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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

PANDEMIA

 

Trauma na epidemia brasileira de covid-19: contribuições a partir de Lacan, Ferenczi e Kai Erikson

 

Trauma in the Brazilian epidemic of covid-19: contributions from Lacan, Ferenczi and Kai Erikson

 

Trauma en la epidemia brasileña de la covid-19: contribuciones desde Lacan, Ferenczi y Kai Erikson

 

Le trauma dans l'épidémie brésilienne de covid-19 : contributions depuis Lacan, Ferenczi et Kai Erikson

 

 

Jéssica Fernandes da Silva; Taís Bleicher

Departamento de Psicologia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)

Correspondência

 

 


RESUMO

A covid-19 foi classificada como uma pandemia pela oms. Até o momento, não há tratamento ou vacina para a doença. Ao mesmo tempo que o Brasil é o país epicentro da doença na América Latina, o presidente da República, Jair Bolsonaro, manifesta-se contrário às medidas de isolamento social, minimizado a importância e a gravidade das consequências da doença no país, além de defender a retomada da economia em detrimento das questões sanitárias. A pandemia pode ser considerada uma situação traumática, que coloca o sujeito em contato com um sentimento de imobilidade e impotência. Busca-se debater a situação da população brasileira diante da covid-19, principalmente a da parcela mais vulnerável, relacionando suas vivências à noção de trauma, a partir dos psicanalistas Sándor Ferenczi e Jacques Lacan e do sociólogo Kai Erikson.

Palavras-chave: covid-19, trauma, trauma social, desmentido, psicanálise


ABSTRACT

covid-19 was classified as a pandemic by the who. So far, there is no treatment or vaccine for the disease. At the same time that Brazil is the epicenter of the disease in Latin America, the President of the Republic, Jair Bolsonaro, opposes social isolation measures, minimizing the importance and severity of the consequences of the disease in the country, in addition to defending the importance of the return of the economy at the expense of health issues. The pandemic can be considered a traumatic situation, which puts the subject in contact with a feeling of immobility and helplessness. In this sense, we seek to debate the situation of the Brazilian people in face of covid-19, especially the most vulnerable ones, relating their experiences to the notion of trauma, from the psychoanalysts Sándor Ferenczi and Jacques Lacan, in addition to the sociologist Kai Erikson.

Keywords: covid-19, trauma, social trauma, disavowal, psychoanalysis


RESUMEN

La covid-19 fue clasificada como una pandemia por la oms. Hasta ahora, no hay tratamiento o vacuna para la enfermedad. Al mismo tiempo que Brasil es el epicentro de la enfermedad en América Latina, el presidente de la República, Jair Bolsonaro, se opone a las medidas de aislamiento social, minimizando la importancia y la gravedad de las consecuencias de la enfermedad en el país, además de defender la importancia del retorno de la economía a expensas de los problemas de salud. La pandemia puede considerarse una situación traumática, que pone al sujeto en contacto con un sentimiento de inmovilidad e impotencia. En este sentido, buscamos debatir la situación de la población brasileña frente a la covid-19, especialmente los más vulnerables, relatando sus experiencias en relación al trauma, a partir de los psicoanalistas Sándor Ferenczi y Jacques Lacan, además del sociólogo Kai Erikson.

Palabras clave: covid-19, trauma, trauma social, renegación, psicoanálisis


RÉSUMÉ

Le covid-19 a été classé comme pandémie par l'oms. Jusqu'à présent, il n'y a pas de traitement ni de vaccin contre la maladie. Alors que le Brésil est l'épicentre de la maladie en Amérique latine, le président de la République, Jair Bolsonaro, se manifeste contraire aux mesures d'isolement social, minimisant l'importance et la gravité des conséquences de la maladie dans le pays. En plus, il défende l'importance du retour de l'économie au détriment des problèmes sanitaires. La pandémie peut être considérée comme une situation traumatique, qui met le sujet en contact avec un sentiment d'immobilité et d'impuissance. En ce sens, nous cherchons à débattre la situation de la population brésilienne face au covid-19, en particulier du groupe le plus vulnérable, en associant leurs expériences à la notion de trauma présenté par les psychanalystes Sándor Ferenczi et Jacques Lacan, ainsi que par le sociologue Kai Erikson.

