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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo abr./jun. 2017

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Clínica psicanalítica contemporânea: psicanálise de pacientes em trânsito

 

Contemporary psychoanalytic practice: psychoanalysis of patients in transit

 

Clínica psicoanalítica contemporánea: psicoanálisis de pacientes en tránsito

 

Clinique psychanalytique contemporaine: psychanalyse de patientes en transit

 

 

Gley Silva de Pacheco Costa

Membro fundador, titular e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor registra, neste trabalho, uma mudança observada em sua prática nos últimos 15 anos, que consiste em um número crescente de pacientes que apresentam em comum a falta de uma definição dos seus sintomas e pouca ou nenhuma reflexão subjetiva sobre o seu sofrimento. Em sua maioria, são profissionais que auferem ganhos significativos e que, em função do seu trabalho, passam a maior parte do tempo em trânsito, exigindo adaptações técnicas para que seus tratamentos possam ser mantidos. Além de caracterizar o grupo de pacientes abordado neste estudo, o autor descreve o quadro clínico, tece considerações sobre os aspectos teóricos e técnicos, apresenta um caso clínico típico e finaliza o trabalho com questionamentos sobre a(s) causa(s) dessa mudança que desafia a psicanálise contemporânea.

Palavras-chave: clínica psicanalítica contemporânea, metapsicologia contemporânea, técnica psicanalítica, setting interno


ABSTRACT

The author reports the change he has observed in his practice for the past 15 years. This change is regarding an increasing number of patients who have in common the lacking definition of their symptoms. They also have been shown to make either a little or no subjective reflection about their suffering. In most cases, they are professionals who earn significant salaries and spend most of their time in transit because of their jobs. This situation requires some technical adjustments in order to keep their treatment going. Besides characterizing the group of patients on whom this study is focused, the author describes the clinical condition, makes considerations about the technical and theoretical aspects, presents one typical clinical case, and, finally, concludes this paper by wondering about the cause(s) of this change which challenges the contemporary psychoanalysis.

Keywords: contemporary psychoanalytical clinical, contemporary metapsychology, psychoanalytic technique, internal setting


RESUMEN

El autor registra en este trabajo un cambio observado en su práctica durante los últimos 15 años, que consta de un número creciente de pacientes que tienen en común la falta de una definición clara de sus síntomas y poco o nada de la reflexión subjetiva sobre su sufrimiento. Mayormente son profesionales que obtienen altas ganancias y, dependiendo de su negocio, pasan la mayor parte de su tiempo en tránsito, lo que requiere ajustes técnicos en sus tratamientos para mantenerlos. Además de la caracterización del grupo centrado en los pacientes en este estudio, el autor describe el cuadro clínico, considera la teoría y la técnica, presenta un caso típico y finaliza el trabajo con interrogantes sobre la(s) causa(s) de este cambio que desafía el psicoanálisis contemporáneo.

Palabras clave: clínica psicoanalítica contemporánea, metapsicología contemporánea, técnica psicoanalítica, encuadre interno


RÉSUMÉ

L'auteur consigne sur ce travail un changement observé dans sa pratique dans les 15 dernières années, qui consiste en un nombre grandissant de patients qui présentent en commun le manque d'une définition des leurs symptômes et ne présentent guère ou aucune réflexion subjective concernant leur souffrance. Dans la plupart, ils sont des professionnels qui touchent des gains significatifs et qui, en conséquence de son travail, passent la plupart du temps en transit, en exigeant des adaptations techniques pour que leurs cures puissent être tenues. En plus de caractériser le groupe de patients envisagés dans cette étude, l'auteur décris le tableau clinique, il élabore des considérations sur les aspects théoriques et techniques, il présente un cas clinique typique et il finalise le travail en posant de questions sur les causes de ce changement qui défie la psychanalyse contemporaine.

Mots-clés: clinique psychanalytique contemporaine, métapsychologie contemporaine, technique psychanalytique, setting interne


 

 

Introdução

Em um trabalho anterior (Costa, 2015), enfatizamos que as descobertas de Freud sobre o conteúdo simbólico dos sonhos, dos atos falhos, dos chistes e dos sintomas histéricos, além da evidência da força anímica de uma sexualidade e de um desejo recalcado, ainda representam os fundamentos da teoria e da técnica psicanalíticas. Nos últimos anos, contudo, tem-se constatado que certas situações extrapolam os limites dessa clínica do simbólico, exigindo o aporte de novos interrogantes, visando evitar um desgaste epistemológico decorrente do emprego de um referencial conceitual insuficiente ou inadequado.

