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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo jul./set. 2019

 

OUTRAS PALAVRAS
TRABALHOS PREMIADOS DO XXVII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE

 

O objeto estético e a desnaturalização criativa do ser: reflexões sobre a inconfidência humana1

 

The aesthetic object and the creative denaturing of the being: reflections on the human secrets

 

El objeto estético y la desnaturalización creativa del ser: reflexiones sobre la inconfidencia humana

 

L'objet esthétique et la dénaturalisation créative de l'être: réflexions sur la déloyauté humaine

 

 

Ronis Magdaleno

Psicanalista. Membro efetivo do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe que a introdução da experiência do estranho na obra de Freud caracteriza uma virada paradigmática, com base no campo da estética, em direção a um resto de real do pai da horda primitiva e à concepção de existir uma tendência desarticuladora, a pulsão de morte. Propõe ainda que há uma função desnaturalizante intrínseca ao ser humano, decorrente da incorporação do pai da horda primitiva, que tem efeito de corte e que só pode ser capturada na transferência por meio de um estado psíquico particular de ruptura e abertura para o novo. É a partir desse resto negativado que o ser humano se funda, e em torno do qual a vida se constitui. Um extrato da clínica é apresentado para situar a experiência estética no campo transferencial.

Palavras-chave: estranho, pulsão de morte, objeto estético, pai


ABSTRACT

The author proposes that the introduction of the experience with the strange in Freud's work describes a paradigmatic turning-point, based on the aesthetics, towards part of the real from the primitive father and the conception of a non-integrating tendency existing, the death instinct. He also proposed that there is a denaturing function intrinsic to the human being, due to the incorporation of the primitive father, which brings rupture and can only be captured in transference through a particular psychic state of rupture and openness to the new. The human being establishes himself from this denying phase, and has his life around it. Part of the clinical experience is shown to position the aesthetic experience in the transference field.

Keywords: strange, death instinct, aesthetic object, father


RESUMEN

El autor propone que la introducción de la experiencia de lo extraño en la obra de Freud caracteriza un giro paradigmático, basado en el campo de la estética, en dirección a un resto de real del padre de la horda primitiva y a la concepción de existir una tendencia desarticuladora, la pulsión de muerte. Propone también que existe una función desnaturalizante intrínseca al ser humano, resultante de la incorporación del padre de la horda primitiva, que tiene efecto de corte y que solo puede ser capturada en la transferencia mediante un estado psíquico particular de ruptura y apertura para lo nuevo. Es a partir de este resto negativo que el ser humano se funda, y en torno al cual la vida se constituye. Un extracto de la clínica se presenta para situar la experiencia estética en el campo transferencial.

Palabras clave: extraño, pulsión de muerte, objeto estético, padre


RÉSUMÉ

L'auteur propose que l'introduction de l'expérience de l'étrange dans l'oeuvre de Freud caractérise un tournant paradigmatique, appuyé sur le champ de l'esthétique, vers un reste de réel du père de la horde primitive et vers la conception d'existence d'une tendance à désarticulation : la pulsion de morte. Il soutient encore qu'il y a une fonction dénaturante inhérente de l'être humain, qui découle de l'incorporation du père de la horde primitive, ce qui a un effet de coupure et que cette fonction ne peut être capturée que dans le transfert, au moyen d'un état psychique particulier de rupture et d'ouverture sur le nouveau. C'est sur ce reste négatif que l'être humain établit ses fondations, et c'est au tour de celui-là que la vie se constitue. Pour situer l'expérience esthétique dans le champ transférentiel, on présente un extrait de la clinique.

Mots-clés: étrange, pulsion de morte, objet esthétique, père


 

 

O que se segue é pura especulação, que muitas vezes remonta ao passado longínquo e que cada um, de acordo com sua posição subjetiva, poderá levar em consideração ou desprezar. De resto, trata-se de uma tentativa, movida por pura curiosidade, de explorar uma ideia até o final, apenas para saber onde ela pode nos levar.

SIGMUND FREUD

Em 11 de novembro de 1918 era assinado o Armistício de Compiègne entre os Aliados e a Alemanha, com o objetivo de encerrar os confrontos da Primeira Grande Guerra. Em 28 de junho de 1919, os países europeus assinavam o Tratado de Versalhes, que pôs um fim definitivo ao conflito. No outono de 1919, Freud - depois de, segundo ele, desenterrar um velho texto, que estava engavetado havia alguns anos - publica "Das Unheimliche".2 O tema desse trabalho, segundo Strachey, possivelmente já estava na mente de Freud desde 1913, pois aparece em nota de rodapé de Totem e tabu. Coincidência curiosa entre o tempo de elaboração de suas ideias sobre o efeito estético do Unheimliche, até sua publicação, e o desenrolar de um período em que a Europa se destruía e se automutilava de forma assustadora. Freud está imerso nesse processo de autodestruição, com dificuldades financeiras e os filhos no front, o que nos faz crer, mesmo sem precisar conhecer os interstícios do pensamento íntimo e dos afetos desse homem, em grandes tumultos no espírito que construiu todo um modo de compreender a alma humana a partir daquilo que chamou sexualidade. Sexualidade e recalque eram os pontos de ancoragem, a pedra angular, de um sistema de pensamento com uma surpreendente lógica interna e aplicabilidade clínica. A morte em grande escala introduz um elemento novo nesse sistema de pensamento.