Mots-clés: covid-19, trauma, traumatisme social, démenti, psychanalyse


 

 

Introdução

Utiliza-se o termo covid-19 para designar a doença causada pelo Sars-CoV-2, um novo tipo de coronavírus. A covid-19 foi identificada após uma série de casos de pneumonia de causa desconhecida serem documentados em Wuhan, China, em dezembro de 2019 (Huang et al., 2020; Pequeno et al., 2020; Rinaldi & Rinaldi, 2020). O Brasil teve seu primeiro caso registrado em 25 de fevereiro de 2020 (Ahmed et al., 2020; Chiriboga et al., 2020; Dorn et al., 2020; Ribeiro & Leist, 2020). Porém, foi apenas em 11 de março de 2020 que a Organização Mundial da Saúde (oms) elevou a doença para a categoria de pandemia (Rinaldi & Rinaldi, 2020; who, 2020).

O novo coronavírus apresentou, desde o início dos registros sobre a doença, taxas de mortalidade altas em pessoas com mais de 60 anos e consideráveis taxas de hospitalização, depois da infecção (Ribeiro & Leist, 2020). Contudo, até o presente momento, mesmo com esforços intensos e diversas pesquisas, não há um tratamento totalmente eficaz ou uma vacina para prevenir a covid-19. Nesse sentido, entende-se que reduzir o contágio e não sobrecarregar o sistema de saúde pode salvar diversas vidas, uma vez que, nos casos graves de covid-19, os pacientes necessitam de estrutura hospitalar de alta complexidade (Ferguson et al., 2020; Pequeno et al., 2020; Walker et al., 2020). Atualmente, grande parte do mundo permanece em isolamento social, além de ter criado ou intensificado hábitos de higiene e cuidados sanitários diversos.

Hoje, após alguns meses da chegada documentada da doença, o Brasil é o país que mais apresenta casos e mortes na América Latina, tornando- -se, assim, o epicentro da doença nessa região ("Covid-19 in Brazil", 2020). Algumas particularidades do país podem ter contribuído para as dificuldades sofridas em relação ao combate da doença, gerando um problema de saúde pública, como a dificuldade de manter distanciamento social em favelas, invasões, comunidades, casas de palafita, cabanas, entre outros (ibge, 2013; Pereira et al., 2020). No entanto, a ausência ou o atraso na tomada de medidas efetivas e direcionadas por parte do governo federal pode ser, talvez, o maior responsável pelo panorama atual enfrentado pelo país, nas mais diversas políticas públicas, não só na saúde e na assistência social, mas também na economia e na educação.

O presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, desde o início da pandemia tem se manifestado contrário às medidas de isolamento social, minimizado a importância e a gravidade das consequências que a covid-19 tem trazido ao Brasil, além de defender a retomada da economia em detrimento da vida da população do país. Após a demissão de dois ministros da Saúde, o desencorajamento das medidas de isolamento social e do uso de máscara (Bolsonaro discursa em Brasília, 2020; Cravo & Schuch, 2020; Duarte, 2020; Gomes & Garcia, 2020; Martins, 2020), a defesa do chamado isolamento vertical - colocar em quarentena os que estão em grupos de risco, como idosos, hipertensos e diabéticos, enquanto o restante da população voltaria a trabalhar - (Duarte, 2020; Nunes & Meireles), além do incentivo ao uso de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina, que não apresentam comprovação científica de sua eficácia no tratamento da covid-19, podendo antes causar graves efeitos colaterais (Duarte, 2020), Bolsonaro segue, constantemente, deixando grande parte da população desamparada, em especial aqueles que, como mencionado antes, não têm condições de manter o distanciamento social por conta do lugar em que moram e que precisam sair da quarentena para trabalhar e sustentar financeiramente a si e a sua família.

Nesse sentido, acredita-se que a situação atual dialoga com diversos temas clássicos da psicanálise: as relações estabelecidas entre líderes e coletivos; o luto e a melancolia; o desamparo e a privação afetiva - apenas para citar alguns exemplos. Entretanto, para este ensaio, optou-se por fazer um retorno à noção de trauma, tanto na perspectiva dos psicanalistas Sándor Ferenczi e Jacques Lacan quanto na do sociólogo Kai Erikson, para buscar compreender as prováveis implicações psicológicas da pandemia de covid-19 no contexto brasileiro, em particular sobre a parcela mais vulnerável da população.