Ao abordar o tema dos desafios da psicanálise contemporânea, Viñar (2006) adverte que, mais do que respostas, é tempo de buscar as boas perguntas. Seguindo essa linha, nos questionamos se uma parte dos nossos pacientes - com aspectos muito parecidos, cujo número cresceu nos últimos 15 anos e que eram raros ou inexistentes antes disso - não predominará na clínica psicanalítica dos próximos anos. Sendo assim, é indispensável que adaptemos a nossa técnica a esse novo cenário, que de acordo com Nosek (2015) resulta de transformações sociais numa velocidade vertiginosa, em que o tempo necessário para o devaneio e o sonho não é encontrado, e nessa condição o espírito não chega a se construir.

Neste trabalho, temos como metas: caracterizar o grupo de pacientes abordado neste estudo, descrever o quadro clínico, tecer considerações sobre os aspectos teóricos e técnicos, apresentar um caso clínico e levantar hipóteses sobre a(s) causa(s) da mudança observada na clínica.

 

Características

Os pacientes que formam essa clínica apresentam várias características em comum, a começar pelo trabalho: são empresários ou executivos que ocupam cargos de diretor ou ceo de grandes companhias. Mas alguns, diferentemente, são profissionais liberais, na maioria advogados, e em menor número médicos, que como os demais destacam-se pela posição que ocupam e pelos ganhos que conseguem auferir. A idade média desses pacientes encontra-se em torno dos 45 anos, tendo como extremos 30 e poucos e 60 e poucos, são casados e possuem filhos cuja idade, na média, situa-se entre 10 e 20 anos.

Uma metade reside na cidade em que se analisa. A outra metade tem sua casa em outras cidades, eventualmente em outros estados. Essa diferença, no entanto, interfere muito pouco na questão da frequência, pois todos eles, igualmente, passam apenas uma parte da semana na cidade do analista. O comum é que estão sempre viajando e deixam mensagens de texto ou de voz de diferentes lugares para combinar, confirmar ou transferir os horários de sessão.1

Um exemplo que evidencia a movimentação e, principalmente, a aceleração crescente desses pacientes, para usar um termo de Paul Virilio (1999), é o caso de Carlos, 52 anos, que na mesma semana cumpriu compromissos no Brasil, em mais de uma cidade, e em outros dois países. O surpreendente é que Carlos, além dessa atividade profissional intensa, ainda é professor universitário, sendo muito requisitado para orientar teses de pós-graduação na área em que leciona: mobilidade urbana.

Entre empresários e executivos, esse modelo é quase um clichê, mas o surpreendente é que também profissionais liberais, entre os quais, como referido antes, advogados e médicos, muito conceituados e com uma excelente clientela, consigam acumular tantas milhas por ano, como se não tivessem um lugar fixo para morar ou, como diria Marc Augé (1992), vivessem em não lugares: espaços de trânsito.

Esses pacientes, em especial os executivos, costumam retornar para casa quinta à noite ou sexta pela manhã e voltam a viajar segunda ou terça. Eventualmente, podem passar uma semana inteira sem viajar, mas não é o mais comum. Um deles, cuja família de origem é do norte do país, veio morar no sul porque ele e a mulher acharam que era um bom lugar para os filhos crescerem e estudarem, esclarecendo que, em qualquer cidade que residisse, sempre teria que tomar um avião para retornar para casa, pois seu trabalho consiste em visitar obras da empresa, que atua em vários estados.

Outro paciente, Oscar, 54 anos, um empresário com negócios no Brasil e no exterior, há dois anos viaja com frequência aos Estados Unidos, onde a esposa está morando com os filhos, "para que eles tenham uma escolaridade mais qualificada". Ele recentemente comentou ao analista:

Tu agiste com inteligência quando aceitaste a minha proposta de agendar as nossas sessões mês a mês, pois, se tivesses imposto mantê-las como no início, antes de a minha família se mudar para os Estados Unidos, eu teria desistido do tratamento.

De fato, a princípio, Oscar mantinha uma frequência de duas vezes por semana, com uma média de oito sessões por mês, em horários fixos. A mudança que propôs foi a de reduzir para quatro sessões mensais, que são agendadas com um mês de antecedência e, geralmente, ocorrem ao longo de uma, uma e meia ou no máximo duas semanas, correspondendo ao período em que não está viajando.

