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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

PANDEMIA

 

Intervenção nas relações iniciais em tempos de pandemia: relato de experiência diante das possibilidades da clínica online

 

Precocious intervention in a time of pandemic: experience report on the possibilities of online clinic

 

Intervención temprana en tiempos de pandemia: relato de una experiencia frente a las posibilidades de la clínica online

 

Intervention dans les relations initiales en temps de pandémie : récit d'expérience face aux possibilités de la clinique en ligne

 

 

Isabela Gimenez Manna OliveiraI; Silvana Vieira S. SantosII

IPsicóloga. Aluna do programa de especialização em Psicologia da Infância do Setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
IIPsicóloga. Psicoterapeuta. Enfermeira do Setor de Saúde Mental da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Membro da equipe interdisciplinar do Centro de Referência da Infância e da Adolescência (Cria-Unifesp) até meados de 2019

Correspondência

 

 


RESUMO

Diante de um cenário em que o distanciamento social se tornou imperativo de ordem e saúde, as atividades virtuais passaram a ser priorizadas. O cuidado passa a ocupar os discursos e ações, tornando assim essencial que conheçamos novos dispositivos capazes de oferecer continência e sustentação, para dar continuidade a nossa clínica. Em especial na clínica com bebês e crianças pequenas, essa questão se amplifica por seu caráter preventivo e constitutivo. Ela deve ser um direito garantido que não pode esperar. Trata-se de um relato de experiência de intervenção nas relações iniciais da primeiríssima infância, realizada durante a pandemia de covid-19, à luz da psicanálise. Serão apresentadas vinhetas de um atendimento presencial e sua continuidade online, a fim de elucidar as possibilidades clínicas desse trabalho não presencial, mas nem por isso remoto.

Palavras-chave: pandemia, atendimento online, intervenção nas relações iniciais, psicanálise


ABSTRACT

Facing a scenario in which social distance became imperative for discipline and health, virtual activities started to be prioritized. Care started to occupy discourses and actions, thus making it essential that we know new devices capable of offering continence and support, to continue our clinic. Especially the clinic with babies and young children, this issue is amplified by its preventive and constitutive aspect. It must be a right to be guaranteed and it cannot wait. This is an account of the experience of intervention in the early relationships of very early childhood, carried out during the pandemic of covid-19, in the light of psychoanalysis. Vignettes of face-to-face assistance and their online continuity will be presented in order to elucidate the clinical possibilities of this non-face-to-face, but not so remote work.

Keywords: pandemic, online treatment, precocious intervention, psychoanalysis


RESUMEN

Frente a un escenario donde el distanciamiento social se tornó un imperativo de orden y salud, pasaron a ser prioridad las actividades virtuales. El cuidado pasa a ocupar los discursos y guiar las acciones, haciendo, de esta forma, esencial, que conozcamos nuevos dispositivos capaces de ofrecer fortaleza y sustentabilidad para dar continuidad a nuestra clínica. Esta cuestión se amplifica especialmente en la clínica con bebés y niños, dado su carácter preventivo y constitutivo. La misma es un derecho que debe ser garantizado y no puede esperar. Se trata de un relato de una experiencia de intervención en el vínculo temprano en la primerísima infancia, realizada durante la pandemia de la covid-19, a la luz del psicoanálisis. Serán presentadas viñetas de una sesión presencial y su continuidad online, con el objetivo de dilucidar las posibilidades clínicas de este trabajo no presencial, pero, no por eso, remoto.