 

Covid-19, processos de subjetivação e psicopatologia

Assim como em diversos outros acontecimentos, sejam catástrofes naturais, grandes acidentes ou crimes em massa, uma pandemia pode ser considerada uma situação de desastre, que muda e distorce completamente a vivência anterior do sujeito e o coloca em contato com um sentimento de imobilidade e impotência. Dessa maneira, neste momento as pessoas se deparam com uma angústia profunda e desnorteadora, em que há perda de referências e de direcionamentos. A leitura de Lacan sobre os registros que compõem a realidade humana auxilia na compreensão do fenômeno que foi vivido, coletivamente, no contexto da covid-19.

Retomemos o próprio processo de constituição subjetiva. A princípio, temos o real do corpo, em sensações desorganizadas corpórea e psiquicamente. Um eu emergirá, contudo, de um corpo que se apresenta tanto em sua dimensão imaginária quanto a partir da linguagem. Entretanto, esse desenvolvimento não é linear, e haverá sempre situações que extrapolam a nossa possibilidade de apreensão simbólica. Quando isso acontece, é também no corpo que o real produzirá os seus efeitos. Assim, podemos retomar, sucintamente, os três registros da experiência humana: o real, o simbólico e o imaginário.

O simbólico remete simultaneamente à linguagem e à função compreendida por Lévi-Strauss como aquela que organiza a troca no interior dos grupos sociais; o imaginário designa a relação com a imagem do semelhante; o real, que deve ser distinguido da realidade, é um efeito do simbólico: o que o simbólico expulsa, instaurando-se. (Vanier, 2005, pp. 18-19, citado por Chaves, 2009, p. 44)

Portanto, o real interrompe a narrativa do sujeito e estampa uma grande falta (Ratti & Estevão, 2016). O primeiro momento psíquico gerado pela pandemia foi, portanto, o de apresentação a uma realidade até então desconhecida para grande parte da população mundial: uma doença com alto poder de contágio e que causa a morte rapidamente, tão rapidamente a ponto de não existir tempo hábil para enterrar os mortos. A doença, as cenas de cadáveres se acumulando, a impossibilidade dos rituais de despedida, o desconhecido. O efeito disso que nos toma sem que antes tenha sido enlaçado pela linguagem se dá em nosso corpo e em nossa desorganização psíquica. Existe um novo mundo, que mudou, e para o qual nunca fomos preparados.

Segundo Freud (1930[1929]/1996a), existiriam três fontes do sofrimento humano: a decadência e a dissolução do corpo biológico, as forças destruidoras do mundo externo e os relacionamentos com os outros homens. Uma situação de pandemia permite, a partir de um único fenômeno, entrecruzar as três: a ameaça de morte física, por um vírus sobre o qual não temos controle, e ainda o defrontar-se com a ausência de cuidados - seja dos governantes e de suas instituições, seja do próximo. Como todo fenômeno extremo, a pandemia deflagra atos tanto de generosidade quanto de egoísmo e crueldade humanos.

Assim, a pandemia de covid-19, embora seja uma situação nova, repete elementos de outras epidemias já conhecidas internacionalmente, em que curvas epidemiológicas de quadros psicopatológicos seguem as curvas epidemiológicas para a epidemia em questão, com maior extensão temporal que as últimas. As epidemias são acompanhadas, desse modo, tanto pelo surgimento quanto pelo incremento de quadros psicopatológicos diversos (Gavin et al., 2020; Gunnell et al., 2020). Esse fenômeno, que é internacional, adquire diferentes nuances pelo Brasil, marcado pela desigualdade social e vivendo, atualmente, uma profunda crise sociopolítica e econômica.