Imagino que Freud seja um novo homem depois de 1919, quando desenterra seu velho texto e começa a trabalhar nele. É a inquietante estranheza que, a meu ver, põe em movimento um processo de pensamento que desembocará na proposição da pulsão de morte e num novo lugar para o pai na constituição da alma humana. Esse pai, longe de ser aquele terceiro do complexo de Édipo clássico, defendido com unhas e dentes por Freud até o final de sua obra, aproxima-se muito e cada vez mais daquele pai da horda primitiva, o Urvater, que ele intuiu, encontrou e perdeu a partir de 1913, provavelmente esquecido em alguma gaveta de sua alma, trabalhando em silêncio, enquanto o ser humano fazia todo tipo de barbárie à sua volta. Mas, como o próprio Freud propôs, o esquecimento humano, longe de ser um apagamento, é uma mudança de modo de existir, com forte potencial de renascimento, tanto na repetição compulsiva ( Wiederholungszwang) quanto no novo criado a partir da negativação imposta pelo desligamento compulsivo (Zwang), marca da pulsão de morte. Seja como for, em 1919 nasce das cinzas engavetadas "Das Unheimliche", o texto precursor, a meu ver, da virada freudiana em direção a um novo campo de compreensão psicanalítica, no qual a pulsão de morte passa a contracenar com as antigas forças de ligação e de perpetuação do indivíduo e da espécie. Sem dúvida, ainda que Freud busque encontrar nisso um realismo científico, fica muito difícil encobrir um pessimismo em relação ao ser humano e, por conseguinte, uma menor esperança no potencial terapêutico da psicanálise.

Foi justamente esse choque em seu sistema de pensamento que possibilitou uma expansão rumo à compreensão dos fenômenos de massa, da estrutura da psicose e da maldade humana, que no entanto trouxe em seu bojo uma diminuição das esperanças de reversão do mal enquanto potencial desarticulador, demoníaco. Os rochedos que impunham limites à análise, quase que eufemisticamente definidos por Freud, em 1937, como a inveja do pênis nas mulheres e o medo da homossexualidade nos homens, são meras derivações imaginárias de questões que remetem a um real intransponível e determinante de um mais além, não do princípio de prazer, mas do desejo, da união, da conservação, e que remete ao campo do gozo, ao campo daquilo que nunca será, mas que já foi puro narcisismo, ou seja, morte, estando o pai da horda primeva, Urvater, em sua origem.

 

A virada paradigmática de Freud

O período que vai de 1913 a 1920 pode ser compreendido como de intensa elaboração para Freud, que após a ruptura com Jung, e diante dos desafios introduzidos pela clínica da psicose e dos efeitos traumáticos de uma guerra europeia sem precedentes, não mais podia se contentar com o alcance de uma metapsicologia apoiada no conflito imposto pela pulsão sexual. O ano de 1913 é aquele em que Freud se ocupa de uma de suas obras maiores para pensar a origem do humano, Totem e tabu, mas é também, como vimos, o ano em que esboça e engaveta as primeiras ideias do texto que, penso, viria a representar uma virada paradigmática, "Das Unheimliche", trabalho que possibilita a intuição freudiana do conceito de pulsão de morte. Outro trabalho de Freud pouco explorado e que, imagino, já estava em sua mente havia muitos anos, embora só tenha vindo à luz em 1922, é "Uma neurose demoníaca do século XVII", no qual explora a demonologia e o lugar do pai, no sentido que este vai ter no novo campo aberto por sua intuição clínica. Esse é o percurso que pretendo seguir neste texto.

Em 1913, enquanto se debruça sobre a escrita de Totem e tabu, Freud se depara, talvez pela primeira vez, de forma brutal, com a figura do pai em seu aspecto mais cru, com aquele pai assassinado e devorado pelos filhos e que estará na origem do humano. Freud vislumbra esse objeto estético, mas propõe, partindo da ideia de horda primeva, de Darwin, o campo antropológico como via de aproximação dele, construindo por fim um mito da origem do ser falante, base da organização social, das restrições morais e da religião. Nesse momento, Freud toca no terreno do real, mas por via da proposição de uma realidade factual: "Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal" (1913/1974, p. 170). É esse pai morto, destruído e devorado - que não mais se dá a ver, mas se impõe para sempre no campo do sensível - que é internalizado, passando a existir como um mais além, como ponto de fuga da origem (Fédida, 1996). Esse percurso teórico, como veremos, desembocará num mais além do princípio de prazer. Contudo, esse pai é a Coisa, das Ding, aquém do terceiro elemento que dá consistência à triangulação edípica, e vai se perpetuar como silêncio de fundo, tendo efeito de corte mais do que efeito de causa - esta, prerrogativa do objeto do desejo; aquele, da desnaturalização do humano. Podemos ouvir aqui os primeiros balbucios do que viria a ser, em 1920, a dialética da tensão entre pulsão de vida e pulsão de morte? Certamente.