Palabras-clave: Pandemia, Sesión online, Intervención temprana, Psicoanálisis


RÉSUMÉ

Face à un scénario où la distanciation sociale est devenue un impératif d'ordre et de santé, les activités virtuelles sont désormais priorisées. Les soins commencent à occuper les discours et les actions, rendant ainsi essentiel la connaissance de nouveaux dispositifs capables d'offrir continence et soutien, pour assurer la continuité de notre clinique. Dans la clinique des bébés et des jeunes enfants, en particulier, cette question s'amplifie en raison de son caractère préventif et constitutif. Cela doit être un droit à garantir qui ne peut pas attendre. Il s'agit ici d'un compte rendu d'une expérience d'intervention dans les relations initiales de la plus petite enfance, menée pendant la pandémie du covid-19, à la lumière de la psychanalyse. On présentera des vignettes d'un service en face-à-face et de sa continuité en ligne, afin d'élucider les possibilités cliniques de ce travail non pas en présence, mais ni pour autant distant.

Mots-clés: pandémie, soins en ligne, intervention dans les relations initiales, psychanalyse


 

 

Introdução

Estamos diante de um cenário em que acontecimentos se destacam por sua importante força de ruptura, que afeta e invade a todo mundo. As estruturas sociais, institucionais, relacionais precisaram ser remodeladas em um período muito breve. Diante de um contexto em que nada escapa ao inimigo invisível, o distanciamento social tornou-se imperativo de ordem e saúde, as atividades virtuais passaram a ser priorizadas, e com isso as formas de sociabilidade e o estar juntos foram sendo drasticamente modificados (Carreteiro, 2020).

Em paralelo a isso, em tempos de pandemia, o cuidado passa a ocupar os discursos e nortear as ações em vários contextos, fato que nos coloca diante da tarefa de (re)pensar as fronteiras e também as possibilidades do trabalho terapêutico. Segundo Figueiredo (Rosal, 2020), essa tarefa é constante, e é essencial que conheçamos novos dispositivos capazes de oferecer sustentação e continência (Figueiredo, 2007), de modo que, hoje, pensar nas implicações do dispositivo virtual para o setting analítico e manejo clínico seria mais um momento de cuidado e reformulação da teoria, ética e técnica psicanalíticas.

É tempo de formação e capacitação profissional, sendo fundamental que tenhamos disponibilidade psíquica e capacidade empática para dar conta dos novos ajustes e pensar o enquadre terapêutico para novos formatos. Em um momento que também somos invadidos pelo novo e nos questionamos sobre antigas e novas certezas, essa capacitação vai se estruturando e se desenvolvendo na experiência, à medida que vamos tocando e tecendo as alternativas possíveis de ação, em paralelo a um trabalho interno e uma disposição interior para receber e observar. Segundo M. C. P. Silva (informação verbal, 27 de junho de 2020), é preciso ter empatia e uma escuta respeitosa para com os pacientes e famílias atendidos, para então cocriar e coconstruir alternativas de cuidado e possibilitar transformações.

Reconhecendo a importância dessa postura empática, Lauermann (Revista Crianças, 2020) destaca os atendimentos terapêuticos como um direito a ser garantido. Ela discorre sobre a garantia desse direito, em especial a clínica com bebês e crianças pequenas, em termos de políticas públicas em saúde. Entendemos, nesses termos, que qualquer criança e bebê em sofrimento tem direito ao atendimento. Intervir em um tempo inicial significa intervir em um tempo de constituição, num momento da vida quando ainda não há um sintoma cristalizado (Zornig, 2010), assumindo um caráter preventivo.

Por se tratar de uma importante fase do amadurecimento emocional, é fundamental que qualquer conflito que esteja impactando e interferindo no desenvolvimento das competências infantis possa ser superado o mais rápido possível (Rocha, 2009). A intervenção nas relações iniciais é um dispositivo que busca favorecer esse desenvolvimento saudável na primeira infância. De fato, essa estratégia de intervenção oportuna possui características e objetivos bastante específicos e se configura como um espaço privilegiado para a observação da interação pais-bebê ou pais-criança pequena (Oliveira, 2003).