A duração do tratamento dos pacientes que residem no interior e, principalmente, em outros estados tende a ser menor, mas entre os demais há casos que se encontram nessa "análise adaptada" há mais de cinco anos. Contudo, a frequência da totalidade desses pacientes é de uma ou duas sessões semanais, e nenhum deles se deita no divã. Dentro desses limites, deve ser registrado que costumam cumprir com bastante rigor as combinações.

 

Quadro clínico

Como não poderia deixar de ser, existem diferenças, mas é possível dizer que, de maneira geral, esses pacientes chegam sem uma definição clara do seu sofrimento. Eles podem apresentar insatisfações na área laboral ou conjugal, por vezes depressão, insônia ou algum nível de ansiedade, porém não costumam se aprofundar a respeito desses problemas. Em outras palavras, eles percebem o seu sofrimento, mas não conseguem qualificá-lo.

Além disso, é comum apresentarem variados sintomas físicos sem base orgânica, que podem ser confundidos com as somatizações dos histéricos; diferentemente destes, contudo, seus corpos são simbolicamente desabitados de emoções. No entanto, em alguns casos, observa-se o desenvolvimento de enfermidades psicossomáticas, às vezes graves. Como exemplos, podem ser citados um paciente de 50 anos que se encontra com suspeita de inflamação das fibras musculares, conhecida pela sigla IBM, e um paciente de 38 anos que recebeu recentemente o diagnóstico de esclerose múltipla - duas enfermidades classificadas como autoimunes. Metapsicologicamente, as manifestações psicossomáticas se devem ao fato de o pré-consciente desses pacientes não se encontrar em condições de antecipar, por meio do pensamento, as ações específicas a serem executadas no mundo externo, gerando, como consequência, uma alteração interna.

Um entendimento possível é o de que essa forma operativa sem qualificação afetiva de levar a vida revela a existência de fixações na etapa do desenvolvimento libidinal anterior à relação de objeto e, portanto, à diferenciação eu/não eu - vinculada, consequentemente, não ao ter (ter, não ter ou perder o objeto), mas ao ser (sentimento de si ou de existência), configurando a carência interna de um contexto empático que uma análise em novos moldes talvez possa atenuar. De fato, quando falta o outro empático, não ocorre o registro do afeto, pois, para que a criança sinta um afeto, é necessário que alguém o sinta antes por ela. Como refere Maldavsky (1998), o ponto de partida da vida mental parece ser o estabelecimento de estados afetivos como conteúdo inicial de consciência,2 de onde surge a possibilidade de dotar de significação o restante do desenvolvimento psíquico. Sendo assim, a não constituição desse primeiro conteúdo de consciência interfere no desenvolvimento ulterior e cria uma falha nas bases da subjetivação. Dentro dessa perspectiva, conclui-se que a origem da consciência é a mesma da subjetividade, o que equivale a dizer: da circulação da libido.

O discurso desses pacientes revela uma organização defensiva muito característica de falhas na etapa inicial do desenvolvimento que Freud denominou de ego real primitivo, a qual se expressa, na transferência, pela adequação aos supostos interesses do analista, representando uma forma de sobre adaptação; eventualmente, por não deixar espaço para a intervenção do analista, como meio de se livrar das situações relatadas, e ainda pela tentativa de compensar o vazio subjetivo com quantidades e números. Comumente, as perdas não se relacionam a um objeto, mas a um contexto, pois o outro não marca uma diferença.

 

Aspectos técnicos

Com essas limitações e defesas, torna-se evidente que, além de o analista encontrar-se fora do lugar proporcionado pelo setting clássico, ele também não dispõe, para o seu trabalho, da associação livre, dois fatores que balizaram tanto a sua análise pessoal quanto a sua prática clínica até esse momento.

Magdaleno Jr. (2010) refere que, diante de pacientes com essas características, cujo psiquismo se estruturou de forma rasa, com um conteúdo pouco consistente, pouco espesso, insuficiente para dar conta das exigências que lhes são feitas, o tratamento a ser desenvolvido deve ser diferente, quem sabe se possa dizer estrangeiro - um tratamento que não consiste em enfrentar resistências, levantar repressões, mas criar um lugar de narrativas e de trocas afetivas, configurando o que poderiamos denominar de gesto introspectivo, mediante o qual o trabalho de inscrição psíquica e ressignificação é mais efetivo. Como resultado, a labuta do analista com esses pacientes se equipararia à de um criador de espaços: espaço para pensar, espaço para sentir, espaço para viver, como sugeriu Giovannetti (2006) num trabalho sobre pacientes com características semelhantes.

