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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo abr./jun. 2017
OUTRAS PALAVRAS
A matriz ferencziana de adoecimento psíquico e seus ecos: Balint e Winnicott1
The Ferenczian matrix of psychic illness and its echoes: Balint and Winnicott
La matriz ferencziana de la enfermedad psíquica y sus ecos: Balint y Winnicott
La matrice ferenczienne de ce qui entraine une maladie psychique et ses échos chez Balint et Winnicott
Luís Claudio Figueiredo
Psicanalista, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO
A partir de uma comparação proposta por Robert Hinshelwood entre conceitos formulados por Bion e Winnicott, sugiro que as divergências apontadas pelo analista inglês devem-se à presença, nesses dois psicanalistas, de duas matrizes distintas de adoecimento psíquico: a matriz freudo-kleiniana domina o pensamento de Bion, e, embora presente, não é nem exclusiva nem dominante em Winnicott e Balint. Nestes há uma forte presença da matriz ferencziana na compreensão dos processos de adoecimento. O texto, aceitando uma sugestão de André Green, procura caracterizar as duas matrizes e mostrar que a matriz ferencziana cria uma linhagem clínica que subjaz aos pensamentos de Balint e Winnicott. Ainda que ela suplemente a matriz freudo-kleiniana sem substituí-la, abre um novo horizonte para pensar a psicopatologia.
Palavras-chave: Winnicott, Balint, Bion, adoecimento psíquico, matriz freudo-kleiniana, matriz ferencziana
ABSTRACT
The author starts from Robert Hinshelwood's comparison between some of Bion's and Winnicott's similar concepts. The author suggests that the differences the English analyst has pointed out are regarding two different matrices of psychic illness, which are respectively found in Bion's and Winnicott's thinking. While the Freudian-Kleinian matrix has dominated Bion's thinking, this matrix, even being also present, has been neither exclusive nor dominant in Winnicott's and Balint's thinking. In these authors' work, the Ferenczian matrix has been widely used for understanding processes of illness. This paper, by following André Green's suggestion, attempts to characterize the two already mentioned matrices as well as to demonstrate that the Ferenczian matrix has created a clinical legacy. This legacy underlies Balint's and Winnicott's thinking. Despite supplementing the Freudian- -Kleinian matrix without replacing it, the Ferenczian matrix opens a new horizon to think about psychoanalytic psychopathology.
Keywords: Winnicott, Balint, Ferenczi, Freudian-Kleinian and Ferenczian matrices of psychic illness
RESUMEN
A partir de una comparación que Robert Hinshelwood propone entre conceptos formulados por Bion y Winnicott, sugiero que las divergencias señaladas por el analista inglés se deben a la presencia en estos dos psicoanalistas de dos matrices diferentes para pensar el proceso de la enfermedad psíquica: la matriz freudo-kleiniana domina el pensamiento de Bion, mientras que tal matriz, a pesar de estar presente, no es ni exclusiva ni dominante en Winnicott y en Balint. Estos comprenden el proceso de la enfermedad a partir de una fuerte presencia de la matriz ferencziana. El texto, aceptando una sugerencia de André Green, trata de caracterizar las dos matrices y mostrar que la matriz ferencziana crea un linaje clínico que es subyacente a los pensamientos de Balint y de Winnicott. Aunque suplemente la matriz freudo-kleiniana sin sustituirla, abre un nuevo horizonte para pensar la psicopatología.
Palabras clave: Winnicott, Balint, matriz freudo-kleiniana, matriz ferencziana
RÉSUMÉ
A partir d'une comparaison proposée par Robert Hinshelwood parmi des concepts formulés par Bion et Winnicott, je suggère que les divergences indiquées par l'analyste anglais se doivent à la présence chez ces deux psychanalystes de deux matrices distinctes de ce qui entraine une maladie psychique: la matrice freudienne-kleinienne domine la pensée de Bion, tandis que telle matrice, bien que présente, n'est ni exclusive ni prédominante chez Winnicott ou chez Balint. Chez ceux-ci il y a une forte présence de la matrice ferenczienne pour la compréhension des processus qui entrainent une maladie. Le texte, en acceptant une suggestion d'André Green, cherche à caractériser les deux matrices et à démontrer que la matrice ferenczienne crée un langage clinique sous-jacent aux pensées de Balint et de Winnicott. Bien que ce langage supplée la matrice freudienne-kleinienne sans la remplacer, il ouvre un nouvel horizon pour penser la psychopathologie.