O foco de intervenção é a relação entre os pais e o bebê, a partir da cena que acontece durante a consulta, na qual circulam aspectos da interação entre eles - aspectos sensoriais, o olhar, o toque, o tom de voz, a proximidade entre os pais e o bebê no aqui-e-agora (Rocha, 2009). O que o terapeuta faz é dar sentido a esses afetos, representando-os, fazendo conteúdos inconscientes circularem, de forma a favorecer as associações (Oliveira, 2003).

Uma vez que o bebê tem sua subjetividade inaugurada no registro das trocas sensoriais, é preciso que alguém exerça a função de identificar e interpretar seus sinais corporais, para que seja possível construir uma história narrativa. É necessário um ambiente afetivo sensível às suas necessidades, a fim de que seu potencial inato se atualize e se desenvolva (Zornig, 2010). Ao terapeuta, cabe intervir aliando-se a esse bebê e sua família, no sentido de dar voz e fazer reverberar a comunicação essencialmente corporal e sensorial, seja por meio de um gesto, por exemplo segurando o bebê, seja por meio de uma fala disparadora ou palavra organizadora (Oliveira, 2003).

Isso posto, reconhecemos o direito e a importância das intervenções num momento tão privilegiado quanto o das relações iniciais pais-bebê. Em contrapartida, em um cenário em que somos invadidos pela necessidade de reajustes nas relações sociais, no fazer clínico e no ensino teórico-prático, seria possível capacitar-se, intervir, sustentar e dar continência de forma remota? No que tange a essa clínica com bebês e crianças pequenas, as intervenções podem ter eficácia sem a dimensão presencial? Um trabalho analítico online com bebês, essencialmente sensoriais, é produtivo? Em tempo de formação profissional, é possível o desenvolvimento das competências clínicas nesse cenário de tantas adaptações? Estas eram algumas das tantas questões que fazíamos.

Neste artigo, não temos a intenção de responder a todas essas questões, tampouco de esgotar as possibilidades de atuação nesse contexto, mas sim apontar alguns caminhos percorridos e possíveis para pensar essa clínica tão rica e sensível em um momento de inúmeros reajustes e adaptações. Para tanto, relatamos a seguir a experiência que tivemos à luz da potência criativa do trabalho com crianças pequenas e suas famílias, atravessado pela pandemia de covid-19, com um caso clínico atendido no Núcleo de Pais e Bebês do Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da Unifesp e que parte do programa de especialização em Psicologia da Infância.

É importante salientar que o caso apresentado se delineou segundo o conceito de consultas terapêuticas introduzido por Winnicott (1971/1975) e desenvolvido por Lebovici (1987), pelo seu caráter breve e focal em aspectos do vínculo afetivo que favorecem ou dificultam o desenvolvimento da criança. Ambos os autores apresentam a consulta terapêutica como favorecedora de processos integrativos de um conflito, um sofrimento mal elaborado do passado, ambivalências no contato com o bebê, ou qualquer outro aspecto dissociado da personalidade que possa estar provocando falhas no desempenho das funções parentais (Rocha, 2009).

Apresentamos a seguir algumas vinhetas de um encontro presencial com Cecília1 e sua mãe, e outros cinco online, com mãe e filhas. Ilustramos aqui como esse setting pode se constituir em um espaço potencial e favorecedor para o desenvolvimento da parentalidade, em que os conflitos e sintomas circulam e se abrem para a possibilidade de prevenção da cristalização de transtornos do desenvolvimento infantil.

 

O desvelamento de uma história familiar: caminhos possíveis de atendimentos realizados online

Cecília é uma criança de 3 anos de idade, gêmea de Clarice, filha de Rosa e José e irmã de Ana, uma adolescente, filha do primeiro casamento da mãe.

Na primeira consulta do processo terapêutico presencial, após a triagem, ela apresenta-se um tanto quieta, desconfiada e pouco interativa e responsiva às convocações. Apesar de ser um lugar de certo modo familiar a ela, não demonstrou estar à vontade no atendimento, fato que parece ir ao encontro do que sua mãe apresenta como queixa inicial sobre a filha. Nesse dia estavam somente mãe e filha. Aqui, vale ressaltar que a presença de mais uma terapeuta nesse enquadre terapêutico tem a intenção de oferecer continência, dividir as transferências e partilhar as diferentes percepções (Oliveira, 2003).

