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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020
DIÁLOGO
Entrevista1
Harvey J. SchwartzI; Tradução Dante Rovere
IAnalista didata da Associação Psicanalítica de Nova York (PANY) e do Centro Psicanalítico da Filadélfia (PCOP). Atual chair do Comitê de Saúde da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Produtor executivo e apresentador do programa IPA Off the Couch
Entrevistando o entrevistador na pandemia
Desde abril de 2019, a IPA Off the Couch, o programa de entrevistas magistralmente conduzido pelo Dr. Harvey Schwartz, tem assumido o compromisso de desvelar a potência do método psicanalítico para além do divã. A ampla utilização dessa preciosa ferramenta em outros territórios, como o da saúde, o dos direitos humanos ou o da cultura e educação, ilustra de que maneira o pensamento psicanalítico transcende naturalmente as fronteiras da sala de análise, levando seus benefícios à sociedade. O formato virtual dos podcasts - com duração média de 30 minutos - possibilita que os prestigiosos psicanalistas entrevistados estejam em qualquer um dos quatro cantos do mundo. Nada mais plural e democrático. Assim, desde o primeiro episódio, com a Dr.ª Virginia Ungar, presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), gravado de Buenos Aires, até a atualidade, transcorreram-se 62 episódios, incluindo 22 no contexto da pandemia de covid-19.
Em 17 de março de 2020, a IPA Off the Couch lançou seu 40.º podcast, registrando o início do isolamento social e a migração do trabalho analítico para o modo virtual, condições impostas pela pandemia. No episódio seguinte, em 24 de março, a delicada introdução, que tem como música de fundo o Quarteto de cordas n.º 5 (Opus 18, n.º 5) de Beethoven, mudou. A música, o título do programa, a voz característica de Harvey e sua curadoria nas entrevistas foram mantidos, enquanto elementos de continuidade, mas o locutor anunciou que o foco das entrevistas passaria a ser discutir com os entrevistados como as diversas comunidades estavam se organizando para enfrentar a pandemia; como os analistas e seus pacientes estavam lidando com a situação e, mais especificamente, as particularidades suscitadas na clínica psicanalítica. Essa nova série de podcasts, disponíveis no site da IPA, tem contribuído para compartilhar experiências, renovando nosso senso de comunidade e nossa esperança em torno dos destinos da psicanálise.
RBP: Poderia nos contar sobre a IPA Off the Couch?
HS: A IPA Off the Couch é uma ramificação da IPA na Comunidade, idealizada por Virginia Ungar em sua presidência. Ela criou seis, ou melhor, agora sete comitês centrados na comunidade para evidenciar a poderosa interface da psicanálise com diversos aspectos da vida comunitária. Essencialmente, esses comitês mapearam múltiplas inserções em que os analistas utilizam suas habilidades analíticas fora do divã. Cada um dos comitês trabalhou com metodologias diferentes. A IPA na Saúde criou uma página no Facebook com esse nome [IPA in Health] que foi mundialmente bem acolhida. A partir dessa experiência, propus a Virginia e ao conselho que começássemos um podcast destacando o trabalho que os analistas realizam fora do divã ao redor do mundo. O plano era identificar esses clínicos e apresentá-los tanto a nós mesmos quanto à comunidade de maneira geral. Um propósito desse projeto era mostrar aos candidatos e potenciais candidatos que a formação psicanalítica nos capacita para realizar outras funções além de conduzir análises tradicionais no divã. Ao fazer isso, ouvi de muitos jovens profissionais que eles ficaram profundamente tocados pelo trabalho que esses talentosos colegas estavam realizando. Demonstramos assim que o desenvolvimento da capacidade analítica nos proporciona inúmeras oportunidades para fazer a diferença na vida das pessoas.
RBP: Compartilharia conosco o que tem aprendido de mais interessante ou curioso como entrevistador?
HS: A produção dos podcasts segue um roteiro. Inicialmente me encontro com cada potencial entrevistado via Skype, onde discutimos o que gostaríamos de abordar no podcast e começamos a entrar em sintonia um com o outro. Ponderamos sobre assuntos, principalmente clínicos e pessoais, e sua pertinência (ou não) para o espaço da entrevista.