Mots-clés: Winnicott, Balint, Bion, maladie psychique, matrice freudienne-kleinienne, matrice ferenczienne
Retomando uma sugestão de Robert Hinshelwood
Em texto recentemente publicado, Hinshelwood (2015) aproxima e compara as contribuições de Donald Winnicott e Wilfred Bion: mostram-se convergentes em diversos aspectos, mas ao mesmo tempo criam, a partir de uma herança comum, dois legados diferentes e também divergentes em dimensões igualmente importantes. O artigo torna-se ainda mais relevante se considerarmos que esses dois autores costumam ser articulados na construção das obras mais significativas do pensamento psicanalítico atual, como as de André Green, Antonino Ferro, Thomas Ogden, Christopher Bollas, René Roussillon e muitos outros.
A primeira convergência apontada refere-se à importância atribuída ao ambiente e ao objeto primário na constituição do psiquismo. Winnicott nos fala na operação de holding materno, enquanto Bion focaliza a operação do containing e a rêverie da mãe: "os dois termos são gritantemente similares na superfície [strikingly similar on the surface], mas derivam de origens muito diferentes" (p. 62), nos diz Hinshelwood.2 Ele começa por aí sua aproximação entre os dois autores para nos mostrar o que eles agregam ao pensamento de Melanie Klein: vão aparentemente na mesma direção, que é a de dar relevo às funções maternas exercidas pela mãe real, mas eles também se diferenciam em profundidade. Embora ambas as operações ressaltem as funções do ambiente e do objeto primário, subjazem a esses conceitos alguns pressupostos até certo ponto incompatíveis.
Bion parece muito mais próximo de Melanie Klein, acrescentando todavia, ao pensamento kleiniano, elementos novos e originais, como é o caso das funções de continência e de transformação das angústias primitivas do bebê, tais como efetuadas pela rêverie materna. Já o holding, como é concebido por Winnicott, não funciona para acolher, transformar, modificar ou atenuar angústias primitivas projetadas sobre ou para dentro da mãe, mas para impedir a queda do bebê no estado de desamparo absoluto, que pode vir a ser ocasião de uma experiência de agonia:3 trata-se de uma queda a ser evitada pela presença segura e discreta da mãe que oferece sustentação.
No campo kleiniano, que será também o de Bion, tanto há atividade por parte do bebê, que, atacado pelas angústias primitivas, ativa uma defesa igualmente primitiva - a cisão seguida de projeção (splitt-off, ex-cisão, na boa tradução brasileira) -, como deve haver atividade por parte da mãe, que resgata ativamente o bebê, contendo e transformando suas ansiedades sem nome. De fato, a atividade desponta já na própria noção de uma pulsionalidade mortífera que ataca de dentro e de saída, gerando desde o começo da vida angústias incontroláveis e incontornáveis e, a partir daí, acionando todas as operações ativas de projeção e introjeção. Nessa medida, a própria resposta materna faz parte dessa cadeia de atividade e ativações, e muitos adoecimentos psíquicos - principalmente os mais graves - decorrem de falhas em que a cadeia é rompida pela incapacidade da mãe ou seu substituto de responder adequadamente, seja por excesso de angústias próprias que a deixam incapacitada, seja por depressão, indiferença etc. Sem usar os conceitos de continência e rêverie, naturalmente, são falhas dessa ordem que Melanie Klein (1930) já reportara no histórico do caso Dick.
No campo winnicottiano - que nesse aspecto não é absolutamente o de Melanie Klein - há uma relativa passividade no estado de não integração original do bebê, no seu sofrimento de "sentir-se caindo para sempre" (falling apart for ever), na própria qualidade de presença da mãe que sustenta o bebê sem se meter demais, sem exigir respostas, protegendo-o em sua inconsciência e onipotência tanto do mundo como de um excesso de si mesma.