 

Covid-19 no Brasil

Diante do tamanho e da diversidade da realidade brasileira, era natural que o comportamento da curva epidêmica do coronavírus se manifestasse em tempos e lógicas distintas ao longo do território nacional. No entanto, como uma epidemia primeiramente documentada na Ásia e na Europa, a sua chegada ao Brasil se deu através das viagens internacionais. Portanto, atingiu primeiro as classes alta e média, para em pouco tempo chegar até a classe baixa, quando o contágio passou a ser comunitário - ou seja, já não era mais possível rastrear de onde havia vindo aquela contaminação. Nesse sentido, diversos estudos (Ahmed et al., 2020; Chiriboga et al., 2020; Dorn et al., 2020; Ribeiro & Leist, 2020) começaram a evidenciar que a pandemia afeta as pessoas de maneira diferenciada. No caso do Brasil, as populações mais marginalizadas tendem a sofrer consequências mais graves, com mais altos índices de mortalidade. São vários os motivos que levam a esses números, os quais se entrecruzam em quadros de vulnerabilidade complexos.

Podemos apontar, primeiramente, o fato de que a não existência de vacina ou cura para essa doença exige o distanciamento social a fim de diminuir a sua propagação, em um país em que grande parte da população vive em favelas, invasões, comunidades, casas de palafita ou construções precárias, com um grande número de pessoas em um pequeno espaço. Essa realidade costuma ser acompanhada pela falta de saneamento básico adequado, e outra medida especialmente importante para evitar o contágio da doença se fundamenta na higiene, que depende das condições estruturais de moradia (Ribeiro & Leist, 2020).

Além disso, grande parte da população de risco, principalmente pessoas acima de 60 anos, não consegue seguir a recomendação de se manter em quarentena, pois precisa trabalhar para auxiliar na renda familiar. Soma-se a isso o fato de que quase 7% da população brasileira é analfabeta e 30% dos brasileiros são analfabetos funcionais, o que gera grande dificuldade no entendimento e na interpretação das informações sobre a covid-19, principalmente quando informações conflitantes e falsas são disseminadas (Gasparini et al., 2007; Lima & Catelli, 2018).

Embora o Brasil tenha a desigualdade social como característica histórica, o avanço da extrema direita nos cargos legislativos e executivos no âmbito federal, nos últimos anos, possibilitou a modificação da Constituição no que ela tinha de mais progressista: seu sistema de garantia de direitos fundamentais. O símbolo máximo dessa perversão - é como se ainda fosse a mesma Constituição Cidadã de 1988, ao passo que, ao mesmo tempo, já não é - é a Emenda Constitucional n.º 95, que limita o investimento em diversas políticas públicas sociais, contribuindo para o avanço da miséria extrema no Brasil (Ananias & Nolasco, 2018).

O Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo atendimento de aproximadamente 80% da população (Ribeiro & Leist, 2020), não saiu ileso desse processo. A pandemia de covid-19 atingiu o Brasil em um momento em que suas diversas políticas públicas já estavam sob ataque. No âmbito sanitário, a sobrecarga gerada pela covid deixou o subfinanciamento do sistema mais evidente, com seu consequente colapso em diversas cidades e estados brasileiros (Maziero, 2020; Morelli et al., 2020).

Por fim, ao considerar que pessoas pretas e pardas são, em sua maioria, grande parte da população de baixa renda, é possível observar, a partir de dados do Ministério da Saúde, que a porcentagem de pessoas brancas hospitalizadas por covid-19 é maior que de pessoas pretas e pardas, porém a taxa de mortalidade é menor, justamente pelo acesso diferenciado ao sistema de saúde. Assim, as populações mais pobres correm mais riscos de ter complicações e vir a falecer (Ribeiro & Leist, 2020).

 

Múltiplos traumas na epidemia brasileira de covid-19: violência real, desmentido e trauma social

Dito isso, é possível analisar que o real que emerge de situações de trauma, acidentes ou violência, o real traumático, como coloca Lacan (Ratti & Estevão, 2016), atravessa e esfacela de maneiras diferentes pessoas que estão diante de um mesmo evento, mas que não o percebem do mesmo modo ou têm diferentes recursos para lidar com ele, o que pode gerar um atravessamento maior ou menor a depender de como e onde se encontram.

Na seção anterior, dedicamo-nos às situações sociais que tornam a pessoa mais vulnerável a contrair a covid-19. A vulnerabilidade social, como uma experiência de desamparo psíquico e material, afeta as coletividades. Entretanto, cada biografia terá uma vivência singular dessa experiência. Para efeito de ilustração, tomaremos duas situações com ampla repercussão nacional, ocorridas durante o primeiro semestre da pandemia no Brasil.

