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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020
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As múltiplas pandemias englobadas na pandemia
The multiple pandemic included in the pandemic
Las múltiples pandemias englobadas en la pandemia
Les multiples pandémies contenues dans la pandémie
Leonardo Posternak
Médico pediatra, com clínica pediátrica em São Paulo há 40 anos. Pediatra do Hospital Israelita Albert Einstein. Formação em psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Escritor de vários livros. Ganhador do prêmio Jabuti em pedagogia e psicologia em 2003, pelo livro O direito à verdade: cartas para uma criança
RESUMO
O início da pandemia, além da angústia pela possibilidade de adoecer e até de morrer, se constitui em uma crise intensa pela mudança de paradigmas do cotidiano familiar. O lar passa a ser simultaneamente home office, escola, playground etc. Toda essa reformulação não é fácil de metabolizar. Nesse pandemônio, surgem outras pandemias associadas, como o aumento da ansiedade, o isolamento social, a falta de empatia dos governantes para com a dor dos cidadãos, o desencontro com a ciência e a criação de mitos e utopias. Com respeito a essas utopias de cunho maníaco, existe a noção de que o pós-pandemia significará o surgimento de um "novo normal", como se uma transformação quase mágica, pela experiência dolorosa, fosse mudar o homem para melhor. A história nos mostra que não é bem assim que as coisas funcionam.
Palavras-chave: pandemia, trauma, angústia, banalização da morte, crises, utopias
ABSTRACT
The beginning of the pandemic, besides bringing anxiety due to the possibility of getting sick and dying, happened in the middle of an intense crisis for the change on paradigms in the day-by-day of all families. Homes become work places, school areas, play areas, etc. All these changes are not easy to be accepted. During this pandemonium, other pandemics arise, such as more anxiety, social isolation and the lack of empathy by the government towards the people's suffering, science disagreements as well as the surge or myths and utopias. About these utopias connected to maniac nature, there is the idea that the post-pandemic phase will be the 'new normal'. As if a kind of magic change caused by painful experience, could change people for the better. History shows us that that's not exactly how things work.
Keywords: pandemic, trauma, anxiety, trivialization of death, crisis, utopia
RESUMEN
El inicio de la pandemia, además de la angustia por la posibilidad de quedarse enfermo o incluso morir, se convierte en una crisis intensa por el cambio de paradigma del mundo familiar. El hogar pasa a ser simultáneamente home office, escuela, playground etc. Toda esa reformulación no se metaboliza fácilmente. Em ese pandemonio, surgen otras pandemias asociadas con el aumento de la ansiedad, el aislamiento social y la falta de empatía de los gobernantes hacia el dolor de los ciudadanos, el desencuentro con la ciencia y la creación de mitos y utopías. Con respecto a esas utopías de índole maligna, existe la noción de que la post pandemia significará un ''nuevo normal''. Como si un cambio casi mágico por la experiencia dolorosa, fuera a cambiar el hombre para mejor. La historia, por el contrario, nos muestra que las cosas no funcionan así.
Palabras clave: pandemia, trauma, angustia, banalización de la muerte, crisis y utopías
RÉSUMÉ
Le début de la pandémie, outre l'angoisse face à la possibilité de devenir malade et même de mourir, se constitue en une crise intense, en raison du changement de paradigme du quotidien familier. Le foyer devient en même temps home office, école, playground, etc. Toute cette reformulation n'est pas facile à métaboliser. Dans ce pandémonium, d'autres pandémies associées surgissent, telles que l'augmentation de l'anxiété, l'isolement social et le manque d'empathie de la part des gouvernants vis-à-vis la douleur des citoyens, le désaccord avec la science et la création de mites et d'utopies. On peut penser à la notion que la postpandémie signifiera l'apparition du « nouveau normal, » dans ce qui concerne ces utopies d'origine maniaque. L'homme changerait et deviendrait meilleur comme dans un changement presque magique, en raison de l'expérience douloureuse. L'histoire nous montre que ce n'est pas tout à fait comme ça que les choses fonctionnent.
Mots-clés: pandémie, trauma, angoisse, banalisation de la morte, crises et utopies
Introdução
Há meses, o mundo vem enfrentando um inimigo invisível e silencioso, mas estrondoso nas consequências. É uma guerra sem bombas, sem armas de destruição em massa ou mortes nas ruas. As mortes se dão nas utis, em pacientes graves e intubados. No momento da escrita deste texto, as informações são de mais de 75 mil mortos e mais de 2 milhões de casos. Não sabemos ainda a quanto chegarão essas terríveis cifras.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e muitas outras instituições científicas recomendam o isolamento social e o uso de máscaras e álcool em gel. A nossa esperança está na fabricação de vacinas que imunizem as pessoas de todo o planeta.
Elisabeth Roudinesco (2020) afirma que sobreviver é a prioridade quando se fala de pandemia. Segundo a autora, quando se enfrenta essa questão de vida ou morte, não se pode pensar exclusivamente nas perdas transitórias (férias, viagens, encontros ou compras); não que essas atividades não sejam importantes, mas podem ser adiadas.
Não acreditamos que essa situação seja um castigo divino, mas sim que pode e deve estar relacionada ao descuido com o meio ambiente - por exemplo, o aquecimento global, os desmatamentos etc.
Roudinesco, depois de dizer que a pandemia está ligada à pulsão de morte, reafirma que a prioridade máxima é não morrer desse maldito vírus. Certamente, estamos enfrentando uma crise imprevisível, que engloba a morte antecipada por doença grave e as mudanças abruptas de paradigma.