Na sequência do artigo, Hinshelwood aponta outros aspectos em que alguma convergência entre Winnicott e Bion é, simultaneamente, a ocasião de emergência de algumas diferenças básicas entre os dois legados. O texto de Hinshelwood assinala essas discrepâncias sem, contudo, apontar suas razões. Ocorre que ele trata Bion e Winnicott como herdeiros de Melanie Klein, herdeiros muito originais, que reclamam dessa fonte comum legados diferentes. Isso não está errado, mas não me parece suficiente, em especial no que diz respeito a Winnicott. Este não me parece pensável em termos unicamente dessa herança kleiniana por ele transformada e infletida. Há em seu pensamento, além da singularidade de seu percurso e de sua experiência clínica, outras conexões a considerar. Nellie L. Thompson (2015), por exemplo, tem se dedicado à conexão de Winnicott com Phyllis Greenacre, uma autora americana ligada à ego psychology. O próprio Winnicott (1989b) em suas anotações assinala uma imensa variedade de "fontes" ou conexões entre seus pensamentos e os de muitos autores da ego psychology, como H. Hartmann. Quanto às suas possíveis dívidas com Ferenczi, contudo, ele é evasivo: "Nunca sei o que obtive de dar uma olhada em Ferenczi" (p. 440), o que sugere que pode ser muito e, quem sabe, algo bem decisivo.
O que interessa no presente contexto é nossa hipótese de que Hinshelwood não alcança as razões de fundo das divergências entre Bion e Winnicott, por ele bem assinaladas, em que pesem suas convergências, em função de sua premissa historiográfica: a de tratar Winnicott como uma espécie de "kleiniano diferente", extraviado, posto que genialmente extraviado. Para irmos mais fundo, precisamos considerar a posição singular de Winnicott: ele se situa entre duas versões da tradição freudo-kleiniana (Melanie Klein e os freudianos da América do Norte4) e uma tradição ferencziana que não pode ser ignorada. É nessa linhagem, marcante em seu estilo clínico e em seu pensamento teórico, que a aproximação com Balint pode tornar-se mais significativa.
As duas tradições
Uma observação de André Green no primeiro capítulo de La folie privée nos ajudará a explicitar nossa hipótese: "Não era motivo de dúvida para Freud que as piores infelicidades sofridas pelo aparelho psíquico não o deixavam sem recursos. O psiquismo encontrava ainda e sempre um meio de transformar o trauma, de qualquer natureza que ele fosse" (1990, p. 34).
Logo adiante, Green nos oferece outra sugestão importante: "Vê-se como essa controvérsia, velha de sessenta anos [escrevia ele em 1990], pre-figurava a evolução da psicanálise moderna, anunciando Balint e Winnicott de um lado, Melanie Klein e Lacan de outro" (p. 37). A controvérsia a que se refere é a que se instalou entre Freud e Ferenczi no final da década de 1920, até a morte do húngaro.
Ou seja, há uma tradição freudo-kleiniana, à qual poderiamos acrescentar o nome de Lacan e à qual também pertenciam os arqui-inimigos deste, os freudianos emigrados nos EUA, e há outra tradição, a ferencziana, à qual pertencem autores como Balint e Winnicott. Como caracterizá-las?
De um lado, a dominância da atividade e da natureza inesgotável dos recursos psíquicos para enfrentar todas as situações de angústia geradas por ataques externos e internos, que colocam o psiquismo às voltas com o desamparo original. Por mais sério que seja o estado do desamparo e por mais agudas e primitivas que sejam as angústias, haverá sempre uma resposta ativa, um recurso defensivo. Mesmo que tais defesas causem estragos terríveis, como os estados de desintegração e confusão psicóticas, ou os enclausuramentos autísticos e esquizoides, a atividade psíquica não cessa em resposta às situações traumáticas. Essa é a premissa fundamental da matriz freudo-kleiniana. O ataque às ligações intrapsíquicas e intersubjetivas, tão bem descrito e analisado por Bion, pertence a esse campo, o das defesas ativas radicais que aparecem na clínica como resistências. Como nos mostra o mesmo André Green em outro trabalho (2012), ainda quando Freud admite alguma passividade, trata-se na verdade da inversão da atividade pulsional em termos de suas metas e de seu objeto, pois essa seria uma passividade basicamente associada ao gozo - ou seja, é a passividade como experiência de redução da tensão pela via da submissão e do sofrimento autoinfligido (por exemplo, no masoquismo tal como interpretado antes da segunda tópica e da segunda teoria pulsional).