O primeiro caso diz respeito à situação de grandes empresários da cidade de Belém que contraíram o novo coronavírus num momento em que o sistema de saúde da cidade estava em colapso e, por isso, não havia mais vagas de uti no sistema público nem no privado. Esses empresários chegaram a pagar a quantia de 120 mil reais para alugar jatinhos de luxo que os levassem aos hospitais da elite financeira de São Paulo. Na matéria que relatava caso a caso a realidade desses empresários, chegava-se ao perfil de pessoas que poderiam ter optado pelo isolamento social, não o fizeram e, ao final, puderam ser socorridas e salvas com altíssimo aporte financeiro (Campbell, 2020).

Paralelamente a essa situação, está a dos trabalhadores que, não contando com direitos trabalhistas nem com recursos emergenciais que lhes permitam deixar de trabalhar neste período, seguem arriscando-se, como é o caso das empregadas domésticas (Langlois, 2020). Essa foi uma das importantes vias de movimentação do contágio nas cidades, das zonas nobres para as periferias. Entretanto, o contato com a família e a vizinhança, nas condições precárias já relatadas, além de causar uma rápida propagação do contágio, colapsou o sistema público de saúde, sem que essas pessoas pudessem contar com nenhuma outra via de atenção sanitária.

Nos dois casos apresentados, um lado, por conta de seus recursos financeiros, conseguiu reestruturar seu discurso, que havia sido atravessado pelo real traumático do novo coronavírus, enquanto o outro lado precisou enfrentar o risco do contágio, ao ter que trabalhar para garantir sua sobrevivência, com o atravessamento do real de maneira muito mais trágica, dada a experiência de impotência e desamparo por parte do Estado.

A realidade da covid-19, a agressividade da doença e a iminência da morte podem ser vividas como traumas em ambos os casos. Nesse sentido, adotando-se a construção de Ferenczi sobre o trauma, trata-se de violências reais (Gondar, 2017). Mas o trauma não se resume às violências reais. Para esse autor, o que gera o trauma não é, necessariamente, o evento em si, nem o grau de violência existente na situação, mas sim algo que se dá em um segundo momento, depois da ocorrência do evento: o desmentido, que pode ser entendido como o não reconhecimento ou a não validação da situação de violência sucedida (Gondar, 2012). Ferenczi criou um modelo para explicar o trauma baseado nas relações familiares e situações de abuso que podem acontecer dentro da família. No entanto, é possível aplicar esse modelo a todas as relações, sejam elas de poder, de dependência, de desvalorização ou de desrespeito (Bhabha, 1994, citado por Gondar, 2012).

Diante de todo esse cenário, as ações do presidente da República, como tentar convencer a população de que o distanciamento social é um grande erro, que o novo coronavírus não é tão ruim quanto a mídia faz parecer, e que os danos à economia causados pelas políticas de quarentena e distanciamento social são maiores e mais graves que os danos causados pela covid-19 em si (Duarte, 2020), parecem agravar a situação já insustentável pela qual milhões de brasileiros estão passando, gerando o que Ferenczi classificou como desmentido.

Desse modo, pode-se observar que na relação entre a população vulnerável mais atingida pelas consequências da covid-19 - que, diariamente, vê seus entes queridos morrerem por conta da doença, que não se sente protegida dentro de sua casa por não ter direitos básicos de higiene garantidos, e que precisa continuar sua rotina pré-pandemia por não ter respaldo financeiro do governo - e o presidente da República - que constantemente minimiza os efeitos da pandemia e que, por exemplo, ao ser perguntado sobre o que o governo pretende fazer em relação ao crescente número de mortes no país, responde que não é coveiro (Gomes, 2020) - o trauma se configura coletivamente, portanto a partir do momento em que uma das partes da relação desacredita e desvaloriza a vivência da outra e trata as mortes, o sofrimento e a angústia como algo que não aconteceu, sem importância. Assim, como coloca Gondar (2012), o que ocorre é um descrédito da percepção e da própria condição de sujeito de quem experienciou aquele trauma. Não se desmente o evento, mas sim o sujeito.