Freud estabeleceu a tríade: setting (externo) - associação livre - interpretação, válida para patologias representadas e simbolizadas. Não obstante, a perspectiva metapsicológica contemporânea, tendo em vista particularmente as patologias não simbolizadas, enfatiza a importância do setting interno do analista e a complexa pluralidade de seu funcionamento na sessão. Green (2012) considera o setting interno como resultado da interação de dois fatores: o primeiro é a análise pessoal do analista, durante a qual obteve a experiência de um setting "externo", vivenciada com o seu próprio analista; o segundo, o resultado do descentramento de sua própria análise, a partir do acúmulo de experiências com seus pacientes, possibilitando a constatação de que o que ele viveu em sua análise se reproduz com uma parte de seus pacientes e que, com outros, as coisas se passam de modo diferente.

O funcionamento desses pacientes se assemelha à descrição freudiana de neurose atual, não se adequando, portanto, à técnica psicanalítica clássica. No entanto, no lugar de ameaçar a indispensável neutralidade, essa nova forma de trabalhar inaugura o que poderiamos chamar de uma verdadeira ética da neutralidade (Magdaleno Jr., 2005), marcada pela aceitação plena e absoluta do outro totalmente distinto de mim, estabelecendo na psicanálise a metapsicologia das concepções relacionadas de infinito e genitalidade, tema que Nosek (2009) abordou no congresso da IPA em Chicago.

 

Caso clínico

Tendo presente a realidade dessa clínica dos dias atuais, cabe ao psicanalista adequar a técnica para receber esse "estrangeiro" e ajudá-lo a passar do ato ao sonho, quando então torna-se possível uma análise convencional. Citamos o exemplo de Antônio, empresário de 59 anos, há seis em tratamento. Procurou um analista por insistência da esposa. Por conta disso, no diálogo conosco, costuma referir-se à esposa como "a tua paciente" pautando na sequência os assuntos que ela selecionou para ele abordar. Consideramos aceitável essa "proposta de tratamento", tendo a esposa como uma "auxiliar terapêutica", ao revelar ao paciente suas experiências não sentidas. Como enfatizado antes, para que uma criança sinta um sentimento, é necessário que primeiro alguém o sinta por ela, o que somente é possível com a presença de uma mãe empática.

Em que pese dirigir uma empresa da área de informática, é numa pequena agenda que Antônio anota todos os seus compromissos. Apesar das frequentes viagens profissionais, não costuma atrasar-se ou faltar a uma sessão. Contudo, recentemente compareceu em um horário não combinado. Como já havíamos atendido o último paciente daquela tarde e dispúnhamos de tempo, recebemos Antônio como sempre e, somente ao final da sessão, o advertimos do equívoco, que atribuímos ao desejo de falar conosco sobre o sonho (o primeiro que nos relatou) que tivera na noite anterior. Com o sonho, a representação e o simbólico. O ato, que dessa vez foi falho (portanto, de natureza neurótica), revelou uma incipiente relação transferencial, não mais contextual, característica de falhas na constituição do ego real primitivo, mas objetal, até então inexistente. Chamou-nos ainda a atenção a mensagem que enviou na manhã do dia seguinte, pelo WhatsApp, perguntando se não esquecera sua agenda em nosso consultório, pois não conseguiu achá-la. Os compromissos, os horários, enfim, o ritmo e os números substituídos pelos sentimentos: a falta, a saudade, o desejo. Aparentemente, Antônio começa a reunir condições para uma análise tradicional, mediante um trabalho interpretativo lento e cuidadoso, que busca ligar a representação a um sentimento quando ele pode ser vivido, ampliando assim a capacidade associativa do paciente.

 

Comentários finais

Como postulamos anteriormente (Costa, 2015), a clínica psicanalítica contemporânea se define por três vértices relacionados: clínico, teórico e técnico. O vértice clínico encontra-se representado pela ampliação da psicanálise para dar conta de pacientes cujos sintomas não permitem a redução histórica ou simbólica das vivências e não podem ser concebidos como satisfações sexuais substitutivas ou como transações entre moções pulsionais opostas, não correspondendo, devido a isso, à técnica psicanalítica clássica. O vértice teórico compreende uma leitura criativa de Freud, que revalorize a metapsicologia e o método freudiano como fundamentos da psicanálise e a apropriação crítica das principais contribuições pós-freudianas, o que inclui um diálogo com os autores contemporâneos de diversas correntes.

