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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Notas sobre a psicanálise no Sul do Brasil

 

Notes on psychoanalysis in Southern Brazil

 

Notas sobre el psicoanálisis en el Sur de Brasil

 

Remarques concernant la psychanalyse dans le sud du Brésil

 

 

Sergio Lewkowicz

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Representante latino-americano para o board da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), 2017-2019

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor apresenta sua visão sobre a história da psicanálise no Rio Grande do Sul desde a década de 1970 até os dias de hoje, período de sua formação médica, psiquiátrica e psicanalítica. Descreve também um pequeno levantamento que realizou com colegas brasileiros, concluindo que talvez no Brasil possamos falar de uma psicanálise pós-colonial, "mestiça", que está buscando sua identidade em um processo paralelo ao do nosso país na contemporaneidade. Processo que implica a desidealização do estrangeiro e a recuperação do valor do nosso.

Palavras-chave: história da psicanálise, psicanálise brasileira, idealização do estrangeiro, psicanálise pós-colonial


ABSTRACT

The author presents his perception of the history of psychoanalysis in Rio Grande do Sul from the 1970s to the present date, the period in which he carried out his medical, psychiatric and psychoanalytic training. He also describes a brief survey he conducted with Brazilian colleagues, concluding that perhaps in Brazil we could speak of a post-colonial, "mestizo" psychoanalysis; one which is seeking its identity in the contemporary world, along with that of our country. It is a process that implies de-idealizing what is foreign and recovering a value of our own.

Keywords: history of psychoanalysis, Brazilian psychoanalysis, idealization of the foreigner, postcolonial psychoanalysis


RESUMEN

El autor presenta su visión sobre la historia del psicoanálisis en Rio Grande do Sul desde la década de 1970 hasta la actualidad, período de su formación médica, psiquiátrica y psicoanalítica. Describe un pequeño levantamiento que realizó con colegas brasileños, concluyendo que tal vez en Brasil, podamos hablar de un psicoanálisis poscolonial, "mestizo", que está buscando su identidad en un proceso paralelo al de nuestro país en la contemporaneidad. Proceso este que resulta en no idealizar lo extranjero y la recuperación del valor de lo nuestro.

Palabras clave: historia del psicoanálisis, psicoanálisis brasileño, idealización de lo extranjero, psicoanálisis poscolonial


RÉSUMÉ

L'auteur présente son avis concernant l'histoire de la psychanalyse au Rio Grande do Sul, des années 1970 à nos jours, soit la période correspondant à sa formation en médicine, psychiatrie et psychanalyse. Il décrit aussi un petit relèvement qu'il a réuni auprès des collègues brésiliens, et en conclut qu'au Brésil nous pouvons peut-être parler d'une psychanalyse postcoloniale, "métisse" qui cherche son identité dans un processus parallèle à celui de notre pays dans la contemporanéité. Un processus qui implique la non idéalisation de l'étranger et la récupération de la valeur de ce qui nous appartient.

Mots-clés: histoire de la psychanalyse, psychanalyse brésilienne, idéalisation de l'étranger, psychanalyse postcoloniale


 

 

Este texto é composto de duas partes. Inicialmente, descrevo de maneira pessoal minha aproximação com a psicanálise, procurando fazer um breve relato da história da psicanálise em Porto Alegre, no Sul do Brasil. Em seguida, apresento e discuto os dados de um pequeno levantamento que realizei com alguns psicanalistas, de diferentes regiões do país, sobre sua visão da psicanálise brasileira.

Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, é uma cidade com cerca de 1 milhão e meio de habitantes, localizada no extremo sul do Brasil, bem próximo da fronteira com o Uruguai e a Argentina. A cultura local é bastante influenciada por essa proximidade, tanto que os moradores do estado são chamados de gaúchos, como los gauchos da Argentina, do Uruguai e do Chile.

Embora com tradições regionais distintas das de outros estados do país, em termos de história da psicanálise nossa trajetória não difere da de outras regiões do Brasil ou mesmo da América Latina.

Durante minha formação médica, no final da década de 1970, praticamente todos os professores de psiquiatria eram analistas ou simpatizantes da psicanálise. Existia uma grande curiosidade em relação à psicanálise, e se organizavam muitos cursos para universitários abordando temas como o desenvolvimento infantil, a família e a comunidade sob o vértice psicanalítico. Várias atividades contavam com a participação de intelectuais e artistas de nossa comunidade, levando a uma grande integração entre psicanálise e cultura. Creio que isso foi favorecido por alguns dos psiquiatras e psicanalistas desse período serem também escritores de ficção conhecidos e reconhecidos em todo o Brasil, como Dyonélio Machado e Cyro Martins. O clima era muito favorável à psicanálise.

