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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

 

RESENHAS

 

Dante e Virgílio: o resgate na selva escura

 

 

Cintia Buschinelli

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autor: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Editora: Blucher, São Paulo, 2016, p. 167
Resenhado por: Cintia Buschinelli

 

 

Dante, Virgílio, a psicanálise e nós, leitores

Acredito que mesmo os leitores não iniciados em Dante Alighieri, como a autora desta resenha, já ouviram falar uma coisa aqui, outra ali sobre A divina comédia, poema épico que descreve uma viagem atemporal, vivida pela alma humana, por todos os lugares que a imaginação é capaz de construir.

A divina comédia foi escrita no século XIV. Cabe lembrar, portanto, que a alma humana aqui mencionada está inserida no contexto histórico-cultural desse período. Tanto o autor do livro resenhado como nós, leitores, não obstante situados de corpo e alma muitos séculos depois, temos o privilégio de arejar nosso pensamento com essa obra de arte, uma preciosidade tão particular.

Os guias da viagem descrita no poema são duas grandes figuras da história da civilização ocidental, as quais, de um modo ou de outro, têm morada em nosso imaginário. Mas, dessa vez, Dante e Virgílio são acompanhados pela voz de um psicanalista.

Há anos Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho percorre, com elegante erudição, as delicadas veredas do mundo psíquico.

A clínica psicanalítica é prima-irmã das vivências universais descritas n'A divina comédia, cuja expressividade se sustenta no esquadrinhar da própria condição humana. Não por acaso, ela atravessou os séculos com uma força narrativa que sensibiliza até hoje todos os que se dispõem a conhecê-la.

Ao iniciar a leitura deste livro, que veio para ficar, reconhecemos que ele completa o acervo de leitura dos que praticam psicanálise.

Proponho abordar Dante e Virgílio: o resgate na selva escura a partir da curiosidade, essa experiência humana que Freud, com sabedoria e sofisticação, chamou de instinto epistemofílico, presente inevitavelmente nas crianças, mas muitas vezes soterrado nos adultos, por inúmeros descaminhos emocionais.

O livro de Junqueira desperta nossa curiosidade ao unir dois universos até então aparentemente distintos, a saber: a travessia pelo mundo alegórico pós-morte, proposto pelos preceitos religiosos e culturais da época de Dante (inferno, purgatório e paraíso), e a vivência contemporânea de uma sessão de psicanálise.

Como assim? - surge em nós a pergunta de leitor carregada de curiosidade.

Vamos lá. Dante e Virgílio apresentam-se aos nossos olhos por meio de uma ligação estreita e vital, para que, ao fim e ao cabo, uma travessia sem precedentes se realize. Tudo o que se pode imaginar quanto a sentimentos, impulsos, receios, angústias, medos, satisfações, alegrias, dúvidas, reflexões, dores, ou seja, tudo o que se encontra no infindável universo das emoções humanas, está lá, no poema, alegoricamente representado.

É pela essencialidade da relação entre Dante e Virgílio, pela construção de certa parceria entre eles, que Junqueira introduz um olhar psicanalítico sobre o poema. Para nossa sorte como leitores, motivos não faltam ao autor para escolher como mote a parceria, essa parte vital da experiência psicanalítica. Esse é um tema caro a Junqueira e há um bom tempo ocupa suas leituras e reflexões.1

Vejamos o que o autor tem a dizer sobre a noção de parceria na introdução do livro:

impulso humano que leva dois seres a se associar vitalmente, visando não só a extração daquilo que possuem de melhor, mas também a utilização desse patrimônio na criação e produção de novas formas de convívio, gostos estéticos, enfrentamen-to de adversidades, na geração, enfim, de uma solução original para problemas da vida que transcenda a sempre modesta passagem por ela de duas individualidades. (p. 11)

Além dessa definição, os leitores encontrarão a resposta para uma pergunta que talvez lhes tenha passado pelo pensamento ao percorrer as primeiras páginas do livro: por que não parcerias amorosas? Cheguem à página 12 para conferir a resposta.

