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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo abr./jun. 2018
DIÁLOGO
Entrevista: Emmanuelle e Bernard Chervet
Tradução Marilei Jorge
Em abril de 2018, a Revista Brasileira de Psicanálise recebeu o casal Emmanuelle e Bernard Chervet para uma entrevista na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psicanalistas e psiquiatras franceses, de Lyon, pertencem à Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP).
Emmanuelle é diretora do Instituto de Psicanálise de Lyon. Em 2017, escreveu o relatório "Patient, et interprète: le domaine intermédiaire", elaborado a partir do 77.° Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa. Seus principais interesses são o atendimento psicanalítico de adolescentes, a interpretação em suas diversas formas na clínica contemporânea e o trabalho do pensar do analista. Escreveu vários artigos para livros e revistas psicanalíticas, como "Scènes familiales et consultation thérapeutique d'adolescents" (2013), "Messages transmis par l'analyste" (2014) e "Quelques remarques sur l'usage de la notion de transitionnalité" (2017).
Bernard é membro didata e ex-presidente da SPP (2011-2015). Sua grande contribuição à psicanálise contemporânea concentra-se na leitura da metapsicologia freudiana e na investigação da ética do psicanalista. Além de artigos publicados, entre os livros que organizou, encontram-se Le rêve et la séance (2007) e Avancées de la psychanalyse (2008). Em 2009, como relator do 69.° Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, escreveu um importante relatório sobre o tema do après-coup (o Nachtráglichkeit freudiano, a posterioridade).
RBP: Para nós e para os leitores da RBP, esta é uma boa oportunidade de conhecê-los melhor, o que nos deixa muito contentes. Gostaríamos de saber como se situam diante da psicanálise contemporânea, a partir de um vértice vertical, a filiação, e também de um vértice horizontal, os parceiros e profissionais da mesma geração.
EMMANUELLE: Penso que no início da formação a filiação é um tanto difusa, e há risco de nos esquecermos de detalhes importantes, ou de pessoas que muito nos influenciaram. Acredito que, em sintonia com a psicanálise contemporânea e paralelamente a toda uma geração, fui muito influenciada pela importância atribuída à contratransfe-rência. Com a evolução do meu pensamento, passei a considerar que o essencial de nosso objeto e de nossa reflexão é ver a análise como um conjunto, o que amplia e talvez relativize um pouco a noção de contratransferência. Há também influências mais específicas, das quais destaco duas: uma são os excelentes textos, de forte ascendência francesa, que conheci por meio de Bernard; a outra é Jean-Luc Donnet, companheiro de trabalhos e seminários, que me apoiou e me encorajou desde o início, com quem tive a oportunidade de aprofundar bastante a questão do Agieren no atendimento. São esses os temas que mais me interessam.
BERNARD: Agradeço por nos fazerem falar. Se tiver que definir minha filiação pessoal, direi que, sem dúvida, é de um forte classicismo. Sou reconhecido por minha leitura da metapsicologia freudiana. Li vários outros autores, entre eles Lacan, Laplanche e todos os anglo-saxões, mas sempre os confronto e comparo ao pensamento freudiano. Creio que autores posteriores desenvolveram certos aspectos da obra de Freud, trouxeram novidades, mas sempre no campo e no espaço do pensamento freudiano. Ninguém até hoje saiu verdadeiramente da obra de Freud, que continua sendo a maior entre nós. Logo, atribuo grande importância à obra freudiana. Para além de Freud, está a metapsicologia, pois o essencial é o pensamento, e não o homem. O pequeno Hans dizia: "Será que o professor Freud fala com Deus?". Eu diria que falo em alguns momentos com a metapsicologia, que está além dos autores. Para mim, isso é o essencial, uma verdadeira filiação. Frequento a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) desde que me tornei membro (1995), e em 2015 finalizei uma presidência que durou quatro anos. Sempre estive em contato com uma enorme quantidade de colegas, e sou marcado por meus pares, pelo ambiente cultural e psicanalítico de nossa Sociedade e, evidentemente, de toda a comunidade psicanalítica. Ser presidente foi importante para me aproximar da Federação Europeia de Psicanálise (FEP) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), o que quase não fazia antes. Foi realmente o fato de ser presidente que me colocou numa posição de abertura e crescimento, a qual me faz feliz, pois somos convidados em várias Sociedades de Psicanálise, o que promove um maior compartilhamento entre pares. Sim, agora falo mais em compartilhar do que em filiação.
RBP: Acreditam que há uma posição política e clínica específica da SPP, diferente de outras Sociedades da IPA?
EC: Sob esse ponto de vista, pode ser que vocês percebam melhor do que nós o que é a psicanálise francesa. Quando temos a oportunidade de discutir com nossos colegas anglo-saxões, o que nos parece bem específico é a preocupação com a rememoração, ou seja, o material da sessão, o aqui e agora, que terá significado de acordo com a possibilidade de se abrir para uma rememoração histórica. Os conteúdos históricos têm uma grande importância para nós, mas sob um olhar diferente ao de nossos colegas anglo-saxões. Outro elemento importante, muito desenvolvido na época de Lacan, mas agora um pouco menos imperativo, é a questão da linguagem. Os psicanalistas atribuem mais importância às palavras que o paciente utiliza, pois, por serem próprias, são o melhor contato possível com suas representações inconscientes. Portanto, devemos passar pela linguagem do paciente para poder trabalhar.