A aproximação a esse pai vai começar a ser traçada em 1919 em "Das Unheimliche", mas de modo secundário, obscurecido, quase esquecido no meio da teoria principal defendida por Freud nesse ensaio, segundo a qual o estranho é o retorno do recalcado, e por isso assustador e familiar. Como sempre, porém, a intuição de Freud não o abandona durante suas pesquisas. Lendo o texto com cuidado, vamos encontrando nele o elemento dissonante de sua tese principal, que se impõe e é encoberto continuamente: o pai como aquilo que é visto e que não é da esfera do visível, ou seja, experiência estética, e que entra em contradição com a tese do pai como elemento edípico. É possível dizer que ao pai edípico, que está no campo do simbólico, impõe-se o pai assassinado da horda primitiva, que está no campo do real, do "suprimido" (Freud, 1919/1976c, p. 309). Não podemos deixar de ressaltar aqui que essa mesma compreensão vai sustentar a conclusão a que chega Freud em 1924, de que o complexo de Édipo deve ser dissolvido (Untergang), e não apenas recalcado, o que seria um divisor de águas entre a normalidade e a patologia. Há um mais além do recalque, que abre para o campo do gozo e impõe um corte.

É interessante pensar que Freud, ao desenvolver seus argumentos e sua teoria sobre o Unheimliche, acaba por se deixar aprisionar, diríamos, pelo viés familiar de seu próprio desafio. Se o conceito que busca desenvolver nesse texto, por sua ambiguidade, pode significar "dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes" (Freud, 1919/1976c, p. 282), ou seja, algo que é familiar e agradável e, ao mesmo tempo, aquilo que está oculto e fora da vista, Freud termina por enfatizar o que para ele é mais familiar, mais heimlich, o campo do recalque e da sexualidade, deixando ofuscado o que penso ser o aspecto revolucionário do trabalho, o Zwang da pulsão de morte como potencial de corte em direção ao novo.

Tentemos nós expandir os campos que considero menos familiares para Freud, e que estão fortemente sugeridos num segundo plano.

É somente quando já está cego e exilado em Colono que Édipo se convence de que ser um homem é uma condição de desprendimento de tudo o que até então o havia definido como tal, "Então é isto ser um homem?", e lança a si a questão crucial "Melhor seria não haver nascido?", introduzindo a experiência de, pela cegueira, ver aquilo que existe e não pode ser visto. Em O homem da areia, de Hoffmann, acompanhamos o personagem Nataniel sempre nesse campo do ver não vendo. Nessa história, depreende-se que é na condição de ver não vendo que se tem a experiência estética do Unheimliche. Os olhos extirpados continuam vendo? Talvez ainda mais, assim como o gozo do pai primevo, que é ainda mais presente após o momento do assassinato. Trata-se de um gozo a partir do polo perceptivo do aparelho psíquico (Freud, 1900/1972), um gozo que inverte a ordem e a direção do sistema, não no sentido da alucinação, mas no da negativação constitutiva de um objeto estético, unheimlich.

Nesse segundo plano, não é a compulsão à repetição que é sentida como unheimlich, mas a repetição da compulsão (Zwang), com todo o seu potencial de trazer à tona o novo, o corte desalienante que permite que o humano se desnaturalize em direção ao indefinível, ao infinito, com a força de desarticulação e destruição, inclusive criativa, que tal movimento carrega.

É nesse sentido que o pai vai reaparecer em 1922, em "Uma neurose demoníaca do século XVII", sob a forma do Demônio. É o mesmo personagem que se apresenta a Fausto e é inicialmente menosprezado por este com a pergunta "O que tens a dar, pobre Diabo?" (Freud, 1923/1976f, p. 101), para logo a seguir capturá-lo com a promessa do gozo do Outro, prerrogativa exclusiva daquele pai primitivo concebido, como mito, por Freud. Já o pobre Christoph Haizmann, o anti-herói neurótico do século XVII, aceita o pacto com o Demônio visando libertar-se da melancolia que o acometeu desde a morte de seu estimado pai. É a sombra do pai perdido que recaiu sobre o eu de Haizmann, provocando o efeito alienante e aprisionante próprio da melancolia, que impossibilita sua vida de continuar. Mas o pacto com o Demônio carrega em si o efeito enlouquecedor em sua essência: para livrar Haizmann de sua alienação melancólica ao pai, compromete-se a substituir o pai perdido. Em sua inocência, Haizmann recorre a esse pai imaterial para desligar-se do objeto melancolizante. Esse pai, com o qual Haizmann faz o pacto que acredita libertador, não é mais aquele que julga e avalia e que vai constituir a parte ideal do supereu, a incorporação dos mais altos padrões da moral (Freud, 1923/1976d), mas o pai do desligamento primário. Aliena-se a ele com a ilusão inocente de livrar-se da perturbação da vida - que é ligação e de autoconservação -, não em direção à morte, mas em direção à ruptura revolucionária do novo, um Zwang que, atravessando o Wiederholungszwang, o livraria do assujeitamento alienante da melancolia.

