrantes, crianças da adoção internacional, crianças que percorrem mundos e famílias, crianças imigrantes ou viajantes, a questão escolar é essencial. É onde se vai decidir seu lugar na sociedade de acolhida, é onde se vai validar sua inscrição: somos crianças daqui, crianças que construirão a sociedade francesa de amanhã. É, portanto, um lugar crucial, iniciático, em que o encontro vai se tecer ou "falhar". Isso aponta para a importância do reconhecimento recíproco, da análise da situação sem a priori, da compreensão que permitirá uma ação adaptada (Moro, 2012). Mas, ademais dessa constatação, gostaríamos de mostrar que é necessário mudar de perspectiva e que isso será benéfico para todas as crianças na escola - em todo caso, é essa a nossa proposta.

 

Crianças daqui vindas de fora

sabemos o quanto essas crianças precisam ser reconhecidas por nós como crianças daqui que vêm de fora, crianças que às vezes não dominam a língua francesa quando chegam à escola, mas que têm uma grande riqueza na medida em que conhecem outra língua, mesmo que parcialmente, outro mundo, outras formas de pensar e de fazer. Crianças hipermodernas, em certo sentido, na medida em que seu conhecimento não está estruturado por apenas uma referência, mas por várias. A questão que se coloca para elas é a de ter vontade de lutar para adquirir o que precisam na escola, de desejá-lo o suficiente para superar os obstáculos de um olhar pouco compreensivo, por vezes excludente. Quando o francês é sua segunda língua, certos conceitos, palavras, são forçosamente pouco familiares e será necessário conquistá-los. Para isso, é preciso muita determinação e desejo. Algumas crianças conseguem e se nutrem desse encontro com as crianças da sociedade de acolhida de forma tão harmoniosa que se beneficiam muito dessa viagem. Outras o fazem a um custo muito alto, com (como diriam os linguistas) uma hipercorreção da língua: apropriam-se da língua do outro, mas às vezes com escasso ajuste, na medida em que essa língua permanece exterior a elas, incluindo-se aí todos os conhecimentos que vêm junto. São as crianças mais realistas que o rei, que vão se agarrar à escola como fonte quase única de aprendizagem. E, por fim, há aquelas crianças que permanecem no limiar dessa escola, e são em número grande demais. É por elas que temos de agir e por todas aquelas que não conseguem apanhar o que precisam na escola e na sociedade.

 

Uma escola hospitaleira para a diferença e a multiplicidade

A escola é igual para todos, é percebida como única, o que torna a adaptação daqueles que sabem ser especiais difícil e às vezes dolorosa. A igualdade não pode ser somente uma igualdade de princípio; deve ser, em nossas sociedades, uma igualdade de fato. Já conhecemos os ingredientes que temos de levar em conta: um reconhecimento da língua dos pais e de sua viagem, uma não hierarquia entre línguas, uma educação dos profissionais, das crianças e dos pais para a diversidade, a criação de uma verdadeira comunicação transcultural que permita a cada um ser sem renunciar ao que considera importante, sem renunciar à sua história. Isso ocorre na escola e na sociedade cultivando-se a arte do encontro, as mestiçagens, o conhecimento mútuo, as trocas. Por fim, que todos possam ser atores com plenos direitos sem ser submetidos ao olhar e ao saber do outro.

 

Aceitar o plural

Nossa sociedade está passando de um modelo de pensamento único a um modelo multifocal em que o saber deve ser compartilhável. Sabem-no os filhos de imigrantes, que buscam o encontro com o outro sem apagar o que são, a história de seus pais e a do contexto transcultural em que estão imersos. Ou, pelo menos, que o olhar da escola para eles não considere essa história como negativa ou sem interesse. Tanto mais que as marcas dessa história são palpáveis em seus corpos, em suas peles, em seus rostos, em seus nomes, em seus lugares de vida, na casa de seus pais... - marcas essas que servem de álibis para rejeitar essas crianças ou para confiná-las em posições inferiores, sejam quais forem seus atos ou desejos.

Nem a escola nem a sociedade são suficientemente desejáveis para essas crianças de hoje, não se parecem o bastante com elas, o que faz com que se retirem frequentemente a uma amargura que as fere, e não valorizam suficientemente suas competências e criatividade. Não levam claramente em conta que essas crianças são as crianças de amanhã e que a escola tem de lhes dar o desejo de crescer e de se apropriar do saber para que a sociedade atual e a futura sejam ricas em sua diversidade.

É hora de aproveitarmos essa oportunidade de mestiçagem de homens e mulheres, de ideias, de olhares. Para eles, para nós, para as crianças de amanhã. É hora de nossa sociedade atual tentar se aproximar dessa multiplicidade complexa, nunca dada de forma definitiva, nem de uma só vez, que chamamos identidade. Para nossos filhos, a identidade não se constrói de forma simples: ela é múltipla e complexa, por adição e mais como um processo do que como um estado. Às vezes, nossos filhos têm de conquistá-la sem o acompanhamento da sociedade, que lhes atribui um lugar simples demais ou que não leva em conta todos os seus parâmetros.

 

Um quase nada, uma ocasião favorável

A criança singular é a condição favorável, aquela que possibilitará que a escola se abra para a diversidade e, a partir dela, também a própria sociedade, pois a escola está inscrita na sociedade, e é, de certa maneira, uma porta de entrada. O êxito, como sabemos, depende de quase nada. Todas essas crianças que têm de aprender a viver em estruturas familiares múltiplas, que têm de atravessar línguas e mundos, que têm de inventar formas para se inscrever em novas filiações nos ensinam que, acima de tudo, ter um filho e criá-lo numa família e numa sociedade é um ato cultural, profundamente cultural e, portanto, profundamente humano. As crianças de hoje e de amanhã são seres que têm de crescer em um mundo em movimento e em mestiçagem e, consequentemente, são seres plurais e... mestiços. É a hora certa de reconhecê-los como são, com sua complexidade, e de mudar o olhar que dirigimos a eles e a seus pais. E não seria preciso quase nada. Uma mudança de olhar, um reconhecimento da diversidade de línguas e de estruturas familiares, uma representação das novas filiações e das mil e uma maneiras de ser pais, uma feroz vontade de escapar dos grandes e pequenos desprezos ligados às diferenças e à hierarquia...

 

Referências

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Correspondência:
Marie Rose Moro
transculturel.eu
www.clinique-transculturelle.org | www.marierosemoro.fr | www.revuelautre.com

Recebido em 26.04.2017
Aceito em 11.05.2017

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