BC: Compartilho totalmente a fala de Emmanuelle. Quero deixar claro que para mim não há uma psicanálise à moda francesa. Há uma psicanálise francesa, mas não à moda francesa. Concordo com a crítica de Goethe a respeito da tendência dos franceses em querer recuperar coisas e, em nome da tradução, re-traduzi-las a seu modo. É importante que a SPP resista a esse algo, talvez demoníaco, que possa existir. No início da SPP, Freud se queixou de que alguns franceses queriam transformar determinadas palavras para criar uma psicanálise ao estilo francês, que chocasse menos que a chamada psicanálise anglo-saxã, marcada na Alemanha e na Áustria pela língua anglo-saxã. Freud disse que era preciso ser firme em manter a nomenclatura, porque se fracos fôssemos em relação às palavras, fracos seríamos em relação aos conceitos. Como ex-presidente da SPP, não defender uma psicanálise à francesa é uma tomada de posição importante. Agora, como responsável pelo Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPFL), tenho enorme prazer e interesse em pensar o jogo que acontece entre traduções, pois cada língua pode trazer alterações e, ao mesmo tempo, novos esclarecimentos a respeito da obra de Freud. É interessante que as traduções nos levem a refletir sobre os conceitos. Sob o eixo metapsicológico, vejo que a tradução não é somente um traduzir é trair. Para mim, a metapsicologia e os conceitos freudianos são muito relevantes, e os faço trabalhar em diversas línguas. Vamos realizar um congresso na Itália sobre as transformações, o que nos levou a incluir Bion nos trabalhos. Evidentemente, eu me interessei em ver como Bion e os anglo-saxões traduzem Freud. Verifiquei que termos traduzidos por eles, quando de volta ao francês, resultam numa tradução completamente diferente daquela feita direto do alemão ao francês. Esse é um jogo que pode ser considerado uma babelização de nossos conceitos, mas, se tomarmos cuidado em manter os conceitos freudianos, poderemos ter uma articulação enriquecedora. Esse é o primeiro ponto.
Outro ponto, particularmente importante, é a história. França e Brasil têm um ponto em comum em relação à forma como a psicanálise foi introduzida. Na França, a comunidade médica apresentou alguma resistência, mas houve ótima receptividade do meio cultural. No Brasil, também houve um grande entusiasmo cultural, no meio literário e por parte de artistas, mas os primeiros psicanalistas, que criaram a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, não foram necessariamente médicos. Ambos temos uma ligação afetiva com uma psicanálise profana, e não estritamente médica, como nos eua e em outros países com os quais temos diferenças. Isso é história, e o que pode caracterizar a SPP é, sem dúvida, sua história, a mais antiga Sociedade na França.
Chegamos agora ao terceiro ponto: a SPP traz uma ruptura ao único modelo de formação proposto pela ipa, o modelo Eitingon. A SPP dá início ao modelo francês, uma maneira diferente de pensar a formação. É uma vantagem a hegemonia do sistema Eitingon poder ser rediscutida, o que abre espaço para novas conversas, não só sob o vértice da ciência, mas também sobre a organização completa da formação, como acontece atualmente na ipa. A rediscussão do modelo Eitingon resulta da introdução do modelo francês. É um modelo interessante, que surge como consequência de problemas do pós-guerra, e não de modelos teóricos. Depois da Segunda Guerra, há um novo entusiasmo em relação à psicanálise na França, aumenta a procura pela formação e os poucos analistas formadores se veem sobrecarregados. Buscando uma solução, solicitam à IPA que os autorize a realizar supervisão em grupo, e a reduzir o número de sessões da análise didática dos analistas em formação, para apenas três dias por semana. Primeiro se configurou a prática, e da prática se configurou a teoria. Ao mesmo tempo, na França, acontecia toda a movimentação de Lacan, sua cisão etc., o que levou a uma maior reflexão sobre essa teoria e modelo, mas, principalmente, reforçou um conceito muito importante na psicanálise francesa (e não à francesa), que é o après-coup (a posteriori), o Nachtraglichkeit de Freud, a concepção da temporalidade e da causalidade psíquica, que continua sendo um elemento fundamental no pensamento e no modelo de formação francês. A maior novidade não foi o número de sessões, mas o relatório, que agora já tem uma importância menor. A grande diferença se dá em relação à temporalidade, e por isso a ideia do après-coup. Isso quer dizer que, para nós, a formação acontecia após a análise estar terminada, ou seja, em dois tempos distintos. O estatuto afirmava que não poderíamos iniciar a formação antes de, no mínimo, três anos de análise. Mas a maioria só começava depois de oito, doze anos. Eu fiz uma única análise de 17 anos. Atualmente, o que é muitíssimo interessante, e que aproxima os modelos, é o fato de poder continuar a análise quando ela já está suficientemente avançada e, ao mesmo tempo, tornar-se candidato e fazer a formação. Isso permite associar livremente no divã sobre tudo o que acontece no âmbito do pessoal, da formação e do institucional, uma importante vantagem, inerente ao modelo Eitingon. Quando terminei a análise, já havia feito minha formação e era membro da SPP. Antes, isso ocorria em dois tempos. Agora existe uma superposição e, simultaneamente, uma temporalidade diferente, pois a superposição permite que haja encadeamentos, entrecruzamentos ou passagens de um modelo a outro. Isso modifica bastante a ideia da crise atual entre diferentes modelos.