 

Duas vertentes do Unheimliche: o surgimento do pai primevo sob o pai edípico

Até 1919, Freud trabalha com elementos de pensamento objetiváveis, empíricos, que de alguma forma poderiam ser recuperados ou construídos pela razão. Por que será que Freud, nesse momento, nos encaminha para outro campo da experiência vivencial, o campo da estética? Haveria, nesse momento, uma intuição dele a respeito dos limites de seu horizonte conceitual para a apreensão de um novo modelo de mente que se impunha?

De um aparelho psíquico constituído por representações e quantidades, Freud abre, com a proposta da experiência estética, um novo campo para pensar sua estrutura. É evidente que a hipótese da pulsão de morte já operava no horizonte da compreensão freudiana, hipótese para a qual nenhum esforço de objetivação seria suficiente, por se tratar de uma essência em negativo, impossível de sustentar uma ontologia própria. É para esse lugar da impossibilidade que entendo ser convocada a estética, como um modo peculiar de experienciar, que se apoia na experiência sensível não objetivável. É essa experiência sensível que vai se tornar o novo paradigma a fundamentar o campo criado a partir do conceito de pulsão de morte, e é nesse registro que vamos procurar situar o assassinato do pai da horda primitiva, esse resto que serve de ponto de fuga na origem. Antes de prosseguir, porém, retomemos Freud em sua busca tateante de compreensão do fenômeno do Unheimliche.

Como vimos antes, Freud adota duas vertentes para compreender o Unheimliche: uma delas é o retorno do recalcado, ainda aprisionado que estava ao referencial metapsicológico da primeira tópica; a outra, que deve ser apreendida, por assim dizer, nas entrelinhas, remete à experiência sensível de outro campo vivencial. É possível localizar precisamente esse ponto de torção quando Freud afirma que "uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos são revividos uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se" [itálico meu] (1919/1976c, p. 310). É nesse momento que podemos reconhecer o embrião do que serão, daí em diante, as tensões conflitivas sobre as quais se apoiarão os alicerces do pensamento freudiano: o neurótico versus o demoníaco, o recalcado versus o assassinado, o sexual versus o mortal, a ligação versus o desligamento.

Há uma linha divisória, convenhamos não muito clara, entre um Unheimliche experimentado como retorno de representações recalcadas e um Unheimliche propriamente estético, retorno de algo que nunca esteve, construção nova, imediata, negatividade potencial, fundamento do novo, da criatividade, e que, para Freud (1919/1976c, p. 308), é o "estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos", experienciado portanto como real, confirmando, desse modo sensível, experiencial, algo atemporal, transindividual, poderiamos mesmo dizer filogenético, e que vem novamente ao espírito; preconcepção que não tem o potencial de se transformar em concepção, mas apenas corte.

Vamos às entrelinhas. Em meio a um forte propósito de convencer o leitor de sua tese principal, acompanhamos a intrusão de ideias que remetem a outra linha de pensamento. É nesse sentido que vemos Freud, ao iniciar a descrição da narrativa escolhida para servir de base a seu argumento, pôr a tônica na situação emocionalmente significativa de um pai presente e de um homem da areia, que não se dá a ver e castra as crianças ao arrancar-lhes os olhos. É na conjunção desses dois elementos que a experiência unheimlich se desenvolve, mais do que no elemento selecionado por Freud, a figura da boneca/autômato Olímpia. A figura ambivalente do pai edípico está presente no "pai enquanto vivo", que ao mesmo tempo protege os olhos do filho e introduz na casa o homem da areia, Copélio, como imperativo do qual não se pode fugir. É depois do embate entre o "pai enquanto vivo" e o pai primevo, não castrado, que o primeiro morre e o segundo desaparece, mas sem deixar de existir, para sempre. Ao ser morto e devorado, o pai da horda não mais deixa de existir, diríamos, como objeto estético aos olhos, remanescentes, dos filhos, ou seja, a humanidade falante. Nataniel é condenado, para sempre, à presença unheimlich do pai primevo, que o observa e é sentido/visto por ele insistentemente como ameaça de corte.