Nossa intenção com esse primeiro encontro era explorar os sintomas de Cecília e investigar as representações mentais que a mãe tinha da filha, como proposto por Oliveira (2003) em seu trabalho sobre consultas terapêuticas. Apesar de já sabermos algumas informações sobre o caso, nosso objetivo era conhecer a Cecília do discurso de sua mãe. De fato, buscando entender o que as trazia ali, Rosa ratifica o comportamento fechado da filha, dizendo se repetir em situações com pessoas desconhecidas e lugares fora de casa. Por meio de seu relato, entendemos que esse sintoma de Cecília parece ter surgido há alguns meses, após um evento traumático envolvendo a família. Esse evento se trata de um assalto sofrido pelas gêmeas e seus pais, em que, numa decisão repentina, Rosa carrega em seu colo apenas uma das filhas, retirando-a da cena, e a outra fica com o pai que sofre muitas agressões físicas. O ato de violência ao pai é presenciado pela criança - e essa criança era Cecília.

Entendemos esse episódio, à luz do pensamento de Winnicott (1989/1994), como uma invasão súbita e imprevisível de uma realidade amedrontadora. O autor caracteriza essa imprevisibilidade ambiental como traumática, porque interrompe a continuidade de ser e instala um estado defensivo de alerta contra a invasão potencial (Dias, 2006). Diante de um trauma o indivíduo não possui uma defesa organizada, fato que desencadeia um estado de confusão, consequentemente seguido por uma reorganização mais primitiva de defesas, quando comparadas às suficientemente boas anteriores à ocorrência do trauma (Winnicott, 1989/1994).

Esse evento traumático parece ter implicado uma crise da organização psíquica dessa família, apesar de, inicialmente, Cecília ter sido identificada como a única que passou a ter um "desvio" depois do evento. Já nessa entrevista inicial após a triagem e breve participação no grupo de pais e bebês do setor, a fala de Rosa se transforma e começa a trazer os impactos sofridos por ela e seu marido e a forma como vêm expressando o sofrimento. Ela nos conta sobre seu diagnóstico de fibromialgia e sobre a depressão do marido. Diante dessa colocação, parece surgir a possibilidade de ela reconhecer que mais alguém ali não estava bem e de fazer circular o problema que antes só estava depositado na criança.

Nesse sentido, pensamos na importância da presença da família nos próximos encontros, justamente entendendo que havia um conflito comum a todos ali. Coincidentemente, nas próximas semanas que se sucederiam a essa consulta instalou-se o isolamento social em função da pandemia de covid-19, suspendendo os atendimentos de forma presencial, abruptamente, havendo a necessidade de mudança do enquadre para atendê-los de forma online. Apesar da apreensão pelas mudanças que nos tomaram, apresentamos a Rosa a possibilidade de atendimento nesse formato, que prontamente aceitou.

Os atendimentos que se seguiram foram então virtuais, na sala da casa, na presença da mãe e das filhas. O pai não esteve presente devido aos seus compromissos de trabalho.

Já na primeira sessão online podemos perceber Cecília mais comunicativa, interagindo com a câmera, o que parece ir ao encontro do relato da mãe sobre o comportamento da filha em casa. Nesse dia, na primeira experiência de atendimento via chamada de vídeo com essa família, percebemos a importância e complementariedade do atendimento em coterapia. A consulta era viva, um tanto conturbada pelos vários barulhos e estímulos ao mesmo tempo. Sentíamos certa rivalidade entre Cecília e Clarice e as tentativas de cada uma em aparecer na cena. A mãe em muitos momentos se colocava distante, demonstrando sentir-se, de certa forma, perdida diante das demandas e conflitos das filhas. Quem assumia a direção da câmera nesse momento era Ana, a irmã adolescente.