RBP: Essa é uma história viva, de transformações na psicanálise que acontecem a partir do impacto da guerra. A psicanálise está viva...
BC: Ao contrário do que se imagina, a psicanálise na França e na Inglaterra se desenvolveu de forma extraordinária no plano da teorização. Após a guerra, as modificações no modelo francês foram criadas por razões pragmáticas, totalmente concretas e práticas, e a teoria veio depois. Se isso tivesse ocorrido inversamente, penso que eu questionaria realmente o sistema. Se tivéssemos aplicado uma teoria, não tenho certeza de que teria sido interessante. De fato, isso saiu da vida de um país, de uma preocupação, de um movimento, de uma cultura; de um pensamento modernista que existiu entre nós e que, de todo modo, é grandioso.
RBP: Vemos que o après-coup é um conceito muito importante em suas reflexões e trabalhos. Poderiam falar mais sobre esse conceito, e também a respeito do movimento regrediente / progrediente na clínica, o movimento relativo aos dois tempos do trauma, nos sentidos regressivo e progressivo ?
EC: Talvez seja interessante voltar a Lacan, quando diz que o objetivo do atendimento não é a compreensão do que acontece, mas a revelação do sujeito para ele mesmo, através da própria fala. O paciente, ao falar na sessão, reatu-aliza suas experiências passadas, não integradas, numa experiência atual, que é a da transferência e que, em certas condições, pode se estender para fora da sessão. É na elaboração dessa experiência atual, que traz de volta experiências, impressões e traços de memória, que esse material, après-coup, poderá receber um novo sentido, e algo se realizará em sua elaboração psíquica. É de fato uma coisa totalmente diferente da compreensão de um simples pensamento. A meu ver, é na prática que se encontra o essencial da ideia do après-coup. E é assim que percebemos nosso trabalho a cada instante.
BC: Em 2009, durante o CPFL, antes de ser presidente, apresentei um relatório sobre o après-coup que, com certeza, foi muito importante. Nesse relatório, há um entrecruzamento de várias coisas, e também o conceito freudiano de sobredeterminação, isto é, tudo que acontece conosco e que fazemos é absolutamente sobredeterminado, mas só depois é percebido. Podemos ler apenas uma parte do que fazemos, uma parte que é consciente, voluntária e decidida, mas, mesmo nessa parte mais consciente, no après-coup, o significado pode ser mudado. Em nossa vida é assim e, na melhor das hipóteses, poder ter essa percepção é o que importa. No início do pensamento de Freud, o après-coup era a criação, a produção de sintomas. Era Emma, eram os sintomas histéricos etc. Depois, pouco a pouco, Freud abandonou o uso do termo Nachtraglichkeit (posterioridade) e nunca mais o empregou. Mas, por outro lado, continuou a utilizar intensamente a ideia de que o funcionamento mental e a sexualidade ocorriam, dinamicamente, em dois tempos. Isso permanece muito importante. Penso que, em seguida, como consequência da guerra, da necessidade de salvar a pele, do confrontamento com acontecimentos traumáticos, a psicanálise na Europa, e mais ainda nos eua, voltou-se para a psicologia do ego, ou a psicanálise do ego. Houve um movimento de recolhimento, mas também de recuperação, pois os traumas europeus históricos foram tão intensos que, nesse momento, foi preciso acontecer uma reapropriação do termo ego, algo que nos levasse a acreditar que seria possível tomar decisões. Depois, Lacan aparece e faz tudo explodir. Ele simplesmente recoloca em cena, sem nenhuma reteorização, o nachtraglich ou o Nachtraglichkeit. Isso me permite dizer, brincando, que Lacan foi tomado pelo après-coup de Freud! Há um jogo entre ele e sua própria identidade.