Penso ser a figura e o lugar do Urvater de 1913 que ocupam a mente de Freud, que fica, contudo, aprisionado no modelo do pai edípico, responsável pela preservação e portador da Lei, que introduz o ser na civilização. É esse pai edípico, amado e odiado, vivido de modo ambivalente, que se sobressai em suas construções teóricas, que sucumbe enquanto objeto sexual e, dessexualizado ou sublimado, serve de base para a identificação e de matéria-prima para o supereu. Sobressai uma figura paterna que funciona apenas do lado da pulsão de vida, de Eros, com seu papel sexual e de conservação. Mas, no segundo plano, acompanhamos a crescente inquietação de Freud em direção à percepção da presença de algo de outra natureza, que o obriga a se afastar de suas bases metapsicológicas e ir em direção a outro campo para formular um novo estofo teórico, a fim de dar conta de uma existência outra e que determina uma experiência outra, o real. Trata-se de um pai real, que está fora dos registros do imaginário e do simbólico, fora da lógica significante, com uma natureza diferente da do pai edípico.

Freud afirma que "unheimlich é uma subespécie de heimlich" (1919/1976c, p. 283). Podemos construir a analogia de ser o pai primevo uma subespécie de pai edípico?

 

Por que uma experiência estética?

É pelo caminho do duplo que Freud procura se aproximar desse ser estético assustador, remanescente de um narcisismo primitivo, de uma completude fálica, que "domina a cabeça da criança e do homem primitivo" e que, "depois de haver sido uma garantia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte" (1919/1976c, p. 294). De que morte se trata aqui? Não estaríamos frente a frente, assim como Freud, com a potencialidade de desligamento que foi, em seguida, denominada pulsão de morte? Como a pulsão de morte resiste a qualquer representação, a todo esforço de nomeação por si própria, proponho que a metáfora do duplo seria um deslocamento, para o campo da estética, de um modo de experiência que estaria além da lógica do princípio de prazer. Até esse ponto, todo o edifício conceitual de Freud tem, como material constitutivo, elementos que podem ser apreendidos a partir de uma lógica consciente, com exceção talvez do umbigo do sonho, das Ding, que fica numa fronteira muito tênue com o corpo. É o corpo, essa herança que carregamos e que porta em si a morte, que nos remete e nos lembra, de tempos em tempos, da presença estranha e obstinada desse indizível, que só pode ser apreendido como tal no âmbito do sensível. O campo das psicossomatoses é o que mais nos aproxima, na clínica, desse fenômeno estético - um corpo que, de repente, se faz presente, algo "que deveria ter permanecido ... secreto e oculto" (Freud, 1919/1976c, p. 281) e que vem à luz, com seu efeito unheimlich.

Para desenvolver nosso raciocínio, nos apoiaremos na tese de que toda experiência estética acompanha-se de uma significação ontológica, sendo o objeto estético aquele que, por natureza, carrega em si, a partir da presença viva do outro, um potencial de sensibilidade que não pode ser apreendido intuitivamente, que não é especularizável, e que traz consigo uma verdade sensível, verdade essa que excede qualquer verdade factual, qualquer verdade possível no nível do discurso (Henriques, 2008). Trata-se, portanto, de um modo peculiar de experienciar uma verdade que não pode se dar por outra via.

Segundo Dufrenne (citado por Henriques, 2008), o modo primevo de manifestações artísticas - criar mitos e pintar imagens - exprimiria o primeiro vínculo do homem com a natureza. Ao remeter a essas experiências originais, a experiência estética reconduziria o pensamento e a consciência à origem, sendo por intermédio dela que se pode descobrir um homem ligado a um fundo originário, à natureza. Para esse autor, a experiência estética comporta um sentido ontológico; é um tipo específico de experiência que remete, nostalgicamente, à presença do ser natural, deixando entrever um acordo originário entre o homem e o mundo - nostalgia da natureza.

É, portanto, a experiência estética que possibilita o encontro do homem com o real de sua filogênese, no fundo da qual encontramos o pai morto, ser natural/instintual, limite res extensa/res cogitans, tendo ainda o mundo natural, a matéria inorgânica, como fundo de todos os fundos, matéria que a vida perturbou.

Contudo, é condição necessária à experiência estética uma experiência relacional entre um ser sensível e um objeto estético, sendo algo que se passa entre e se projeta além do objeto, num ponto de fuga que remete a um potencial de gozo interrompido e transformado em suspensão por sua cristalização no objeto estético. Esse objeto estético constitui-se num ser de corte e cristalização que não se dá a ver, mas que carrega em si a potência sensível de sua presença em ausência. Podemos localizar aqui o que Freud denomina herança filogenética na constituição do aparelho psíquico? Seria esse o ponto de encontro entre o homem, o ser falante, e o mundo silencioso que o envolve? Seria a experiência estética o primeiro acesso sensível do homem ao silêncio dos astros, à sua beleza ou ao seu assombro, anterior a qualquer sentido racional? Seria esse co-pertencimento unificador decorrente da experiência estética o primeiro broto da humanização/corte do homem?