Na linhagem ferencziana, encontraremos uma premissa bem diferente: sem desconhecer as verdades contidas na outra matriz, postula-se a possibilidade de, em casos extremos, o trauma ultrapassar os recursos defensivos, a capacidade de resposta ativa, mergulhando o psiquismo em um estado de morte, de semimorte, de morte parcial ou morte em suspensão, termo de Ferenczi. Green prefere para essa situação usar o termo passivação, um processo que empurra o psiquismo de volta à inércia, ao não ser, isto é, à ausência de atividade. Instalam-se no psiquismo áreas mortas e inertes. Ferenczi, de fato, concebia um retorno completo à inércia, ou seja, à morte absoluta, quando um bebê é submetido a experiências traumáticas precoces. É o que vemos em seu impactante artigo "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (Ferenczi, 1929/1992b). Trata-se aí, sem sombra de dúvida, de uma passivação radical, para empregarmos o termo sugerido por André Green.
Nelson Coelho Junior, em texto ainda inédito (2015), aponta na obra de Ferenczi as inúmeras indicações desse retorno à inércia decorrente de experiências traumáticas que superam as capacidades defensivas ativas do psiquismo. Mais ainda, Coelho Junior assinala a concepção ferencziana de uma passividade original, em nada associada ao gozo, e sim a uma modalidade primitiva de organização psíquica, ou somatopsíquica. Como bem indica Alfredo Naffah Neto (2007), em seu Diário clínico, Ferenczi chegou a aventar uma pulsão de repouso, que aponta na mesma direção e se aproxima ainda mais de Winnicott e Balint ao descartar a referência à pulsão de morte. A isso se seguiria também um amor objetal passivo, pois a atividade não predomina nem no recurso a defesas nem na procura de alguma "satisfação".5
Já na situação traumática, antes de uma resposta ativa se completar (segundo Ferenczi, essa resposta ativa apenas se esboça e é logo abandonada) - como a alucinação -, o psiquismo passivamente sobrevive entregando-se ao ambiente e imitando-o. O texto de Coelho Junior faz uma inspeção exaustiva dessa problemática nos escritos de Ferenczi, em especial em seu Diário clínico, de 1932, e a ele remetemos o leitor interessado.
Resumindo: na matriz freudo-kleiniana, os adoecimentos se dão pela ativação - a ativação das angústias e a ativação das defesas -, sendo que o pensamento de Bion pertence a esse campo; já na matriz ferencziana - que abriga, em parte, o pensamento de Winnicott -, certos adoecimentos ocorrem pela passivação, em que as defesas e demais capacidades do sujeito são total ou parcialmente imobilizadas.
Voltando ao que dissemos antes, falta ao belo artigo de Hinshelwood a consideração da força dessa matriz ferencziana no estilo e no pensamento clínico de Winnicott. E é justamente isso o que afasta Winnicott de Bion, em que pesem muitas convergências entre ambos, e o aproxima de Balint, algo bem assinalado por Green.
A ligação Balint-Winnicott
Em um texto já antigo, eu mesmo propus essa aproximação, sob a égide da linhagem ferencziana, assumida plenamente por Balint e presente de forma mais oculta em Winnicott (Figueiredo, 2002). Nessa ocasião, o argumento focalizava principalmente a ideia de regressão, tal como tinha sido praticada por Ferenczi em sua clínica de pacientes muito difíceis e por ele teorizada em seu grande texto Thalassa (1924/1993). Apontava a continuidade direta dessas ideias na clínica e nas teorizações de Balint, e sua emergência, ou resgate, ou redescoberta, na clínica e nas teorizações de Winnicott. Para os três psicanalistas, essas experiências de regressão terapêutica enfatizavam a presença de ambientes facilitadores e de objetos primários capazes de instituir e sustentar tais ambientes, confundindo-se com eles. Aqui o conceito de holding assume plena eficácia e permite estabelecermos entre Ferenczi, Balint e Winnicott uma base comum que é justamente o que falta ao conceito de containing proposto por Bion, como tão bem argumenta Hinshelwood.
Neste momento, retorno ao tema de outro ângulo e, creio eu, em nível mais profundo. Ao perceber a diferença básica entre as duas matrizes, sugiro que para Ferenczi, Balint e Winnicott (aos que poderia acrescentar Kohut, o que deixo para outra ocasião) há uma consideração da morte, seja a morte absoluta de um bebê mal acolhido pelo mundo adulto, sejam formas de morte em vida, a morte dentro (death inside), como se expressa Winnicott em seu texto sobre as defesas maníacas (1935/1975).