A perspectiva metapsicológica contemporânea, considerando as patologias não simbolizadas, também chamadas de não neuróticas, reforça, do vértice da técnica, a importância do enquadre interno do analista e a complexa pluralidade de seu funcionamento na sessão. Como procuramos evidenciar com o caso clínico, o trabalho a ser desenvolvido deve ter como meta a construção das experiências não sentidas para que possam obter significação na relação analítica. Com esse fim em mente, a atitude do analista deve ser predominantemente facilitadora, reanimadora, explicativa, discriminativa e inter-relacionadora, tendo sempre presente na relação transferencial a diferença entre intersubjetividade e transubjetividade, para evitar um atravessamento narcisista que implique investimentos fusionais e adesivos, os quais darão lugar à formação de uma dupla que funciona como continente de conteúdos indiferenciados.

Essa nova clínica - de maior complexidade, que exige uma formação e uma experiência muito mais sólidas e obriga o analista a abrir mão do setting clássico e da associação livre - requer o comprometimento com uma dinâmica transferencial que se desenvolva para além do complexo edípico, tendo em vista que o padecimento desses pacientes não decorre de um conflito sexual, mas de um conflito existencial, predominando, por conta disso, o psiquismo do ato, expressão do pulsional não representado, que Marty denomina de neurose de comportamento e que, de acordo com Soldati (2015), configura uma clínica de pessoas muito bem-sucedidas no plano intelectual e com uma urgência de trabalho que os faz triunfar profissionalmente, acrescentando que, em contrapartida, a capacidade de fantasiar desses pacientes é pobre e eles prestam pouca atenção aos afetos, podendo, por conta disso, vir a apresentar doenças orgânicas.

Trata-se, portanto, de uma nova proposta em relação à técnica e ao objetivo da psicanálise, a qual nos confronta com a dúvida sobre a sua essência, ou seja, se ao trabalharmos dessa forma ainda nos encontramos no campo da psicanálise freudiana. Não obstante, como lembra Tebaldi (2012), temos de considerar que os sinais dessa mudança podem ser observados bem antes, quando Freud, em 1918, publicou o caso clínico do Homem dos Lobos (1976c), expondo as limitações da psicanálise baseada na reconstrução da sexualidade infantil e na interpretação dos sintomas e das fantasias derivados da sexualidade infantil. Nesse momento, ficou claro que o inconsciente não pode ser limitado ao recalcado, abrindo espaço para uma retomada da neurose atual, uma patologia que, segundo Freud (1894/1976f, 1895[1894]/1976i, 1895/1976h, 1896/1976b, 1896/1976g), é desencadeada pela dificuldade de descarga da tensão sexual acumulada, a qual, por não dispor de uma condição psíquica capaz de transformá-la em afeto sexual, permanece estancada até descarregar-se através de uma angústia automática, que se manifesta no corpo por sintomas neurovegetativos, configurando uma teoria econômica: a sufocação do afeto, com a posterior inundação do aparelho psíquico por uma energia incapaz de ser elaborada pelo sujeito, vai causar manifestações corporais.

Em Além do princípio do prazer (1920/1976a), Freud formulou a segunda teoria das pulsões, em que atribuiu às experiências traumáticas e às desorganizações mentais o que ele denominou de pulsão de morte, a qual se inscreve em um novo modelo pulsional ao lado das forças de ligadura e de organização das pulsões de vida.

A neurose atual retorna em 1926, dessa vez em relação à neurose traumática, quando Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1976d), reformula sua teoria da angústia. Ao contrário da compulsão à repetição, pulsão de morte que se origina no id, a repetição ocorre na esfera do ego e busca encontrar uma solução para um conflito não resolvido.

Como é possível constatar, a neurose atual é sustentada ao longo de toda a obra de Freud, mas, uma vez que ele não a considerava passível de análise, foi relegada a segundo plano pelos analistas. Contudo, nas últimas décadas, alguns autores passaram a reavaliar a questão da neurose atual. Marty e seus seguidores da Escola Psicossomática de Paris perceberam um fato enigmático: nos doentes graves, o ruído de sua desorganização somática era acompanhado pelo silêncio de sua mente. Parecia que, na medida em que progredia essa desorganização somática, assistia-se, ao mesmo tempo, a uma redução da complexidade e, correlativamente, do potencial organizador da psique. Tais pessoas caracterizavam-se pela ausência de pensamento simbólico e pela presença, em alguns casos, de apatia, e em outros, entre os quais quem sabe pos-samos incluir os pacientes abordados neste trabalho, de uma hiperatividade incessante, o que possibilitou a criação de conceitos como depressão essencial, pensamento operatorio e vida operatoria (Marty, 1976, 1993, 1995).