Desmente-se aqueles que tiveram de enterrar seus familiares em valas coletivas, por conta do aumento excessivo de mortes por dia, e que ao mesmo tempo ouvem por parte do governo que o contágio de pelo menos 70% da população é inevitável ("Com sus em colapso", 2020; Gomes, 2020). Desmente- -se a família da empregada doméstica que foi a primeira vítima fatal da covid-19 no Rio de Janeiro, tendo contraído a doença da patroa que acabara de retornar da Itália e não havia dado a sua funcionária a opção de ficar em isolamento social (Melo, 2020).

Outro constructo teórico que ajuda na compreensão desse fenômeno é o de trauma social, formulado pelo sociólogo Kai Erikson. Em seus estudos com comunidades traumatizadas, o autor chegou à conclusão de que o trauma coletivo é "um golpe nos tecidos básicos da vida social, que destrói os vínculos que ligam mutuamente as pessoas e que causa um prejuízo no sentido existente de comunidade" (Erikson, 2011, p. 69, citado por Gondar, 2012, p. 196). Esse tipo de trauma é capaz de destruir a confiança básica, seja essa perda de confiança em si próprio, na família, na comunidade ou mesmo nas estruturas do governo humano. Nesse sentido, Erikson trouxe a hipótese de que as situações traumáticas que desmantelam vínculos são causadas por outros seres humanos, que não reconhecem seus erros, produzindo nas vítimas um sentimento de aniquilamento, gerando o que Ferenczi já havia explicado: o desmentido (Gondar, 2012, 2017).

 

À guisa de considerações finais e apontamentos

A literatura internacional aponta para diversos determinantes associados à pandemia de covid-19 que causam sofrimento psíquico, entre eles as mensagens contraditórias das autoridades (Pfefferbaum & North, 2020). Nacionalmente, as diretrizes da Fundação Oswaldo Cruz para os gestores assinalam a necessidade de que estes saibam transmitir organização, segurança, confiança, apoio e ânimo (Melo et al., 2020). Desde Freud (1921/1996b), temos nos dedicado à importância da figura de um líder e seus efeitos, positivos e negativos, sobre as diversas coletividades.

A epidemia de covid-19 atinge o Brasil em um momento de fragilidade das diversas políticas públicas sociais e agravamento da histórica desigualdade social. Esse cenário acaba por assumir maior potencial traumático a partir da gestão do governo federal de Jair Bolsonaro.

Ao não admitir a realidade mortífera da pandemia, eximir-se diante de suas responsabilidades de líder e de gestor, e defender posturas individuais e coletivas que aumentam a possibilidade de contágio da população, Bolsonaro entra em conflito com diversos organismos internacionais, coletivos de pesquisadores, governadores e prefeitos que tentam agir no enfrentamento da covid-19. Mais do que a mera negligência, que por si só já se configura uma violência, em um momento em que a população se depara com diversas formas de sofrimento, Bolsonaro age desmentindo o trauma vivido por uma parcela significativa da população brasileira, sejam as populações mais vulneráveis quanto à renda, as minorias étnicas ou, no presente momento, qualquer pessoa que dependa de leitos no sistema sanitário e não consiga tratamento adequado por conta da grande alta dos casos em todo o país. Assim, é possível concluir que a pandemia do novo coronavírus tem trazido diversas consequências para além dos problemas biológicos e econômicos, que, no sujeito, podem emergir como quadro psicopatológico bem definido, mas que têm caráter de trauma, inclusive quanto ao tecido social.

A tarefa de reconstrução subjetiva e social é complexa, uma vez que a liderança federal que comanda o país hoje só poderia ter chegado a um destacado lugar de poder se contasse com o apoio de uma parcela significativa da população. Nesse sentido, a sociedade brasileira, hoje, repete situações historicamente traumáticas, em que uma zona cinzenta opera sobre o sujeito, que se sente desautorizado como tal e que perde seus valores e suas referências de um mundo conhecido e seguro. Para além dos cuidados individuais, faz-se necessário recriar a confiança em uma sociedade justa e capaz de distinguir verdade e mentira. O tratamento do trauma social só pode ser enfrentado a partir daquilo que o constitui: o social.

 

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Correspondência:
Jéssica Fernandes da Silva
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Recebido em 20/7/2020
Aceito em 22/9/2020

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