Freud deixa de usar esse termo em 1917, mas continua a se valer da ideia de algo que acontece em dois tempos, introduzida em Além do princípio do prazer (1920). Portanto, o conceito de après-coup poderia ser inteiramente redesenhado, integrando-se a ele as contribuições posteriores de Freud, em especial a segunda teoria das pulsões e a segunda tópica. Os trabalhos de 1920 a 1923 permitem repensar totalmente o après-coup. A isso me dediquei. Dou grande valor a essa nova maneira de pensar de Freud. Apesar de não gostar muito do termo chamarei a esse momento de, le virage. Era necessário repensar o après-coup, trazê-lo de volta ao seu real valor, não somente como reintrodutor de sintomas, mas como a possibilidade de tratar toda a dimensão traumática que, tendo sido vivida tão intensamente na Europa, necessariamente foi deixada de lado. Foram necessários muitos anos para recolocá-la em cena e questionar como a psique poderia tratá-la. O après-coup é um elemento absolutamente essencial. O trabalho de memória invocado por alguns exige, ao mesmo tempo, um trabalho de esquecimento, pois os dois caminham juntos. Não se pode falar em trabalho de memória sem falar na necessidade de um trabalho de esquecimento. A psique precisa esquecer para lembrar. E é aí que se encontra o movimento regrediente/regressão e progrediente/progressão. É preciso deixar que os elementos traumáticos recuem, que sejam regredientes sobre regressões formais múltiplas, sensuais ou outras, para depois, em um segundo tempo, deixá-los voltar. Para mim, o trabalho de memória só tem valor num segundo tempo pois, se alguma vez colocarmos um trabalho de memória em primeiro lugar, a dinâmica estará em total curto-circuito. Nesse momento, o que criamos? A patologia atual, quando a pessoa está bloqueada, inteiramente traumatizada e não tem mais nenhuma liberdade. É importante não esquecer, mas também é importante nos permitir esquecer.
RBP: Falar do après-coup e do traumático nos faz pensar no Agieren. Vocês se dedicaram bastante a esse conceito. Poderiam falar sobre o trabalho do analista, quando se apresentam várias formas de agir durante o atendimento?
EC: O elemento essencial é que, na teorização psicanalítica clássica, havia um elemento depreciativo ligado ao agir, o que se tornou um modo de pensar, mas também retomou a ambivalência de Freud em relação a essa questão. Freud descobriu a transferência, que é um Agieren, um Agieren por excelência, visto inicialmente no inconsciente, como a via real. Essa descoberta permitiu que se voltasse a falar sobre o agir como a segunda via real. Desse ponto de vista, o Agieren deve ser considerado, tecnicamente, um dos elementos de atualização durante o tratamento, o que é absolutamente indispensável. Todo o trabalho consiste em deixar inscrever-se o que o agir põe em jogo, possibilitar ao paciente encontrar um movimento regrediente, que permita fazer pelo esquecimento essa inscrição da memória, num modo regrediente elaborado. No entanto, antes que esse trabalho possa ser feito, é preciso que o conteúdo seja atualizado. Há, porém, uma parte do conteúdo que não é capaz de se atualizar simplesmente por lembranças; ele se atualiza através do agir, do Agieren, podendo ir da simples convicção realista do paciente, quando ele fala acreditando que o que diz é exatamente o que diz, num modo de fala que contém o agir, até o agir catastrófico. Observamos isso a todo momento - por exemplo, chegar ao ponto de remover um seio cirurgicamente, algo exterior ao tratamento psicanalítico. Portanto, existe de fato todo um gradiente. Há uma modalidade de vida psíquica que vai em direção à motricidade, que se engaja em habilidades motoras, e outra modalidade, de que Freud fala em A interpretação dos sonhos (1900), que inverte o investimento psíquico em direção à receptividade, à inscrição psíquica, o que supõe colocar a motricidade em repouso.
RBP: A fala pode conter elementos do Agieren e ficar mais próxima do agir que do pensar, como no gradiente proposto por Jean-Luc Donnet, que vai da fala agida a uma fala mais próxima do representacional?
EC: Sim. A palavra pode também ser utilizada no modo do agir, ou no modo da associação dita livre, o que permite que o paciente, ao escutar a própria fala, inscreva esses conteúdos evocados na fala.
BC: Somos um casal, mas mantemos diferenças. Então, vamos nos manter na diferença, o que não nos impede de ser um casal! Freud não disse que o Agieren era a via real, disse que a interpretação do sonho era a via real. Em 1932, ele faz uma critica, considerando que a psicanálise atribuía cada vez mais precedência à transferência e à interpretação da transferência do que à interpretação dos sonhos. Portanto, nós nos encontramos diante de uma configuração muito interessante. Evidentemente, as pessoas que dão mais espaço ao Agieren são aquelas que dão enorme importância ao período 1914/1915. É a rememoração que remete a 1895/1900/1905. Em seguida, porém, Freud se dá conta de que o material não vem somente por representações, como o material mnêmico, mas também por um agir através da palavra. A palavra age no material inconsciente. É preciso localizar corretamente o Agieren: é um material inconsciente que age quando se fala. E o que eu sei nesse momento? Não sei nada no plano do Agieren. O que sei é que, no nível do Agieren, há algo sobre mim, algo totalmente sobredeterminado em termos de Agieren. É algo meu, que não pertence ao material de mesmo nível daquele que é rememorável. Digo isso ao estilo de Lacan que, provavelmente é também o meu. Vimos, assim, um primeiro ponto no qual diferimos.