Assim como proposto por Lebovici (1987), em suas consultas pais-bebê, buscamos nos colocar entre mãe e filhas, e entre irmãs, dando-lhes voz, falando com elas e por elas, ampliando e validando as necessidades, dificuldades, comportamentos e comunicações entre elas. Durante uma brincadeira de bonecas, por exemplo, vamos nomeando algumas percepções, fazendo circular representações e possibilitando movimentações psíquicas. Quando Cecília em vários momentos representa suas bonecas de cabeça para baixo, buscamos reconhecer e legitimar sua comunicação sobre o que de fato estava de cabeça para baixo. São muitas coisas diferentes, a começar pelo nosso atendimento através de uma tela, ou pela pandemia, pelo distanciamento dos colegas e da escola, a mudança de rotina, ou até pelo assalto. Em outra ocasião, quando tenta pegar o celular em um momento caótico da consulta, ou quando sai de cena e não volta, vamos identificando e expondo uma possível tentativa de comunicar seu desconforto e de encerrar o atendimento.

Aqui, ressaltamos a importância desse movimento empático às necessidades e à dinâmica da relação entre mãe e filhas, de se ater e respeitar o ritmo e o tempo de cada uma. Como visto, a relação empática que se estabelece na consulta terapêutica permite que o terapeuta possa transformar o que sente em representações compartilhadas com a família, por meio de atos e narrativa, assumindo um caráter metaforizante, de se fazer compreender e dar sentido (Silva, 2003).

O início da consulta seguinte se assemelha muito com o final desta relatada: Cecília e Clarice estavam brigando, mostrando não estarem tão disponíveis ao atendimento. Além disso, Rosa estava distante, não aparecendo na cena. Tínhamos a impressão de que ela estava presente, mas não participou do encontro. Pensamos no quanto o encontro anterior pode ter sido mobilizador de aspectos emocionais, nos dando a sensação de que essa consulta se inicia exatamente no momento em que havia se encerrado a anterior.

Por outro lado, conforme o atendimento vai se desenrolando, vamos conseguindo acessar mais cada uma das meninas ali. Cecília parece mais disponível ao contato quando está envolta com seus desenhos e materiais gráficos. Parece ser uma atividade e um momento em que é possível a ela uma maior apropriação dela mesma. Ao mesmo tempo, Clarice se volta à brincadeira com bonecas, e não aparece qualquer tentativa de rivalização entre elas. Ana ainda é quem conduz e dirige a câmera. Conforme aponta M. C. P. Silva (informação verbal, 27 de junho de 2020), nas sessões online precisamos contar com a contribuição dos pais para nos ajudarem com a manutenção do setting, como parceiros ativos. De certo modo, Ana assume esse lugar nos atendimentos e pensamos no quanto ela acaba assumindo esse papel no cuidado com as irmãs.

Em relação a Rosa, percebemos sua ausência, nos incomodamos com isso e tentamos inclui-la na cena, por meio de uma intervenção sobre um desenho que Cecília faz de uma pessoa com duas cabeças. Imediatamente, tomadas por aquela falta da mãe, dizemos sobre a complexidade e o quanto pode ser difícil e cansativo para ela que tem que ter tudo em dobro para dar conta de cuidar de duas filhas pequenas, mas que entendemos que ela vai fazendo o possível. Rosa ainda se mantém distante, mas podemos ouvir uma reação sua ao fundo.

Talvez essa intervenção tenha provocado ressonâncias importantes, a ponto de essa mãe se mostrar completamente diferente na sessão seguinte. Aqui, vamos pensando na saúde implicada nessa capacidade da família em se mostrar de diferentes formas em diferentes atendimentos. Acreditamos, inclusive, que a potência do formato online tenha sido facilitada com essa maleabilidade psíquica e adaptabilidade da família.