A consideração do adoecimento psíquico em torno da problemática de uma morte já acontecida e, no entanto, ainda não experimentada está no cerne do seu extraordinário texto "Fear of breakdown" (Winnicott, 1989a), datado de 1963 e publicado em 1974. Falando de uma paciente psicótica que se suicidara, ele nos diz: "seu objetivo (como o vejo agora) era obter de mim a afirmação de que tinha morrido na primeira infância" (p. 93) A procura do suicídio nesses pacientes seria uma forma de matar um corpo cuja alma já estava morta desde o começo da vida - tais pacientes carregam pela vida afora uma morte impossível de experimentar, que precisa re-acontecer para tornar-se real. A única maneira de dispensar a paciente desse suicídio, como bem reconhece Winnicott, seria ele mesmo testemunhar a morte já ocorrida. Vale lembrar que esse testemunho é justamente o antídoto contra o desmentido, que segundo Ferenczi colocaria a experiência traumática no campo do irrepresentável e do não simbolizável, e a "consagraria" em seu potencial destrutivo.
É nesse texto também que Winnicott introduz o termo agonia, agonias primitivas: "angústia, ou ansiedade (anxiety), não é uma palavra suficientemente forte neste momento" (p. 89), diz ele. O momento, tal como vamos verificando, não é o do medo da morte, da iminência da morte, não é o de uma situação traumática ou de uma situação de perigo, uma distinção importante proposta por Freud em Inibição, sintoma e angústia (1926[1925]/2014). O momento é o de uma morte já acontecida em decorrência da falha grave do ambiente de acolhimento e sustentação - uma falha acontecida no período da dependência absoluta, quando o psiquismo não pode se defender: "[Pois] o ego não pode organizar-se defensivamente contra as falhas ambientais enquanto a dependência está em vigor" (Winnicott, 1974[1963]/1989a, p. 88). Ou seja, reencontramos nessa ideia winnicottiana a suposição da passividade original que já encontráramos em Ferenczi e iremos reencontrar também em Michael Balint.
Enquanto as angústias e ansiedades são fenômenos da vida ameaçada, as agonias primitivas revelam silenciosamente a presença da morte já acontecida: "A morte, vista dessa maneira, como algo já acontecido, mas quando o paciente ainda não era maduro o bastante para experimentá-la, tem o sentido de aniquilação" (p. 93) Nessa condição, o psiquismo não se angustia: ele agoniza. Enquanto as angústias e ansiedades, como fenômenos da vida, são estridentes - e por isso podem funcionar como sinais de perigo, acionando defesas ativas -, as agonias são quase totalmente silenciosas e ocorrem justamente quando todos os recursos defensivos do sujeito já foram postos fora de combate, entraram em colapso. Esse é o sentido do breakdown, um estado de coisas impensável que subjaz às organizações defensivas e que emerge quando essas defesas são rompidas. Não se trata, nessa condição extrema, de lidar com as defesas ou resistências, mas de ouvir e responder aos balbucios do agonizante, entre os quais, o medo do colapso futuro. Esse medo de um colapso ainda por vir revela e oculta a ocorrência efetiva de um colapso já passado, ocorrido nos primordios da existência e que então não pôde ser experimentado, significado, nem muito menos poderá ser lembrado. A parte sobrevivente vai se angustiar e defender, certamente, mas as organizações defensivas trarão sempre o colorido da morte dentro, contra a qual se erigiram. Isso pode se dar pela via do contraste, como no caso das defesas maníacas. Uma pseudovitalidade - o termo é de Kohut - vai tentar proteger o psiquismo da efetiva condição mortiça que nele subjaz e impera. Outras defesas são mais obviamente tributárias da morte, como a apatia, a indiferença, o senso de futilidade, a anestesia e a mecanização psíquica do pensamento operatorio, que protegem o paciente, vítima de uma depressão inexpressiva - o termo é de Claude Smadja -, da morte que carrega consigo.6
Passemos rapidamente a Michael Balint. Como discípulo e herdeiro direto de Ferenczi, a presença deste em sua obra é muito mais constante e explícita, sem prejudicar a originalidade e independência de seu pensamento.
Desde seus primeiros trabalhos na década de 1930 até a publicação de seu derradeiro livro em 1968 - A falha básica -, Ferenczi e os temas ferenczia-nos comparecem insistentemente nos escritos de Balint. Em suas referências bibliográficas, um espaço imenso é ocupado pelas obras de seu mestre Ferenczi. Boa parte dessa presença já foi considerada por mim no texto sobre regressão terapêutica (Figueiredo, 2002). Agora, quero apontar rapidamente para a presença de outros temas: a passividade original, os estados de morte dentro em pacientes precocemente traumatizados e as insurgências da vida.