Outro ponto, a repetição antes incontestável, em "Recordar, repetir e elaborar" (1914), muda a partir de 1920. Freud não diz isso expressamente, mas não tem mais a certeza de que as coisas consigam ser sempre lembradas, repetidas, pois, em determinado momento, há o risco de que algo não seja nem lembrado nem repetido. Essa situação o coloca frente a uma clínica bem mais difícil, o que faz com que logo mais escreva Inibição, sintoma e angústia (1926). A palavra inibição é a face negativa, isto é, quando se esquece não é inibição. A inibição é alguma coisa que não aparece na lembrança nem na repetição. Ora, penso que essa é a clínica atual. Portanto, dou um pouco menos de importância à inibição, apesar de considerá-la muito importante. Em relação à clínica global, parece que há uma experiência da rememoração, uma experiência do Agieren, de algo que começa a agir de maneira repetitiva na transferência e que deve ser compreendido como algo consistente da pessoa. Isso é fundamental. Também há esse grande enigma atual, de uma contemporaneidade datada em 1920, cada vez com maior peso, que se refere à dependência de uma psique que não existe, que não consegue existir. Daí surge o conceito de denegação. Há alguma coisa que impede totalmente que se realizem trechos completos de mentalização. Estamos aqui diante de uma situação muito particular, que é a construção e a desconstrução. Estar em desconstrução/reconstrução é estar em desidentificação/reidentificação. Estamos no classicismo, construindo o que faltou ser construído. Vemos que Winnicott, Bion e outros trabalham com essa clínica da construção, do que faltou ser construído, daquilo que nunca foi construído. Mas, a meu ver, há certa tentativa que deturpa essa clínica.
EC: Completo, pois não posso acompanhar seu raciocínio quando diz que a questão do agir é essencialmente do período de Freud dos anos 1914/1915, de "Recordar, repetir e elaborar". Isso é o Agieren propriamente dito. Mas há outra dimensão do que age nos pacientes durante a cura, na sessão e fora dela - que tem origem após 1920, mais no modelo do jogo e do espaço transicional, ligado a Winnicott -, em que os pacientes efetivamente conseguem, pela primeira vez, porque estão em tratamento, investir certas experiências e inscrevê-las. É claro que nunca temos certeza de que isso será possível, mas às vezes pode-se acompanhar, por meio das transferências laterais, a organização de um traumatismo sexual, que abrirá determinados pontos da via psíquica antes completamente barrados por denegações. É uma sorte a psicanálise oferecer essas possibilidades, mesmo que isso não aconteça sempre. Esse é um espaço que se abre, especificamente, quando podem ser atualizadas as identificações inconscientes que organizaram as denegações. As identificações inconscientes não podem vir de maneira nenhuma sob a forma de representações. Logo, aparecem como cenas do agir. Isso é bastante elaborado em relação à psicose, o que justifica o tratamento e a fala dos psicóticos. Portanto, acrescento essa diferença, que é sempre um pouco otimista.
BC: Vemos uma distância entre o Agieren e o agir. A palavra Agieren, no sentido estrito do termo, tem que ser localizada num momento específico da obra de Freud. A noção de agir, de pessoas que desenvolvem um pedaço inteiro de vida para se proteger da falta de mentalizações, o.k., existe. Mas essa não é exatamente a definição de Agieren. Também não é a definição de Freud para o termo construção (1937). Há diferenças. Mas a palavra se aplica bem ao que temos a fazer, construir. Construção é algo muito delicado, e é preciso cuidar para que o analista não interfira e comece a construir a partir daquilo que quer de seu paciente, o que não mais corresponderia verdadeiramente ao paciente. A psicanálise anglo-saxã refere-se a isso utilizando as noções de criatividade e generatividade. Mas são as análises sobre o paciente que estão na generatividade, na criatividade?
RBP: Estamos falando de situações, vividas na transferência, que possibilitam mudanças psíquicas, inscrições inéditas para o paciente. Mas vale lembrar as dificuldades em relação à interpretação do ódio e da transferência negativa, tema que vocês também trabalham. No relatório do CPFL de 2007, há uma frase que diz: "Se a angústia é o risco e a passagem obrigatória da análise do recalque, o ódio é o risco e a passagem obrigatória da análise do ego".
