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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

EDITORIAL

 

Pandemia

 

 

Marina Massi

Editora / marinamassieditora@rbp.org.br

 

 

No início do ano, quando escolhemos a cor preta para a lombada da revista, não imaginávamos que a cor adotada pudesse vir a significar e simbolizar um laço amarrado em nossos braços pelo luto de tantos mortos em nosso país e no mundo. Estamos em luto pelas vítimas e pelo sofrimento de tantas famílias atingidas pelo coronavirus.

No calendário editorial de 2020, o primeiro número homenageou os 100 anos do texto Além do princípio do prazer, no qual Freud formulou o conceito de pulsão de morte, um momento de profunda mudança no arcabouço da teoria psicanalítica. O próximo tema programado era sobre o Édipo. No entanto, decidimos retirá-lo do calendário e abrir espaço para a pandemia do coronavírus. A rápida mudança de tema surgiu do entendimento de que a RBP , como um fórum privilegiado para psicanalistas, deveria ocupar um espaço de "praça pública" científica, a fim de acolher as palavras, os testemunhos, as experiências clínicas e as elaborações teóricas frente à vivência traumática da pandemia que assola o nosso planeta.

O tema escolhido motivou o recebimento de 50 trabalhos, enviados a partir da carta-convite da RBP , o que revelou a sensível demanda de trocarmos ideias e experiências num momento em que a área da saúde mental foi reconhecida por sua importância e chamada a colaborar com seus conhecimentos, como há muito tempo não se via. Num artigo publicado na Folha de S. Paulo, Drauzio Varella reconhece que o "impacto na saúde mental será a sequela mais devastadora da pandemia" (2020). Nós, psicanalistas, integrantes da área da saúde mental, nos sentimos convocados a participar do combate aos sofrimentos causados pela covid-19, utilizando o método psicanalítico do lugar da escuta. Peço ao leitor atenção especial para o relato das Redes de Solidariedade estimuladas pela Febrapsi, criadas e desenvolvidas pelas federadas. Nossas instituições responderam à solicitação e trabalharam ativamente no pico da pandemia.

Em busca de compreender o contexto dos acontecimentos atuais, optamos por abrir este número com o instigante artigo de Michael Rustin, reconhecido sociólogo e psicanalista inglês, que entusiasticamente atendeu ao nosso pedido1 de escrever sobre o tema. O autor examina os significados da pandemia de coronavirus no mundo, numa perspectiva sociopolítica e psicanalítica, descortinando a crise psicossocial deflagrada pelo vírus da covid-19, que numa velocidade extraordinária de transmissão disseminou a doença com a mesma rapidez do fluxo de capitais, de informações e até de imigrações, fluxo observável a partir dos estudos sobre a globalização. Seu texto nos introduz ao âmago dos acontecimentos atuais e, numa perspectiva psicanalítica, enfoca as ansiedades conscientes e inconscientes advindas da situação que vivemos.

Muitos depoimentos, lives e ensaios foram produzidos durante o período da quarentena, quando estávamos montando o projeto, avaliando os artigos e compondo os números Pandemia. Gostaria, porém, de trazer um recorte do interessante e original ensaio "O trauma branco e seus destinos", de Marion Minerbo, publicado em abril de 2020 no Observatório Psicanalítica.2 Nesse texto, a autora caracteriza a pandemia como

um tipo de violência que não conhecíamos, e por isso mesmo é difícil de reconhecê-la como tal. Poderíamos denominá-la violência branca, por analogia a angústia branca, termo com que [André] Green descreve o sofrimento psíquico mudo, invisível e silencioso das patologias do vazio. A violência branca - e o correlato trauma branco - é uma violência sem sangue, silenciosa, invisível, mas letal.

Esse ensaio revela uma face intelectualmente sensível e criativa, que transbordou na vivência da pandemia. Ora, por que abordar, no editorial, um ensaio não publicado pela RBP , em vez de comentar os artigos escolhidos para este número? Porque desejo que vocês, leitores, tenham o prazer de identificar nos artigos da RBP o mesmo sentimento que me arrebatou no ensaio publicado pelo OP.

Outro ponto a ser ressaltado é que a seção "História da psicanálise" presta homenagem aos 50 anos do início dos trabalhos da pioneira Virgínia Bicudo para a fundação de uma sociedade de psicanálise em Brasília (sPBsb). Neste ano, Virgínia Bicudo vem sendo relembrada e homenageada por ter sido a primeira mulher não médica e negra a tornar-se psicanalista no Brasil. O ano de 2020 marca, para além da pandemia, o despertar fundamental da luta contra o racismo, com a presença de movimentos antirracistas como Black Lives Matter e o apoio de milhares de pessoas ao redor do mundo. A RBP , como revista científica da área das ciências humanas, não poderia deixar de se manifestar a favor de movimentos civilizatórios.

Para finalizar, já que a importância dos acontecimentos de 2020 é impossível de ser contemplada num editorial, desejo destacar que os números Pandemia na RBP têm o propósito de registrar na memória de nossas instituições psicanalíticas o impacto violento da pandemia, do traumático coletivo, grupal, familiar e individual, que também atingiu a psicanálise, com uma ingerência radical na dupla analista-analisando - a passagem repentina do atendimento presencial para o atendimento psicanalítico à distância, remoto, virtual ou online.

O próximo número se dedicará a trabalhar mais especificamente uma das principais indagações ao campo psicanalítico: quais as possibilidades e consequências deste novo enquadre?

Aos leitores, peço uma leitura generosa aos artigos dos colegas que se arriscaram a escrever sobre um acontecimento que ainda nos acomete e fragiliza.

 

Referências

Minerbo, M. (2020, 23 de abril). O trauma branco e seus destinos. Observatório Psicanalítico. https://bit.ly/2V9l4qX        [ Links ]

Varella, D. (2020, 12 de setembro). Impacto na saúde mental será sequela mais devastadora da pandemia. Folha de S. Paulo. https://bit.ly/3fIunXR        [ Links ]

 

 

1 Agradeço à colega Elizabeth L. da Rocha Barros pela mediação com o autor em favor da RBP.
2 O Observatório Psicanalítica, iniciativa da Diretoria de Comunidade e Cultura da Febrapsi, apresenta ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

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