Ao silêncio dos astros, da natureza, Freud contrapôs a figura mítica do pai primevo, sujeito de atos, e não de palavras, e que ao ser morto e devorado passa a existir como experiência sensível de co-pertencimento do homem e do mundo e, mais do que isso, a existir como pertencimento de fundo na linguagem, marca de corte entre o homem e a natureza. É esse atravessamento de silêncio que funda o ser falante a partir da mudez de uma realidade sem palavras. Em lugar do não, impõe-se o ato. Ao ser moral proposto como supereu, impõe-se, como subespécie, o ser do ato.

O mito freudiano transforma-se, tornando-se a negatividade do pai o resultado de uma ontologia da experiência estética diante do mundo como objeto empírico, que se apresenta, a partir de então, com todo o seu esplendor e assombro, ao primata ainda não atravessado pela linguagem, mas que eleva sua cabeça, desligando-a do solo. É esse espectador sensível que transforma o objeto empírico comum no objeto estético, retira o objeto estético do conjunto dos objetos comuns, imobiliza-o num real que se determina como presente contínuo e se estabelece como potencial de ruptura. Esse real de gozo, que foi prerrogativa da figura do pai, torna-se aquisição constitutiva do ser falante, determinante de uma tendência que Freud, corajosamente, designou como pulsão de morte.

 

O alcance clínico

De início, o desafio que se apresenta a nós, psicanalistas, é como localizar, na clínica, um fenômeno que está tão envolvido com a essência do ser; como destacar do material bruto das sessões a matéria evanescente daquilo que está aquém do representável, aquém do dizível; como evitar a tentação, sempre tão presente em nosso eu, de objetivação de um campo que não é objetivável; como falar d'isso.

Maria é uma mulher na casa dos 50 anos, vinda para o mundo numa condição pouco propícia a uma experiência heimlich. É a primeira filha de uma prole de quatro irmãos, nascidos em algum lugar do interior de Minas Gerais, que ela não sabe bem qual é, de um casal parental alcoolista e sem condições de criá-los, que resolve ir a Campinas para trabalhar na zona rural da cidade. Maria tem em torno de 6 anos nessa ocasião e vai com os irmãos mais novos. Desse episódio, só se lembra do trem chegando à estação. Os pais se empregam, mas após poucos meses resolvem ir embora, não se sabe para onde, deixando as crianças na propriedade em que trabalhavam. A dona do local afeiçoa-se à irmã mais nova de Maria, que estava muito doente e internada num hospital, e resolve adotar todas as crianças, sob protestos velados de seus filhos legítimos. A família, de origem oriental, abastada, acolhe as crianças com uma frieza educada, deixando sempre evidente as diferenças, apesar de agora serem todos legalmente irmãos.

Maria, nos anos de análise, nunca pôde deixar-se levar. Tem uma relação muito forte comigo, parece que precisa de mim, quase nunca falta, conta comigo para dividir as experiências que tem na vida, mas é isso. Faz poucos progressos no sentido de transformações efetivas, salvo o fato de estar mais segura comigo - já não acha que represento uma ameaça para ela, como o resto do mundo. No entanto, aliena-se a mim, depende de mim mais do que me usa para favorecer mudanças. Às vezes, deita-se no divã; em outros períodos, não consigo identificar por quê, volta a sentar-se à minha frente, mas o discurso é o mesmo. Não percebo mudanças no fato de estar sentada ou deitada, embora algo esteja se passando, silenciosamente, e impondo movimentos, variações, ainda que sejam corporais: sentada, deitada, sentada, deitada.

Um fato, que tem se repetido nos últimos meses, intriga-me: desde há alguns anos, Maria chega, escolhe uma das almofadas que estão sobre as poltronas de minha sala e se deita com ela, abraçando-a contra o peito ou contra a barriga. Faz as sessões abraçada à almofada. Observo, mas não interpreto. A interpretação seria uma violência àquela demonstração de afeto, carinho e alienação a mim. Emerge daí uma experiência estética: Maria abraçada a Jesus morto, que se repete em tantas obras de arte no mundo cristão. Deus-pai morto. Sou um espectador que constrói, por seu intermédio, um objeto estético: Jesus morto nos braços e abraços de Maria. Seria Maria com a mãe morta? Seria Maria morta nos braços da mãe ausente? Seria a morte nos braços de Maria? Seria a morte morta em seus braços? Toda essa profusão de experiências estéticas, heimlich/unheimlich, se acomoda sob a experiência empírica, imaginária, de uma criança abandonada que se agarra ao corpo de uma mãe que desaparece, o fort-da tão bem contextualizado por Freud. Elementos de apego, abandono, ódio, humilhação, exclusão vão sendo trabalhados a partir da presença do analista que está ali.