Nessa sessão, Rosa é quem assume a direção da câmera e começa nos contando sobre uma brincadeira que estava acontecendo antes do atendimento e que continua após seu início. Essa brincadeira parece-nos muito simbólica, no sentido de que havia uma bruxa, representada pela mãe, e uma expressão de afetos em relação a ela, por ela e pelas filhas. Em relação a essa bruxa podiam aparecer diferentes sentimentos, como medo, carinho, identificação, raiva.

Pensamos no que essa brincadeira de bruxa queria nos dizer. Estão presentes a todo o momento, mesmo de forma velada, elementos da dualidade presença/ausência, proteção/ameaça, continência/abandono, aspectos importantes e que fazem Rosa sofrer na relação com as filhas - especialmente para com Cecília no momento do assalto. Nesse sentido, nota-se uma ambivalência acerca de sua função materna, de modo que se reflete nos conflitos projetados na relação com as filhas (Lebovici, 1987).

Winnicott (1956/2000) expõe sobre o ódio que está presente na maternidade desde o início. O autor diz sobre a importância da mãe em tolerar o sentimento de ódio contra seu bebê e do papel das brincadeiras como forma de expressá-lo. Ele relata ainda sobre a aptidão materna em esperar por recompensas de seu bebê, e isso fica muito claro em outro momento do atendimento em que Cecília e Clarice brincam de alimentar a mãe, e em dado momento estamos todos sendo alimentados, através da tela e por aquela troca.

Ademais, nessa mesma consulta presenciamos pela primeira vez uma cena em que mãe e filhas pareciam todas integradas. Em dado momento começam a cantar cantigas infantis, familiares a elas, fazendo fluir uma sintonia entre todas ali. Nesse momento encerramos o atendimento, tomadas pelo ritmo das canções e pela potência saudável que emergia. Aqui, pensamos ser importante salientar que foi preciso experimentar a desorganização e traduzi-la em palavras e gestos, para caminhar rumo a uma reorganização. Ficamos com a sensação de que parece ter sido de fato este o caminho, em que suportamos e demos continência ao caos, continuamos ali, permitindo que aos poucos fosse abrindo espaço para juntas se reorganizarem.

Nesse mesmo movimento de reorganização, algo importante acontece na consulta seguinte. Cecília, revelando suas competências, representa o conteúdo do assalto de forma quase direta pela primeira vez, por meio de uma brincadeira. Nessa brincadeira, ela representa a dificuldade em conseguir carregar duas bonecas ao mesmo tempo. Ela dispõe cada uma delas em uma cadeirinha de carro (que estavam na sala de sua casa no momento do atendimento). Em seguida ela deixa uma das bonecas e segura a outra no colo, correndo pela sala. Vamos então dizendo a ela o quanto é difícil mesmo carregar duas bebês. Ao deixar uma das bonecas em outro lugar, ela volta e busca a outra que ainda estava na cadeirinha, mostrando a nós uma possibilidade de reparação pela falta inicial.

Winnicott (1971/1975) reconhece a capacidade do brincar como algo universal, que promove o crescimento, a saúde e a comunicação consigo e com os outros. Na clínica das relações iniciais, como exposto, é importante que essa comunicação criativa seja traduzida em palavras. A brincadeira de Cecília é então nomeada e narrada por nós terapeutas e, ao ser compartilhada, fazemos relação com a cena do assalto. Nesse sentido, surge a possibilidade de repetição e elaboração da situação traumática inicial vivenciada, quando Cecília representa essa cena não aprisionada pela experiência e com abertura à reparação. Esta é a incrível força do atendimento com pais e bebês ou crianças pequenas, que é a ação na cena, no momento em que acontece, no aqui-e-agora das consultas. Aqui, vamos reconhecendo essa potência também no enquadre online.