Compartilho esse background a fim de conseguir responder à sua pergunta sobre o que achei interessante ou curioso nas minhas entrevistas - o que eu gostaria de chamar de surpreendente.
Fiquei comovido com o profundo engajamento que encontrei nos trabalhos de nossos colegas fora do divã. Isso não me surpreendeu, por ser a demonstração de algo que eu já sabia. Mas a profundidade e as nuances dos trabalhos realmente me comoveram.
O que me surpreendeu foi a facilidade com a qual me vi respondendo à pergunta que às vezes era direcionada de volta a mim: "O que o sustenta nestes tempos?". Sem hesitar, respondo que tem sido o privilégio de conhecer tantos colegas incríveis. Podemos ter certeza de que nós, psicanalistas, somos um grupo singular pela nossa dedicação ao longo do tempo, pela tessitura de nossos compromissos acadêmicos e pela nossa imersão na consciência própria e alheia. O tempo que passei conversando de forma honesta com nossos colegas ao redor do mundo me propiciou uma experiência próxima do encontro com o que considero ser o melhor do ser humano.
Achei interessante constatar como, para tantos que trabalham em cenários fora do divã, o ato de escutar e, para seus interlocutores, o fato de serem ouvidos é tão melhorativo de seus sofrimentos. Todo o tempo, os analistas que trabalham em settings não tradicionais relatam a importância fundamental de oferecer a escuta. A princípio me perguntei se isso seria essencialmente analítico de alguma forma. Afinal de contas, no setting tradicional, além da função vital de escutar, damos atenção a diferentes níveis de significado, sem mencionar nossas intervenções, que procuram expandir a consciência sobre a vida latente do analisando. Contudo, descobri que o tipo de escuta que nossos colegas oferecem fora do divã é analítica e deriva da experiência de ter passado pelo divã tanto como analisando quanto como analista. É uma escuta sem intrusões pessoais. É uma escuta que permite a quem é escutado se sentir ouvido. Não é a escuta de um amigo. Não é uma escuta de counseling, apesar do valor desta. É uma escuta psicanalítica, que atende à experiência do outro. Eu não esperava ouvir que essa fosse uma contribuição tão universal e vital.
Dito isso, outra coisa me surpreendeu. Algo que eu nunca teria antecipado. Investigando a influência do background dos nossos colegas entrevistados em seus trabalhos, muitos relataram alguma relação familiar com o Holocausto. Os traumas familiares apresentados foram tão variados quanto o próprio evento. Às vezes, a hesitação de reconhecer a influência desses eventos em suas carreiras me indicou que a consciência desse papel era apenas parcial. Outras vezes, ela era bastante clara. Na maioria dos casos, preferiram não compartilhar essas histórias pessoais no podcast público.
Essa descoberta evocou em mim uma fantasia sobre aqueles tempos terríveis. Passei a ver aquele epicentro de sadismo como um terreno fértil que semeou o mundo com cuidadores - psicanalistas.
RBP: Desde março de 2020, com a pandemia de covid-19, houve um ponto de inflexão, e você passou a entrevistar psicanalistas do mundo todo confinados em suas residências, trabalhando com seus pacientes de forma remota. Esses podcasts são testemunhos inusuais em tempo real do momento histórico que estamos vivendo. Gostaríamos de saber quais são suas impressões sobre essa experiência levando em conta as mesmas perguntas que você realizou a seus entrevistados. Por exemplo: o que poderia nos dizer sobre o impacto da pandemia de covid-19 na clínica psicanalítica? Como a psicanálise está contribuindo para a elaboração desta crise do divã e fora dele?
HS: Segundo minha própria experiência e os relatos dos nossos colegas, a covid-19 impactou o trabalho clínico de duas formas. Inicialmente, com o choque do perigo súbito, a incerteza assustadora e a mudança imediata para o atendimento online, as associações dos pacientes foram inundadas por inquietações manifestas de preocupação. Mas é claro também que essas preocupações estavam coloridas pelas características de personalidade subjacentes que cada analisando trouxe à tona. Pacientes criados em contextos emocionalmente precários tenderam a preocupações tingidas por calamidade e paranoia, enquanto aqueles advindos de vínculos seguros se preocuparam a partir dos recursos da segurança interna.