EC: Isso permite voltar à diferença que existe em relação à psicanálise anglo-saxã, que interpreta muito a transferência. Nosso modo de trabalhar consiste, sobretudo, em considerar que a atualização transferencial é uma espécie de motor do tratamento, que se deve deixar funcionar. Desde que ele traga material, deixe-o trabalhar e não interprete a transferência. Freud diz que, quando o motor para, cessa a possibilidade de vir material, surge a ameaça de ruptura do tratamento. E aí, concordamos com os autores anglo-saxões, torna-se imperativo tentar interpretar a transferência quando se trata de uma transferência negativa, pois há possibilidade de haver uma ruptura do tratamento. Nesse caso, há uma necessidade de se posicionar, de dizer alguma coisa. Aí voltamos às identificações inconscientes, pois me parece que, na maioria dos casos, a transferência negativa, quando estruturada como tal, baseada em ódio, surge quando o tratamento começa a questionar as identificações inconscientes às quais o paciente está ligado, identitariamente. Então, é de fato do seu eu que se trata, um eu que acha que tem absoluta necessidade dessas identificações inconscientes. Falamos bastante em termos de imago, mas pode-se dizer que uma identificação inconsciente tem o modo de funcionamento dos pais e é absolutamente imperativa. Provavelmente, por causa de denegações em comum no seio da família. E aí, quando essa identificação é posta em perigo, pode surgir um ódio muito forte, que obrigue o paciente a ir embora. Nesse caso, há um desafio interpretativo delicado. Essa é uma das configurações, claro.
BC: Vocês introduzem um elemento característico da ambivalência mais tardia na obra de Freud, a ambivalência fundamental entre mentalizar ou não mentalizar, com o cruzamento constituído pelo ódio. Para Freud (1915), da mesma forma, o objeto nasce no ódio, fórmula bem conhecida e bem clássica. Pode-se dizer mais, que a psique nasce no ódio (depois de 1920). Isto é, a própria construção da psique exige que se odeie. Em minha opinião, o que faltou foi uma verdadeira construção cheia de ódio, fundadora, como a que denominei o mestre fundador; alguma coisa que servisse de base ao sujeito para odiar o que ele aliena, para tentar se livrar disso. Esse é um trabalho muito difícil em certas circunstâncias, em certos graus de alienação, alienação que está onde há mais ódio. Depois de 1920, estamos na negativação, não no negativo no sentido de André Green, em O trabalho do negativo. Para Green, o trabalho do negativo é o trabalho do inconsciente, que permite aprofundar a noção, por exemplo, do trabalho do sonho. É esse o trabalho que se realiza em nós, no sentido de Freud: "A neurose é o negativo da perversão". A partir de 1920, não estamos mais no negativo, mas na negativação. Ora, há negativação até mesmo da possibilidade de odiar. Quer dizer, não há mais meio de o paciente encontrar a saída sozinho, pois não pode deixar de estar alienado, desalienar-se, perder sua identificação sozinho. Nomeei essa identificação de defectiva porque é defectiva. É o caso da melancolia. Quando Freud mostra que a sombra do objeto cai sobre o eu, há uma identificação defectiva, isto é, quando o sujeito se identifica com a sombra do objeto, essa é uma identificação com a qual ele não pode se construir. Portanto, uma hora ou outra, o sujeito vai precisar encontrar uma saída. Para isso, necessitará do analista. Este poderá auxiliá-lo a odiar essa sombra e a se liberar dela pouco a pouco, e assim poder se construir, ou essa sombra não será uma sombra que se odeia, mas uma sombra na negativação do ódio. Aí estaremos imersos num conflito, entre um ódio que nos ajuda a nos construir e um ódio da recusa de se construir. Mas, ali onde o sujeito odeia em termos de resistência, ele tem um ódio de resistente, porque há uma recusa em se construir. Há também um ódio que não consegue existir, que está realmente preso na negativação. São essas identificações que tornam impossível o afeto do ódio e mesmo a concepção do ódio. Há um trabalho muito intrigante a fazer, totalmente contemporâneo e novo. E há cada vez mais casos. O último livro de André Green apresenta casos que ele tratou durante 35 anos e que não cessaram de se degradar lentamente, apesar de todos os materiais de rememoração, de repetição, de Agieren, de ódio oficial. Mas havia também outros níveis da psique, presos pela negativação, que acabaram vencendo.
RBP: Vocês empregam o conceito de um superego suficientemente funcional, que seria a condição da analisabilidade. Haveria alguma relação entre o superego suficientemente funcional e o ódio?
EC: Considero que o encadeamento das questões foi sutil e metapsico-logicamente organizado, muito interessante. Como Bernard observou, efetivamente o ódio põe em risco a análise do ego, mas ainda é preciso ter um ego. Poderiamos dizer que aí está a definição de psicose: não poder ter acesso à organização do ego, pelo fato de estar mergulhado na psique parental, nas excitações. Mas - e esta é realmente a segunda tópica de Freud - é preciso que os elementos negativos sejam extraídos da culpabilidade inconsciente para organizar uma instância. O que permite organizar a destrutividade, no interior da psique, é a organização de um superego que utilize as forças destrutivas e negativas com o objetivo de crescimento e elaboração. Essa é realmente a função dessas forças. Uma pessoa não pode se organizar se não há esse esboço por meio do superego, cuja primeira função é conter a experiência psíquica, inscrevê-la, guardá-la - logo, definir um interior e um exterior. Essa também é a minha função e não quero abandoná-la. Portanto, esse esboço do superego é realmente o que informamos ao paciente quando lhe apresentamos a regra fundamental, quando lhe dizemos que estamos ali para conter sua experiência, com o pensamento e com as palavras. Daí também a ligação muito forte do superego com a linguagem, e as injunções com traços auditivos dos pais. A partir desse ponto de vista, parece-me que a condição de um tratamento pode ser um esboço, clivado do resto. Mas esse esboço do superego, que faz o paciente saber que ele está ali para isso e que ele quer fazer isso, é necessário ao tratamento. É preciso ter essa espécie de convicção mínima, de que está ali para inscrever seu espaço interno e que isso poderá ser feito com palavras, ter um motivo para suportar todo o masoquismo que o tratamento exige: ter paciência, ir às sessões com regularidade. Há também uma espécie de pacto mínimo, que nos dá a vontade de acompanhar esse paciente. É a percepção de que, apesar das preocupações que venham a surgir, poderemos acompanhá-lo e que não estaremos, justamente, numa degradação.