Mais recentemente, Maldavsky e colaboradores (1992, 1995, 1998, 2000, 2004) estudaram alguns transtornos que se caracterizam pela sufocação do afeto e ausência de representações psíquicas. Eles partem do pressuposto, concordando com Freud, de que existe um momento primordial pré-psíquico que coincide com o nascimento, no qual só se fazem presentes neurônios e quantidades, sendo que a mente começa a se formar quando a quantidade sofre uma transformação, uma qualificação, que são os afetos. Os afetos são os primeiros a se desenvolver como algo novo, algo diferente dos processos puramente quantitativos do id. Os afetos e a percepção, que aparece depois e que origina as marcas mnêmicas, constituem os conteúdos iniciais da consciência e, juntos, irão estruturar o ego real primitivo, correspondendo às primeiras semanas de vida, quando o bebê deve registrar uma série de excitações que vêm do interior do seu corpo. Freud (1917[1915]/1976j) atribuiu ao ego real primitivo a capacidade de funcionar, por meio de suas percepções, como a primeira operação para orientar-se no mundo, tendo como referência uma ação muscular ou um choro, que faz com que o seio materno apareça.

O modelo freudiano da neurose atual é, a nosso ver, a teoria indispensável para compreender os "pacientes em trânsito", os quais se caracterizam pela falta da angústia antecipatória (típica de uma organização de ego regida pelo princípio da realidade), inundação do aparelho psíquico e predomínio, como sugere Marty, da utilização das vias motora e orgânica para tramitar a excitação interna e externa percebida pelo ego, uma vez que não têm capacidade de utilizar a via da representação ou psíquica como fazem os neuróticos.

Por último, caberia questionar sobre a razão do surgimento e/ou crescimento numérico desses pacientes, mas essa questão abriria mais um leque de interrogantes que nos colocaria diante de um novo trabalho. No entanto, como ponto final, deixamos a pergunta: a clínica psicanalítica contemporânea resulta de mudanças socioculturais radicais, que remetem o indivíduo a um mundo em que fronteiras não mais existem e no qual a noção de permanência foi substituída pelas de velocidade e aceleração do tempo, ou devemos considerar que as características do mundo atual apenas se oferecem como defesas a patologias que sempre existiram, com a diferença de que a psicanálise, nos últimos anos, mediante a ampliação do seu conhecimento, vem modificando a sua técnica para dar conta dessas manifestações?

Seja por uma ou por ambas as razões, se estivermos de acordo com a ideia de que realmente nos encontramos diante de um novo desafio, o caminho para enfrentar essa realidade, sem dúvida, é a própria psicanálise: uma ciência revolucionária por sua originalidade, sua ousadia e, principalmente, sua capacidade de renovar padrões. Como disse Freud no 5.° Congresso Internacional de Psicanálise: "Nunca nos vangloriamos da inteireza e do acabamento definitivo do nosso conhecimento e de nossa capacidade" (1919[1918]/1976e, p. 201), reconhecendo que a técnica psicanalítica se desenvolveu com vista ao tratamento da histeria e que uma ampliação da psicanálise se fazia necessária para adaptar-se às novas exigências da clínica. Concordamos com Giovannetti: "Se não elaborarmos o luto pelo século que acabou com a queda das Torres Gêmeas, só nos restará o fetiche de uma clínica fora do seu tempo" (2014, p. 4).

 

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Correspondência:
Gley Silva de Pacheco Costa
Rua Mariante, 288/1308
90430-180 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 3346-3032
gley@terra.com.br

Recebido em 03.11.2015
Aceito em 25.03.2016

 

 

1 O atendimento por Skype não parece adequado aos casos abordados neste trabalho.
2 Obviamente, não se trata aqui da consciência oficial que Freud, no Projeto (1950[1895]/1977), chamou de secundária, implicada na formulação fazer consciente o inconsciente, mas de uma consciência anterior, originária, a qual chamou de neuronal, que consiste na captação da vitalidade pulsional como fundamento da subjetividade (Costa, 2015).

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