Passadas várias semanas, as associações voltaram mais ou menos ao normal - os conflitos e paradigmas de transferência anteriores ao vírus ressurgiram. Afinal, a não ser que a gente preencha o espaço analítico com nossas próprias intrusões, o que mais poderia transparecer entre um analisando e suas imagos projetadas além de seus paradigmas internos?
Acredito que a conversa simétrica entre analista e analisando baseada em ambos sermos vulneráveis a doenças e à morte reflete uma compreensível, porém potencialmente problemática, abdicação da responsabilidade analítica. Sim, obviamente todos estamos em perigo. Não obstante, o perigo é maior ainda se hesitarmos em reconhecer o que nossos pacientes imaginam sobre esse perigo. Este evento pandêmico nos oferece uma oportunidade única de encontro com nossos analisandos em um momento primitivo e inigualável no tempo. O que nós podemos aprender com eles sobre seus medos profundos e seus métodos de adaptação a esses medos pode ser uma dádiva especial que apenas a análise é capaz de providenciar. Essa é a beleza da assimetria analítica. Ela oferece um marco que libera os analisandos da responsabilidade de serem eles os responsáveis, e com essa liberdade eles podem encontrar seu autêntico self. O vírus não alterou esse potencial.
RBP: Como os psicanalistas estão lidando com a pandemia? Quais são os recursos que seus entrevistados consideraram valiosos para lidar com esta situação?
HS: O que nos sustenta neste período é o que nos sustenta em nossa vida, só que de maneira mais acentuada. Nossa libido. O amor pela nossa família, pelos nossos amigos, pelos nossos colegas. O prazer advindo da nossa responsabilidade para com nossos pacientes. Breves momentos de beleza. Nossa humildade diante das forças abstratas da natureza. O reconhecimento de nossa agressão e nossa fúria contra aqueles que falharam em suas responsabilidades. Nossa capacidade de realizar o luto pelas perdas que nos rodeiam. Este é nosso presente. Como sempre, só que de maneira mais acentuada.
RBP: A análise remota agora é parte de nossa realidade. O que podemos aprender com as novas experiências em settings incomuns em termos de possíveis contribuições à teoria e técnica psicanalítica?
HS: O tratamento remoto é vital. Como já foi dito várias vezes, ele oferece ajuda a muitos que, de outra maneira, estariam fora de alcance. E, neste momento, todos estamos.
Ao mesmo tempo, pegando uma imagem bíblica emprestada, eu advertiria contra a sedução da imagem do ídolo. A gratificação sensual do que se vê é algo aquém, ou seja, mais básico do que a abstração que é disponibilizada atendendo ao que não se vê. A presença física conjunta do analisando e do analista, estando o último fora do campo visual do primeiro, permite uma aguçada experiência de intimidade e imaginação, encarnando a transferência. A análise da potencialidade do toque real é diferente da do toque imaginado. Não há como substituir o ato de deitar-se no divã do analista. É claro que existem vários substitutos, e estes, como a boa psicoterapia, podem providenciar tratamentos importantes. Já tive analisandos que começaram sua imersão analítica no divã e acabaram numa versão diferente do trabalho após se mudarem para outro lugar. Não é a mesma coisa. Costumava-se dizer que aprendemos a ser analistas (deitados) de costas. Acredito que isso ainda seja verdade. E é melhor se as costas repousarem no divã do nosso analista.
Eu me preocupo com aqueles que estão em formação e, tanto como analisandos quanto como analistas, têm limitada proximidade física com seu parceiro de clínica. Estudantes que estão aprendendo à distância muitas vezes ficam perdidos quando seus pacientes presenciais reagem à sua presença. Minha esperança é de que, qualquer que seja o futuro da proximidade física, pelo menos alguns de nossos analistas em formação possam descobrir o poder da intimidade do corpo para estimular nossa imaginação.
Revisão técnica Abigail Betbedé
1 Entrevista elaborada e realizada por Abigail Betbedé.