BC: Vou dizer algo um pouco diferente, mas que se soma a isso. Rompi totalmente com a noção de analisabilidade, de indicação de análise e coisas assim, pois creio que só poderemos saber disso a posteriori. Acredito que o après-coup é fundamental. Portanto, acho difícil começar dizendo: "Esta é uma boa indicação de análise!". Isso seria ignorar forças muitíssimo poderosas e totalmente não aparentes em um paciente, que podem revelar-se durante uma análise e que exigem uma abordagem bastante delicada. Fico perplexo quanto a essa definição antecipada. Evidentemente, quando aceitamos um paciente e este aceita vir, há uma potencialidade, apostamos nessa potencialidade, mas não sabemos o que será descoberto no meio do caminho. Bem, isso em relação à analisabilidade.
A respeito do superego, há um problema que se une a tudo o que dissemos, porque as noções, no plano das descobertas, genética e cronologicamente, eram o inconsciente e o ego, o inconsciente e o id, sendo o superego a última instância trazida. Ora, para que a psique exista é preciso haver não apenas o superego, mas um imperativo que se torne o superego, um imperativo que inscreva as coisas no plano de uma mentalização, que exija uma mentalização. A questão que não se levanta é que, com certos pacientes, temos a impressão de que há um campo possível, mas esse imperativo de mentalização, de inscrição na mentalização é muito fraco, o que só pode ser reconhecido durante o percurso. Freud vai ter esta percepção bem mais tarde. Em "Análise terminável e interminável" (1937), ele diz: "Às vezes, 10 anos depois, temos a sensação de que estamos escrevendo na água". Ou seja, tudo que foi trabalhado, que se inscreveu, que se exprimiu na linguagem, na interpretação, na verdade não se inscreveu, não tomou forma alguma, não tomou consistência no interior.
Isso vai ao encontro do que dizíamos há pouco, e acredito realmente que hoje em dia, no ponto em que estão nossos trabalhos, nossas descobertas ou clarividência, não temos instrumentos teóricos internos suficientes para poder ler o que acontece na clínica, pois ela nos obriga a teorizar. É somente a teorização interna, a bagagem teórica interna, que nos permite apreender a clínica e ir mais adiante. Há um jogo contínuo entre teoria e clínica, mas não temos bagagem suficiente para adivinhar com muita antecedência. Nós nos surpreendemos com o número de trabalhos clínicos que nos aparecem, nos quais essa dimensão fica em segundo plano, e o desafio mais sério é participar da criação de uma clivagem, isto é, de uma zona que funcione suficientemente bem na psique e permita à pessoa viver sobre um fundo que permanece não mentalizado, bem frágil, em uma névoa que só pode dissipar-se em alguns momentos. Temos também uma leitura posterior de tratamentos em que participamos: durante anos, acreditamos estar realmente fazendo um bom trabalho e, après-coup, vemos que só trabalhamos na manutenção de um enclave de zonas que não pudemos atingir. Nesse caso e com essas noções, temos uma clínica do superego e uma verdadeira teorização do superego a ser feita. Em minha opinião, ela não está avançada o suficiente. Acredito que é preciso inverter e considerar que aquilo que o superego fará mais tarde, já deve existir ali. Do contrário, não haverá qualquer inscrição da psique, o que nos obriga a dizer: não é o ego que existe em primeiro lugar. Se as forças pulsionais existem, é preciso haver um imperativo de retomada e de mentalização delas, e é esse duo que permitirá ao ego existir. Não são as pulsões, o ego e o superego. Essa descoberta está inteiramente baseada num plano teórico a ser repensado de outra forma. E aí temos tudo a reformular.
RBP: Isso cabe a todos nós.
BC: É o futuro.
RBP: No relatório do último CPFL, falou-se muito das transferências laterais, da distribuição dos investimentos entre o espaço da sessão e a realidade, da compreensão da função econômica de proteção do espaço do tratamento, do potencial trabalho de instauração das ligações prévias e também dos riscos de esvaziamento do processo analítico.