Outra pergunta: qual teria sido o ponto de partida do autor para que suas reflexões tomassem o caminho escolhido? Ele esclarece: o "fato histórico de a psicanálise ter nascido da intuição freudiana de colocar em contato duas mentes visando estabelecer uma parceria investigativa" (p. 13).

Notamos, sem esforço, que essa apresentação é repleta de questões que possivelmente acompanharam o autor enquanto surgia seu propósito de escrever o livro. Podemos supor que, à medida que escrevia, ele tomava, vez ou outra, o lugar de leitor de suas palavras. Assim, autor e leitor já se reuniam em parceria na própria construção do livro.

Uma vez atravessada a introdução, o leitor pode percorrer as páginas seguintes sem nuvens interrogativas, com um céu de brigadeiro limpo de dúvidas. Junqueira complementa:

o intuito de meu estudo foi, meramente, concentrar-me na "poesis colaborativa" entre dois poetas, donos de uma autoria histórica refletida na interação épica entre seus duplos ficcionais, os dois personagens que, ao longo da Comédia, superam os horrores do inferno e se embebedam na seiva esperançosa do purgatório para permitir ao peregrino seu acesso epifânico ao paraíso, instrumentado pela generosidade de Beatriz. (p. 14)

Assim, iniciamos a leitura tendo em mente o ponto de partida do escritor. Desse momento em diante, não podemos deixar de notar que o pensamento psicanalítico emergiu. Habituado a conviver cada dia em parceria com o paciente, é agora ao leitor que Junqueira propõe essa relação. Ao dirigir seu olhar à poesis colaborativa dos poetas, ele oferece a nós, leitores, sua poética pessoal.2

No contexto da poética do autor, é possível reconhecer, no decorrer da leitura, aquilo que Bion chamou de visão binocular,3 um modo particularmente psicanalítico de que Junqueira lança mão para compreender a aventura entre Dante e Virgílio. Uma das propostas da visão binocular é utilizar a capacidade de estabelecer correlações entre diferentes modos de observação e assim ampliar a compreensão dos fenômenos psíquicos.

Podemos reconhecer a visão binocular, por exemplo, quando o autor dirige, como que simultaneamente, um olho para o poema épico e outro para seu próprio acervo de conhecimento psicanalítico, um dentro e outro fora. São inúmeras as reflexões sobre o poema trazidas diretamente do patrimônio psicanalítico do autor, ou seja, um olhar focalizado dentro enquanto com o outro desliza pelo poema.

Para encerrar, deixo ao leitor um momento precioso e, por que não, paradigmático deste livro:

Sentindo-se impotente e desesperado, tropeçando e quase caindo, Dante começa a subir a colina desolada, tentando usar o pé mais baixo como apoio, de modo que o outro pudesse funcionar como um tentáculo apto a farejar o caminho certo. É nesse momento de busca por equilíbrio e orientação que ele percebe "à minha frente um vulto incerto, que por longo silêncio emudecido parecia irromper no grão-de-serto" (Inf. I,62-64, I. E.). Incontinenti, ele clama por socorro: "Tende piedade de mim ... seja quem fores, sombra ou homem certo" (Inf. I,65-66, T. A.). Este parece ser o instante fundador da parceria. (p. 40)

Boa leitura!

 

Referências

Junqueira Filho, L. C. U. (2008). A "disputa" (prise de Bec) entre Beckett e Bion: a "experimentação" do insight no resplendor da obscuridade. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(2), 103-117.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Cintia Buschinelli
Rua Alcides Pertiga, 82
05413-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 99931-5213
cintiab@uol.com.br

 

 

1 Cf. o artigo "A 'disputa' (prise de Bec) entre Beckett e Bion: a 'experimentação' do insight no resplendor da obscuridade" (Junqueira Filho, 2008). Nele, há mais um estudo minucioso sobre a experiência de parceria, foco de interesse do autor.
2 Poética pessoal é o modo singular de comunicar-se pela linguagem. Mais do que conhecer uma ou outra obra, perceber a poética do autor é conhecer a aventura de seu processo criador, seu repertório pessoal e cultural, suas escolhas, inquietudes e procedimentos.
3 A função da visão binocular está esmiuçada no artigo antes mencionado (Junqueira Filho, 2008).

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