Um dia percebo que Maria começa a escolher uma das duas almofadas: pega uma, apalpa, abraça-a contra o ventre, sente algo e escolhe. Vai ao divã com a almofada escolhida. Em alguns dias, revela que está escolhendo a almofada fria, pois a incomoda o calor da almofada, que indica que alguém esteve sentado ali. Poder-se-ia compreender que Maria traz para a transferência um desejo de exclusividade, ódio por um outro que ocupou seu lugar, e um leque enorme de outras possibilidades que foram aparecendo em nossas conversas. Estamos no campo relacional, no campo do imaginário, interpretando relações de objeto. Ocorre, porém, que tivemos de mudar o horário de suas sessões, que passaram a ser no primeiro horário da tarde, após o intervalo do almoço. Maria chega, pega uma e outra almofada, apalpa, abraça, sente e... escolhe a que está fria, dizendo que a outra está quente. Quem esteve ali? Ninguém. Poderiamos pensar numa alucinação tátil? Certamente, mas vamos percebendo que aquilo que se apresenta contempla uma experiência estética que remete a vida e morte, quente e frio, presença e ausência, característica que fundamenta, para Freud, a experiência do Unheimliche. Estaria Maria, ao escolher a almofada fria, introduzindo o elemento estético, diabólico, morto/vivo, que permite a desalienação? Puxa para si a lâmina fria do desligamento a partir do momento em que minha parte quente está devidamente acomodada dentro dela. Lembremos que, objetivamente, as duas almofadas estão frias. O calor está, agora, dentro dela, e a possibilidade do corte se apresenta - corte da sessão.

Quais recursos tem um analista para adentrar o campo do sensível? Sua razão e seu eu são insuficientes, salvo como instrumentos preliminares, com o potencial agregador de formar um estofo afetivo/representativo que possibilite a experiência estética. O acesso se dá por meio de uma das primeiras recomendações técnicas de Freud, a comunicação de inconsciente para inconsciente, e, no final de sua obra, por meio das construções. Nesse momento posterior, Freud, ao vislumbrar o campo do desligamento - o campo do que viria a ser, com Lacan, o registro do real -, propôs o recurso das construções como ferramenta técnica. Ao admitir o objeto psicanalítico, ou a verdade psicanalítica, como algo não objetivável e não apreensível, desenvolve esse recurso técnico, que visaria não a construção pelo analista de uma realidade compreensível, mas a oferta ao analisando de elementos representativo-afetivos novos, criações da dupla, que teriam por função estimular novas associações a partir de um centro sensível e não apreensível. Não seriam as construções a palavra final de Freud no que tange ao lugar da experiência estética no processo analítico?

Talvez seja Bion, quando propõe a fé como "estado mental científico" (1970/1973, p. 36), quem mais se aproxime de uma via de acesso às experiências de co-pertencimento unificador que são as experiências estéticas, as quais propiciam transformações em direção à verdade, ser estético por natureza. É fundamento da estética que é o expectador quem faz coincidir o aparecer do objeto estético com seu ser, ou seja, o ser do objeto estético aparece graças ao espectador (Henriques, 2008). Entretanto, trata-se de um aparecer sensível, o qual depende de um abrir-se ao sensível que, pelo contato com a experiência empírica, se manifesta. Essa apoteose do sensível só é possível, no campo analítico, a partir da fé enquanto potencial de abertura, no sentido de desligamento, de corte em direção ao desconhecido, ao novo. Em atitude de fé, o analista abandona um universo heimlich "sem que nenhum outro se lhe tenha tornado acessível" e se depara com "nada, apenas o vazio" (Silva, 2018). De acordo com Silva (2018), foi Bion "que introduziu como o estado de mente que abre a possibilidade de captação de manifestações provindas da realidade última daquilo que se apresenta", e permite nomear "a experiência subjetiva de contato sentido como verdadeiro com algo que permanece como essência e não se objetiva". Portanto, o ato de fé é o ato de coragem que permite desvestir-se do Heimliche em direção ao Unheimliche. É esse movimento, em direção a um encontro sempre faltoso, que possibilita a experiência da criação. É o encontro com o diabólico, tanto pelo analista como pelo analisando, que pode remeter, pela ruptura, ao revolucionário ou, para seguir os passos de Bion (1965/2004), a transformações em direção a O.