EC: As transferências laterais apresentadas devem ser interpretadas para que não se corra o risco de esvaziar a sessão daquilo que talvez seja dito. É também uma maneira de impedir que elas se instalem. Com pacientes bastante desorganizados, muito excitados, existe a questão econômica. Além disso, experiências traumáticas que não foram de forma alguma ligadas pela linguagem (Freud, Além do princípio do prazer) só podem ser alcançadas através de uma realidade. No entanto, por serem experiências catastróficas, o paciente cria uma realidade catastrófica, muito incestuosa, autodestrutiva etc. Levanto a hipótese de que, nesse caso, a forma da experiência que se vai procurar, os detalhes com os quais se vai falar sobre ela, as palavras usadas para descrevê -la põem o paciente em contato com elementos mnêmicos, perceptivos, não ligados à linguagem até então, mas que, no momento em que ele narra o que fez na realidade, começam a ligar-se à linguagem. Jean-Luc Donnet me explicou isso dizendo tratar-se de forjar sinais narrativos, pois o paciente cria sinais. Se não deixamos a experiência se apresentar, apesar de seus aspectos destruidores, bloqueia-se essa elaboração. Isso não impede que, no decorrer dessa experiência, às vezes sejamos levados a dar ao paciente mensagens oriundas de nossa preocupação, para tentar limitar os aspectos destruidores. Em geral, com pacientes em estado-limite, se o tratamento consegue se instalar com segurança suficiente, a dimensão destruidora desaparece progressivamente. Vemos que o paciente começa a organizar experiências menos perigosas e, pouco a pouco, até mesmo experiências cuidadoras. Após alguns anos de tratamento com pacientes muito doentes, com sessões de mais agir do que falar, vejo que, com o passar do tempo, eles próprios criam uma espécie de hospital-dia, vão a um curso de ioga na segunda, visitam uma velha amiga na terça, o massagista na quarta, a vidente, a hipnose... Criam um universo de tratamento auto-organizado em função de suas necessidades.
BC: Tudo depende da definição de transferência. A transferência acontece no espaço da relação analítica. Não é possível haver transferência apenas sobre o analista. Acreditar que tudo deve se dirigir ao analista é esvaziar o processo. Por outro lado, tudo deve ser apresentado durante a sessão. Isso significa que as pessoas podem fazer o que quiserem em relação às transferências laterais, mas depois isso deverá ser falado em sessão. É uma regra absolutamente necessária para construir uma psique. Em 1923, Freud diz: "Para que alguma coisa possa tornar-se consciente, servir à mentalização, é preciso que ela se transponha sobre um elemento da realidade exterior". Ele não emprega a palavra transferência; usa a ideia de transposição. Isso é fundamental. O analista está no centro da realidade exterior, e é preciso que isso se transponha sobre os elementos da realidade exterior; ir ao vidente, ir ao padre, fazer caminhadas, o que quer que seja, mas é preciso que tudo seja trazido de volta à sessão. Se o movimento de centralizar na sessão fosse impedido, haveria um risco de esvaziar o processo analítico. Seria exatamente o contrário do que foi dito, porque é nesse espalhar pelo mundo e retornar à sessão que a psique pode realmente se construir. Nada existe no psiquismo enquanto os elementos inconscientes não são transpostos sobre uma realidade exterior e trazidos de volta à sessão. O paciente se constrói ao falar de suas realidades exteriores. Isso é essencial e é transferência. Se o analista interpreta tudo em função dele mesmo, esmaga a transferência. Por definição, o termo transferência faz pensar na existência de um elemento inconsciente, o qual, na melhor das hipóteses, tem o aspecto de quem já sabe jogar nas relações, no mundo, no passado, mas nem sempre. Depois, isso se espalha no mundo real e volta à sessão. Há nesse momento uma dinâmica transferencial autêntica e um enriquecimento do processo. O processo analítico é de fato esse. É interessante como questão, porque é preciso invertê-la. O processo analítico é totalmente enriquecido pela transferência lateral, sob a condição de obedecer à regra fundamental: a de tudo dizer na sessão. E dizer em termos do objeto de uma fala, em presença do analista. Há uma grande diferença entre falar ao analista e em presença de um outro que pensa analiticamente o que lhe é dito. Aí a transferência ocorre. Se o paciente fala só ao analista, esse será um caso muito particular, antitraumático. E há um grande número de pacientes que fazem isso; que têm a necessidade de utilizar a presença perceptível, concreta e objetivável do outro; que o descrevem como quem vê um quadro, uma pintura. Nesse momento, perde-se muito; perde-se a possibilidade de simbolizar o mundo, de fazer elos de representações, conca-tenações representativas. Mas ainda é uma transferência, embora uma transferência antitraumática, quando alguém se utiliza do que é imediatamente perceptível e se dirige a nós de maneira tão estrita. Os pacientes têm a necessidade de gritar conosco de um modo feroz, dirigem-se a nós acreditando que se dirigem somente a nós.
RBP: O diálogo entre vocês é muito interessante. Cada um é interessante, mas sobretudo o diálogo é excepcional.
Muito obrigado!
BC: Amamos muito nosso diálogo! [Risos.]