Começo com o conceito criado ao final de sua trajetória. O paciente da falha básica é justamente o precocemente traumatizado, que carregará ao longo de toda a sua existência as cicatrizes dos agravos sofridos em suas relações primárias com o ambiente maternante na forma de áreas fraturadas. Balint observa que, quando o analista não consegue responder adequadamente às expectativas desse paciente, não emergem reações de raiva, crítica, confronto etc., como seria de esperar em pacientes neuróticos que sofrem no nível edípico. Nesses pacientes da falha básica, "somente pode ser observado um sentimento de vazio, de perda, morte e futilidade, associado a uma aceitação aparentemente sem vida de tudo o que lhe está sendo oferecido" (Balint, 1968/2014, p. 43). A falha básica de que muitos pacientes diziam explicitamente a Balint estar sofrendo corresponde à presença no íntimo do psiquismo de áreas não ligadas ou mal ligadas, tecidos rompidos, fraturas do solo psíquico de base, em sentido geológico. É uma forma de se referir à morte dentro de que nos fala Winnicott, uma morte dentro acessada e reativada pelas eventuais falhas do analista quando o trabalho incide sobre essa área da mente - nessas ocasiões, todos os afetos associados à morte podem emergir, como indica Balint no fragmento transcrito.
Ainda sem o recurso a tal conceito, desde o início Balint esteve interessado em pacientes apáticos, sem vida e sem esperança, crianças mal acolhidas e cujas necessidades de resposta empática não haviam sido satisfeitas. Balint assim dava sequência à linha de pensamento desenvolvida por Ferenczi em seu texto de 1929 (1992b) e em um anterior, de 1927 (1992a), em que trata da adaptação necessária da família à criança pequena. Em 1932, ele se surpreendia com a demanda de análise de pacientes sem queixas específicas, sem sintomas neuróticos, e cuja única queixa era "não encontrar seu lugar na vida" (Balint, 1985a, p. 159).7 Realmente, tais indivíduos não encontram seu lugar na vida porque algo neles morreu, a confiança básica no mundo e na própria vida, como vemos na continuidade do texto.
Já o tema da passividade comparece fortemente na própria noção de amor primário, em que ser amado - isto é, receber a "prodigiosa dose de afeto e atenção" de que nos fala Ferenczi no texto de 1929 (1992b, p. 50) - corresponde a uma modalidade fundamental de amor: "a criança não ama, mas é amada" (Balint, 1935/1985b, p. 194). É a partir do amar na voz passiva, sem esforço, intenção e reciprocidade, que pode se iniciar o processo de constituição de um psiquismo - viável por meio desse poderoso investimento narcísico de que o bebê é objeto. "Essa forma de relação primitiva é sempre passiva" (Balint, 1935/1985b, p. 195). Trata-se, enfim, de uma forma primitiva de relação de objeto - na verdade, de uma relação pré-objetal com o ambiente maternante, em que a passividade do sujeito em devir é fundamental. Como sabemos desde Ferenczi, na ausência desse investimento, a passividade original é empurrada drasticamente na direção da inércia completa, a morte absoluta produzida pelas pulsões de morte. De alguma forma, os pacientes balintianos mais graves sobreviveram a essas falhas ambientais, mas trazem e carregam consigo as marcas da morte parcialmente ocorrida.