 

Um mais além da metapsicologia clássica

Como alertado na epígrafe deste trabalho, seguimos um percurso especulativo, movido por pura curiosidade clínica, apenas para saber onde ela pode nos levar. Chegamos a uma função desnaturalizante do humano e que se situa mais além da metapsicologia clássica. Por que Freud vai ao campo da estética para desenvolver uma intuição clínica, inicialmente metapsicológica? Acompanhamo-lo afastar-se do campo metapsicológico, seu campo heimlich tão decantado nos ensaios metapsicológicos escritos entre 1915 e 1917, e ir em direção ao campo unheimlich da estética, do negativo, o que culminará com o ensaio de 1925 "A negativa", terreno fértil do qual nascerá o que Lacan designou como registro do real, lugar do objeto psicanalítico, objeto que se afasta da experiência empírica e que exige, para ser concebido, um esforço de abstração em direção a um ser que existe apenas a partir de uma necessidade lógica interna. Esse objeto, que admite um registro de sensibilidade, ainda que negativo, é o objeto psicanalítico proposto por Freud (1925/1976e), quando o define como aquilo que não sou eu, constituído pela expulsão do que não pode ser admitido como próprio - a negativação como essência do ser -, e que, a partir daí, só pode ser experienciado por meio de uma determinação ontológica mental do analista, em transferência. Portanto, é um objeto que se constitui pela desobjetalização, paradoxo do campo psicanalítico, e necessariamente apreensível apenas como experiência estética em estado de fé.

Via de regra, o analista trabalha com outras camadas da vida psíquica, mais afeitas ao conhecimento por se situarem nos registros do simbólico e do imaginário, preocupando-se pouco com as experiências inibidas, surdas, poderíamos dizer atravessadas pela pulsão de morte, e que portanto, pela negativação, perdem sua consistência empírica, representável e especularizável. Esse campo, o mito busca suprir, e o simbólico recobre, e somente um estado de espírito disponível pode apreender, não sem uma grande dose de assombro, unheimlich.

É nesse sentido que nos apropriaremos da estética não apenas como teoria da beleza, mas como teoria das qualidades do sentir (Freud, 1919/1976c), a qual, pelo efeito que produz entre o homem e o objeto, dá acesso à essência do ser (não apreensível por outra via), à verdade psicanalítica. Apoiados nessa construção freudiana, proporemos a existência, exclusivamente humana, de um ser de corte, desenvolvido a partir da intuição freudiana do Urvater, responsável pela desnaturalização do homem, sua inconfidência fundante.

Como esperamos ter deixado claro, entendemos o Unheimliche como experiência de outra natureza que o retorno do recalcado e a alucinação, mas que está na base de negativação que os sustenta. Trata-se de uma experiência que remete a um resto localizado atrás da experiência empírica, assim como o olhar gozoso do pintor está situado atrás da tela que executa, e por isso carrega a experiência de um mais-gozar que a faz objeto estético (Lacan, 2008). O olhar do psicanalista desvela, como construção, um objeto de mais-gozar, o objeto α, resto no real de um Outro não castrado, aquele como causa, este como corte. É aqui, como corte, que podemos situar o pai primevo, Urvater, com seu gozo não interditado, que está no ponto de fuga da experiência vivencial humana, no ponto de fuga do desejo, em torno do qual a sexualidade se enlaça, se trança, formando o erotismo e a raison d'être da vida individual e da espécie.

Enquanto as pulsões de vida são conservadoras, a pulsão de morte, contrariamente ao que diz Freud (1920/1976a), como corte, carrega um potencial de desligamento renovador, revolucionário e vanguardista. Ao fazer frente às demandas de manter a vida como está ou como é, ao fazer frente ao narcisismo, essencialmente especular, estagnante e alienante, o atravessamento por essa tendência ao desligamento daquilo que está dado - a vida e sua perpetuação -gera um novo que pode encontrar espaço no "de novo" da redundância. Sendo a pulsão de morte o que atravessa a matéria perturbada pela vida, não seria ela necessária para as rupturas unheimlich na tendência conservadora da pulsão de vida? Não é, afinal, a sublimação um corte, um processo de dessexualização do objeto, a condição necessária para deslocar o ser, pelo menos em parte, do campo movediço da sexualidade infantil em direção a um campo novo e potencialmente criativo? Não seria esse potencial de desligamento, vivido com e como dor - e não a dor em si -, que arrancaria, pouco a pouco, a criança de um narcisismo primário alienante e mortal? Não seria a diluição da pulsão de morte que abriria caminho para todos os primitivismos narcisificantes, que se recrudescem nos grupos humanos, impondo os funcionamentos a partir de pressupostos básicos? Não seria, enfim, efeito dessa tendência o que afastou o homem definitivamente da natureza conservadora para nunca mais voltar, a não ser quando a terceira mulher, Unheimliche derradeiro, a morte, vier colhê-lo de seu sonho?

 

Referências

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Correspondência:
Ronis Magdaleno
Rua Padre Almeida, 515/14
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Tel.: 19 3254-2103
ronism@uol.com.br

Recebido em 24/6/2019
Aceito em 12/7/2019

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio Durval Marcondes, conferido durante o XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Belo Horizonte (MG), de 19 a 22 de junho de 2019.
2 Pela dificuldade de tradução da palavra alemã Unheimliche, no decorrer deste artigo, e para o bem da compreensão das ideias apresentadas, por vezes usarei a palavra e seus derivados em alemão, por vezes a tradução proposta para o português pela editora Imago (estranho), por vezes a tradução livre da proposta das edições francesas (inquietante estranheza).

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