As relações entre a psicanálise, a universidade, a psiquiatria e a vida cultural de nossa cidade eram excelentes, beirando a idealização dos achados de Freud e de Melanie Klein. Um exemplo disso pode ser observado no fato de que a maioria dos cargos administrativos de chefia da saúde mental em Porto Alegre era exercida por psicanalistas.

Essa situação ficava evidente na formação psiquiátrica oferecida pelo Departamento de Psiquiatria da principal universidade de nosso estado, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que enfatizava a orientação psicodinâmica do treinamento. Para a compreensão dos pacientes, aprendíamos noções básicas de psicanálise, bem como da técnica da psicoterapia de orientação psicanalítica.

A autora psicanalítica mais valorizada em nosso meio na época (décadas de 1970 e 1980), tanto na residência em psiquiatria quanto no Instituto de Psicanálise, era Melanie Klein, importância que se revelava inclusive no nome do local onde éramos treinados: Centro Psiquiátrico Melanie Klein.

Houve uma mudança radical nessa situação nos últimos anos, assim como aconteceu em diferentes regiões do mundo, com a psicanálise perdendo seu papel de destaque. Durante os anos 1980 e 1990, houve uma proliferação de instituições de ensino de psicoterapia e a fundação de outra sociedade psicanalítica em Porto Alegre. Na área da saúde mental, ocorreu um gradual aumento na busca por tratamentos medicamentosos e cognitivistas, com consequente diminuição na procura por psicanálise. Na área da interface com a cultura, o espaço foi sendo ocupado pelos analistas de orientação lacaniana, que também ocuparam maciçamente as universidades.

Voltando à história da psicanálise no Sul do Brasil. O pioneiro na institucionalização da psicanálise em Porto Alegre foi Mário Martins, que se analisou em Buenos Aires, de onde retornou analista em 1947, com sua esposa Zaira Martins, que se tornou analista de crianças. Juntos, deram início ao movimento psicanalítico no Rio Grande do Sul.

Considerando o aspecto histórico genealógico, lembramos que a análise pessoal de Mário Martins na Argentina se deu com Ángel Garma, um analista espanhol que havia escapado da Guerra Civil Espanhola e que tinha realizado seu treinamento psicanalítico com Theodor Reik em Berlim. Podemos, assim, traçar a descendência de nossa Sociedade de Theodor Reik (Loewenberg & Thompson, 2011).

A Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) foi fundada por Mário Martins, Cyro Martins e José Lemmertz, que fizeram sua formação em Buenos Aires, e por Celestino Prunes, treinado no Rio de Janeiro. A SPPA foi reconhecida pela Associação Psicanalítica Internacional (ipa) em 1963. Foi a quarta sociedade psicanalítica a ser fundada no Brasil, depois de uma em São Paulo e de duas no Rio de Janeiro. Essas quatro Sociedades foram responsáveis pela organização e a divulgação da psicanálise em todo o território nacional, criando inclusive uma federação que conta com mais de 12 Sociedades.

No início do funcionamento da SPPA, havia muita procura por tratamento analítico, e alguns analistas tinham inclusive uma "lista de espera", em que se podia ficar até anos para conseguir um horário de análise. O mesmo ocorria com a busca por formação analítica: a cada ano, havia um grande número de candidatos. Ao longo das décadas, essa demanda foi diminuindo, mas nunca deixou de existir em nossa Sociedade. Há cerca de três anos, fomos surpreendidos com um novo aumento na busca por formação analítica e tivemos que abrir duas turmas. Esse fenômeno complexo se deve a vários fatores, mas me parece, em especial, ter a ver com um grande trabalho institucional, que aproximou a Sociedade da comunidade, tanto em termos de saúde mental como culturais.

Em 1985, ingressei na formação analítica na SPPA. O principal autor estudado foi Freud, a quem se dedicaram quatro anos de seminários. Em seguida, Melanie Klein, com dois anos de seminários, e autores do grupo kleiniano, como Hanna Segal e Herbert Rosenfeld. Esse último havia estado em nossa Sociedade e deixado uma impressão muito positiva. Tivemos ainda a oportunidade de estudar Winnicott, autores da psicologia do ego, autores franceses e inúmeros trabalhos sobre técnica. No final dos anos 1980 e na década de 1990, os autores mais influentes eram os pós-kleinianos. Havia um grande respeito e admiração por Betty Joseph, que visitou Porto Alegre duas vezes. Também estiveram aqui e foram muito estudados John Steiner, Ron Britton, Elizabeth Spillius e Ruth Riesenberg-Malcolm.

No final da década de 1990 e nos anos 2000, a atenção se voltou para Bion e, posteriormente, Donald Meltzer. Surgiram inúmeros grupos de estudo da obra bioniana, alguns dos quais perduram até hoje. Nessa época, acompanhamos as visitas de Donald Meltzer a Buenos Aires e a São Paulo, e numa ocasião ele esteve em Porto Alegre.