Além disso, pudemos perceber certa surpresa de Rosa, quando representamos a brincadeira da filha. Esta é outra força potente do atendimento na relação, um lugar em que a dupla pais-bebê e o terapeuta possam se surpreender com os sentimentos e insights despertados, configurando-se como um espaço para que a experiência emocional, produzida nesse aqui-e-agora, permita à criança experimentar um alto grau de confiança de que a mãe não deixará de estar ali (Silva, 2010). Para Rosa se abre a possibilidade de ressignificar a experiência subjetiva do abandono dessa filha.

Em seguida abrimos um espaço para Rosa expressar suas percepções sobre as filhas dentro e fora dos atendimentos. Ela nos conta que as filhas pareciam bem, se comunicavam e interagiam bem entre elas, brincando mais e brigando menos. Ressaltamos e reconhecemos essas percepções também como movimentos dela, assegurando sua capacidade de cuidar das três filhas.

Segundo Oliveira (2003), num ambiente de holding como este oferecido a Rosa e sua família, os pais se sentem seguros para falar sobre sua história, seu passado, suas famílias e sobre a repetição de suas condutas. Percebemos, em consonância com essa ideia, que o ambiente suficientemente bom das consultas, junto com o reconhecimento de que estava tudo bem com as filhas, favoreceu que Rosa se autorizasse a trazer experiências importantes da vida dela. De certo modo, quando desaparecem as questões da filha, sobram os fantasmas da mãe. Esta é a importância de fazer circular o conflito.

É nesse contexto que ela nos conta sobre a gravidez das gêmeas e da vergonha que sentia em estar grávida aos 42 anos. Além disso, relata sobre outro momento difícil de sua história, que foi a morte de sua mãe quando ela tinha 3 anos, e da forma como se sentiu abandonada e só. Diz-nos então que a única lembrança que tem de sua mãe é ela no caixão. Ferrari e Donelli (2010) expõem sobre a reedição e reatualização de aspectos da própria história constitutiva da mulher para construir um lugar materno e subjetivo do bebê. A maternidade de Rosa vai sendo construída em um tempo de retroação, de ressignificação de sua própria filiação, em que os fantasmas parentais e a relação com sua infância parecem ser trazidos à tona.

Quando pensamos sobre esses acontecimentos que ela relata, reconhecemos que certamente ela tivera uma experiência e cuidados maternos suficientemente bons até a morte de sua mãe, refletindo nas suas competências como mãe das meninas. No entanto, parece se instalar um colapso no momento do assalto, em que Rosa parece reviver o trauma pela perda da mãe, a partir de uma identificação projetiva com Cecília pelo trauma vivido. É como se uma mãe também morresse na hora do assalto, quando some, havendo uma repetição de sua história.

Rosa, na consulta seguinte, continua nos contando sobre sua história, voltada para aspectos de sua própria filiação. Ainda nessa consulta, última com a família, Rosa expõe sobre como os assuntos suscitados mexeram com ela de forma surpreendente. Ela relata ter sido cuidada por uma madrasta "muito má" (sic) após a morte de sua mãe, contando apenas com o suporte dos irmãos mais velhos, em especial o cuidado suficientemente bom de uma irmã. Nessa família, parece haver uma transmissão transgeracional do lugar inicialmente destinado a Ana, em relação aos cuidados com as irmãs mais novas, e da vivência de Cecília que também "perde" a mãe aos 3 anos.

Rocha afirma que "é a história dos pais que permite ao analista ir compreendendo a rede de conflitos familiares na qual o bebê está inserido, e as crenças e mandatos transgeracionais que se atualizam no exercício da parentalidade, de modo sintomático" (2009, p. 72). Por essa perspectiva, podemos pensar no quanto a possibilidade de Rosa falhar ou ter falhado com as filhas poderia suscitar uma ideia de que era uma bruxa - como a madrasta foi com ela - e como foi retratada em algumas brincadeiras, nos atendimentos.