Poderia parecer que, mais próximo a Ferenczi que Winnicott, ficaria faltando a Balint uma consideração mais enfática da vitalidade, o que em Winnicott se dá pela via da valorização do verdadeiro self, da criatividade primária e do gesto espontâneo. Contudo, não podemos esquecer a ligação igualmente profunda do pensamento de Balint com a obra de Freud, como aliás era também o caso do próprio Ferenczi, apesar das divergências surgidas entre esses dois. Essa ligação garante um lugar para as atividades de busca e evitação, como ocorrem, por exemplo, nos comportamentos de procura e "grude" (clinging) com objetos supostamente "salvadores" - no caso dos ocnofílicos - e de trânsito pelos espaços abertos, longe dos objetos supostamente persecutórios a serem continuamente evitados - no caso dos filobatas.8 Aliás, todo o seu livro Thrills and regressions (1959/1987), em que essas atitudes são descritas e nomeadas, contém um imenso elogio da pulsionalidade vital e das brincadeiras (infantis e adultas),9 que podem fazer daquelas duas tendências forças em equilíbrio dinâmico no seio de uma personalidade bem organizada. Sabemos, porém, que as atitudes denominadas por Balint de ocnofilia e filobatismo podem predominar de modo unilateral em indivíduos com transtornos de caráter, os pacientes difíceis, pacientes da falha básica ou borderline. Ou seja, em condições psicopatológicas adversas, o indivíduo (se ocnofílico) passa a vida a procurar salvação perto de objetos poderosos ou (se filobata) a fugir desesperadamente deles. Ambas as tendências - modalidades muito primitivas de relações de objeto - levam o sujeito a situações extremas, frustrantes e angustiantes, gerando decepções e grandes ambivalências. Observam-se, então, as reversões de expectativa e humor que bem caracterizam a patologia borderline. O que subjaz, contudo, a toda essa dinâmica agitada e instável e às atividades defensivas do sujeito é uma parte profundamente traumatizada e agónica, em risco de morte, apassivada.
Concluindo
Em Balint e Winnicott encontramos, portanto, obras que resultam da introdução da linhagem da clínica ferencziana no campo da psicanálise. Essa linhagem nunca atua sozinha e algum entrelaçamento com a matriz freudo - kleiniana será sempre necessário. No entanto, acredito que Balint e Winnicott chegam a resultados novos e em grande parte convergentes a partir de suas clínicas, mas também a partir de uma nova sensibilidade - novas possibilidades de escuta e formulação -, tornando-se assim capazes de criar estilos de prática e pensamento clínico que não teriam sido possíveis se ambos tivessem ficado restritos a Freud e demais freudianos, ou a Melanie Klein. Nessa medida, eles se reforçam mutuamente, apesar das diferenças em suas teorizações.
Em contrapartida, a articulação entre Winnicott e Bion traz como principal vantagem, justamente, a de gerar um campo mais híbrido e tenso, em que as duas matrizes se tocam e podem ser articuladas em pensamentos complexos, como o de André Green.
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Winnicott, D. W (1989a). Fear of breakdown. In C. Winnicott, R. Shepherd & M. Davis (Eds.), Psychoanalytic explorations (pp. 87-95). Cambridge: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1974[1963] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1989b). Postscript: D. W. W. on D. W. W. In C. Winnicott, R. Shepherd & M. Davis (Eds.), Psychoanalytic explorations (pp. 569-584). Cambridge: Harvard University Press. [ Links ]
Correspondência:
Luís Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3086-4016 11 3083-3731
lclaudio.tablet@gmail.com
Recebido em 07.03.2016
Aceito em 02.08.2016
1 Trabalho apresentado no 24.° Encontro Latino-Americano sobre o Pensamento de Donald W Winnicott, realizado no Rio de Janeiro, em 2015. Agradeço as leituras de Alfredo Naffah Neto, Andréia Bezerra de Vasconcellos, Liana Pinto Chaves, Marion Minerbo, Nelson Coelho Junior, Octavio Souza e Patricia Getlinger.
2 Sobre o mesmo tema, registre-se também o excelente artigo de Thomas Ogden "On holding and containing, being and dreaming" (2004).
3 Uma distinção decisiva entre angústia e agonia será esmiuçada adiante.
4 A problemática das vicissitudes na formação do ego é comum a Winnicott e aos ego psychologysts, ainda que as soluções oferecidas sejam bem diferentes. A distinção entre ego e self, proposta pela primeira vez por Hartmann, foi acompanhada por Winnicott.
5 Não se trata aqui nem de prazer nem de gozo.
6 Não podemos, neste contexto, enveredar por essa trilha - a das possíveis relações a serem estabelecidas entre o pensamento winnicottiano e a Escola Psicossomática de Paris -, que nos parece promissora.
7 Uma análise pormenorizada dos escritos de Balint anteriores a A falha básica pode ser encontrada em Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro (2012).
8 Mais esclarecimentos podem ser encontrados em Figueiredo et al. (2012).
9 Tais brincadeiras são uma fonte inesgotável de um prazer bem particular, que não se reduz ao prazer orgástico e que produz ligação e modulação emocional.