Atualmente, em nossa Sociedade, observamos o predomínio de dois grupos. De um lado, um grupo que se baseia no pensamento de Bion, Meltzer, Racker e Grinberg, nas contribuições do casal Baranger sobre campo analítico e, mais recentemente, nas de Antonino Ferro e 4 Thomas Ogden. Do outro lado, um grupo crescente que se utiliza das ideias de André Green, Jean Laplanche, René Roussillon, o casal Botella, Haydée Faimberg e outros autores franceses. Nota-se também, no momento, um maior interesse pelo estudo da obra de Winnicott.

Essa mudança na orientação teórica da Sociedade fez-se acompanhar, como era esperado, de mudanças técnicas importantes. Um estudo que procurou acompanhar as transformações na prática analítica da SPPA ao longo de quatro décadas (1960-1990) mostrou que, nesse período de 40 anos, progressivamente a interpretação da agressão diminuiu, levou-se mais em conta a realidade externa, interpretou-se menos a sexualidade e mais a autoestima, interpretou-se com maior equilíbrio a transferência negativa e a positiva, e as intervenções mais abertas, em forma de perguntas, aumentaram (Eizirik, Luz, Keidann, lankilevich & Dal Zot, 1999).

De uma intervenção mais centrada no ataque à relação terapêutica, passou-se para ações mais destinadas à construção de um vínculo e à compreensão de suas características. Minha impressão é de que se favorecem atualmente mais as intervenções relacionadas com problemas de deficit do que as relacionadas com conflitos nos pacientes, não só pela tendência teórica do momento, mas também pelo tipo de paciente que tem procurado análise em nosso meio.

Quanto ao pequeno levantamento feito com colegas do Nordeste, do Centro-Oeste e do Sul do Brasil, a quem quero agradecer pela gentileza, encontrei certo consenso de que não se pode ainda considerar que existem contribuições verdadeiramente originais e paradigmáticas na psicanálise brasileira, talvez um reflexo do colonialismo, pois muitos de nossos trabalhos são continuações e expansões do produzido por autores europeus e norte-americanos. Foram mencionadas, no entanto, as contribuições de Fabio Herrmann e Isaias Melsohn (ambos de São Paulo), que já conteriam ideias psicanalíticas originais.

Muitos colegas, porém, ressaltaram (e eu concordo com eles) que haveria uma originalidade na maneira como articulamos diferentes teorias de diferentes autores. Não sentimos a necessidade de filiação a determinada escola psicanalítica, o que nos permite um trânsito livre entre distintos pensamentos. De fato, observamos uma tendência pluralista em nossos centros psicanalíticos, em parte, como aconteceu na própria história do Brasil, com a miscigenação de raças de diversas regiões do mundo.

Assim, talvez possamos falar de uma psicanálise pós-colonial, mestiça, que busca sua identidade num processo paralelo ao que ocorre no Brasil na contemporaneidade, processo esse que implica a desidealização do estrangeiro e a recuperação do valor do nosso.

É uma marcha sofrida, que causa espanto e angústia, como Paulo Leminski tão bem formula no poema "Pareça e desapareça" (2013, p. 207), em que ele descreve como nos sentimos seguros quando nos parecemos com alguém, como achamos fácil quando nos sentimos semelhantes a um exemplo, embora de fato a vida não seja assim, nada se pareça com nada e as coisas não coincidam tanto. Com seu belo poema, Leminski nos mostra que, quando parecemos, desaparecemos.

PAREÇA E DESAPAREÇA

Parece que foi ontem.

Tudo parecia alguma coisa.

O dia parecia noite.

E o vinho parecia rosas.

Até parece mentira,

Tudo parecia alguma coisa.

O tempo parecia pouco,

E a gente se parecia muito.

A dor, sobretudo,

Parecia prazer.

Parecer era tudo

Que as coisas sabiam fazer.

O próximo, eu mesmo.

Tão fácil ser semelhante,

Quando eu tinha um espelho

Pra me servir de exemplo.

Mas vice-versa e vide a vida.

Nada se parece com nada.

A fita não coincide

Com a tragédia encenada.

Parece que foi ontem.

O resto, as próprias coisas contem.

 

Referências

Eizirik, C. L., Luz, A. B., Keidann, C. E., lankilevich, E. & Dal Zot, J. S. (1999). Algumas modificações na prática psicanalítica da SPPA: um estudo retrospectivo. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 6(2),205-219.         [ Links ]

Leminski, P. (2013). Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Loewenberg, P. & Thompson, N. L. (2011). 100 years of the ipa. London: Karnac.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sergio Lewkowicz
R. Luciana de Abreu, 267/ 406
90570-060 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 3222-5358
sergio.lewkowicz@gmail.com

Recebido em 2/7/2018
Aceito em 16/7/2018

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