Ainda na última sessão, Clarice e Cecília começam o atendimento muito concentradas, desenhando e pintando, na companhia de Ana, que também participava numa atmosfera criativa que transmitia sintonia e organização. Rosa agora pode ser mãe das três filhas, observando e salientando as potencialidades e diferenças de cada uma, pela escolha das cores, dos desenhos, por exemplo. Vamos conversando sobre a importância de aparecerem essas características e singularidades entre elas, nem melhores nem piores do que as da outra, apenas diferentes. Pensamos no quanto estávamos falando sobre as singularidades de cada uma ali: Cecília, Clarice, Ana e Rosa.

Acreditamos que, de alguma forma, com a facilitação do espaço potencial criado pelo setting da consulta terapêutica, e do resgate de sua história pessoal, Rosa foi podendo caminhar no sentido da elaboração de aspectos de sua própria filiação e em relação aos cuidados com as filhas, para passar a compreender e desenvolver a apropriação e asseguramento de sua maternagem, bem como diminuir suas projeções sobre as filhas, confirmando a singularidade ímpar de cada uma delas.

Além disso, o imprevisível da interrupção dos atendimentos e a possibilidade de continuidade parecem ter gerado, por parte dessa família, a potência de restaurar algo que havia sido abalado, a confiança na possibilidade de continuidade.

O trabalho terapêutico com essa família se encerrou, mas o acompanhamento a Rosa continua. Pensamos o quanto ela vem podendo se apropriar e se implicar nas suas funções maternas, a partir do reconhecimento de algumas vivências como internas e com sentido próprio. Assim, "escutando" as crianças, preenchendo lacunas, fazendo circular o conflito e vivenciando novas possibilidades de relações, foi possível vislumbrar uma dissolução ou pelo menos uma diminuição dos sintomas manifestados por Cecília.

 

Considerações finais

Diante da encruzilhada entre a comoção em prol do cuidado inerente e necessário a este tempo de pandemia e as implicações dos novos moldes e enquadres terapêuticos, foi preciso um ajuste na forma de pensar o fazer clínico. No que tange à prática no curso de especialização em Psicologia da Infância, algumas mudanças e acordos foram necessários. Os encontros presenciais foram substituídos por reuniões virtuais, antigos atendimentos em grupo passaram a ser impensáveis, a técnica e o saber dos atendimentos precisaram ser reestruturados.

Especificamente sobre a clínica das relações iniciais e da primeira infância, o cuidado para pensar as intervenções foi ampliado, uma vez que o foco de sua intervenção é o vínculo, considerando uma cena inteira de relações acontecendo no aqui-e-agora. Nesse sentido, como seria possível proporcionar o encontro dessas relações dentro desse novo enquadre? Eram inevitáveis os questionamentos sobre os desafios que se instalavam diante de tais atravessamentos e da necessidade de assistir a essa cena em uma perspectiva bidimensional.

Em contrapartida, por meio da atuação na prática clínica com Cecília e sua família, fomos nos dando conta da potência que tínhamos em mãos nos atendimentos das consultas terapêuticas de forma online, mas não remota. A cena acontecia ali e estávamos juntas participantes nela. A perspectiva bidimensional, do atendimento online, dava lugar à tridimensão, pelo fato de que o toque, os gestos, o sentir que aconteciam ali naquela família eram transmitidos a nós pelas expressões, falas, sentidos e brincadeiras através da tela. Tanto era sentido que saíamos algumas vezes tomadas por aquela atmosfera familiar, das brincadeiras e das bagunças.

Assim, ainda que tomadas por limitações e angústias inerentes a este momento atual de pandemia, é possível destacar também as potências e o desejo de continuar. E é em meio a essas dialéticas que parece ter sido possível realizarmos, ao menos com a família de Cecília, alguma coisa ali da ordem da escuta, do olhar e do cuidado terapêutico e analítico, funcionando como importante estratégia de intervenção.

 

Referências

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Correspondência:
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Recebido em 20/7/2020
Aceito em 22/9/2020

 

 

1 Nome fictício, a fim de garantir o sigilo e preservar a identidade da paciente e da família atendidas.

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