Pandemônio social
A crise é uma conjuntura decisiva de transição, na qual padrões conhecidos, constantes e por isso tranquilizadores são rapidamente substituídos por novos, constituindo-se em algo estranho ou estrangeiro, e sabemos que o ser humano tem enormes dificuldades em lidar com o desconhecido. O resultado é o aparecimento de angústia. Essa situação também pode ser definida como a manifestação física ou mental que coexiste com a ruptura do equilíbrio e o sentimento caótico sobre o futuro.
A pandemia viral traz embutidas outras pandemias. Podemos mencionar a situação traumática social e familiar, o isolamento social, as novas rotinas, a banalização da morte, o desencontro entre os governantes e a ciência, algumas atitudes públicas de falta de empatia, a perda de valores sociais como ética, verdade e humanismo, e a criação de mitos e utopias ("novo normal").
A pandemia-mor, junto às outras pandemias, cria o período que denominei pandemônio social, que mostra sua cara no tumulto, na balbúrdia e na confusão generalizada.
Pandemia e família
Vamos relacionar este período com as famílias contemporâneas. De que família estamos falando? Bem antes do aparecimento da covid-19, existiam duas linhas bem definidas como resposta a essa pergunta.
Considera que a família mais sólida em seus vínculos intersubjetivos (família nuclear) é a base mais segura para os jovens. Reaparece a solidariedade intergeracional - ajuda financeira aos mais jovens pelos mais maduros -, com maior tempo de permanência dos jovens no lar paterno (adolescência tardia).
Pensa que todo o anterior seria uma reação sintomática da profunda crise da família moderna, com aumento de rupturas nos casais, de famílias reconstituídas, monoparentais ou homoafetivas etc. A imagem do pai estaria em declínio, com renúncia à função educativa, por exemplo.
Ante essas visões extremistas da família, em 2002, no livro A família em desordem, Roudinesco ofereceu uma opinião mais equilibrada:
Para aqueles que temem mais uma vez sua destruição ou sua dissolução, objetamos, em contrapartida, que a família contemporânea, horizontal e em "redes", vem se comportando bem. ... Finalmente, para os pessimistas que pensam que a civilização corre o risco de ser engolida por clones, bárbaros bissexuais ou delinquentes da periferia, concebidos por pais desvairados e mães errantes, observamos que essas desordens não são novas - mesmo que se manifestem de forma inédita -, e sobretudo que não impedem que a família seja atualmente reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. (2002/2003, pp. 197-198)
Enfoque da família brasileira
Vamos abordar agora a família brasileira, após a introdução geral necessária para a discussão. Colocaremos o foco no seguinte aspecto: o funcionamento das famílias no pré-pandemia e durante a pandemia. Antes da pandemia, observávamos algumas situações ingratas, como o abandono e o consumo. O abandono se relaciona com o tempo que os pais passavam trabalhando fora de casa, por motivos econômicos e profissionais e pela cultura imperante, e com o fato de que, mesmo quando estavam em casa, ficavam mais atentos a outras questões do que aos próprios filhos. Consideramos a ausência real menos traumática que a ausência de um pai quando presente. Temos de refletir que a solidão não significa somente não ter companhia. Fundamentalmente significa não ser valorizado, não ser compreendido e não ser respeitado no direito de viver a própria infância e no direito à verdade. Assim, a solidão, a desqualificação e a alienação surgem quando não se dá valor e não se escutam as expectativas, dores, emoções e sofrimentos da criança. O aumento do consumo pode ser explicado como uma compensação pelos desencontros, algo reforçado pela mídia mercadológica.
De repente, sem aviso prévio, o convívio mudou para 24 horas por dia, e essa mudança veio acompanhada por outras situações. Primeiramente podemos citar a crise pelo choque da rapidez com que tudo aconteceu. Tivemos de nos adaptar ao home office, e logo veio a dificuldade de marcar as fronteiras entre o trabalho em casa, as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. Alguma confusão iria aparecer. Não é desqualificação nem demérito. Nem todo mundo tem capacidade de resiliência e de reorganização durante uma crise.
Noções de trauma e angústia
Podemos acrescentar às angústias inerentes a possibilidade de adoecer ou mesmo de morrer.
Abordaremos então as noções de trauma e angústia. O trauma psíquico, segundo Laplanche e Pontalis no Vocabulário da psicanálise, é um "acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica" (1967/1991, p. 522). Há então um choque violento com aumento de excitação, com efração da camada psíquica protetora que filtra quantidades toleráveis de excitação, o que tem consequência sobre o conjunto da organização.
É possível inferir que haverá consequências pós-traumáticas (pós- -pandêmicas) importantes.
Em 1926, a noção de trauma segundo Freud assume valor na teoria da angústia (neurose traumática). De acordo com o autor, o ego, ao desencadear o sinal de angústia, procura ser "submerso" pelo aparecimento de angústia automática (noção de desamparo).
Na angústia real, existe um perigo real externo, que constitui para o sujeito uma ameaça real. Essa é a angústia da pandemia. Claro que há uma relação bidirecional entre o acontecimento e a suscetibilidade do sujeito (as defesas).
As famílias que atendo costumam ouvir alguns conceitos nos quais acredito, como o de que "entre o ideal e o possível, devemos fazer o (melhor) possível". Também mostro aos pais que, nesta situação estressante, pode haver momentos de impaciência verbal, usando-se um tom de voz em decibéis mais altos. Relembro a eles que são terráqueos (e não anjos) e que reagem como podem. As crianças precisam de pais humanos, e por isso às vezes erráticos, e não de super-heróis que podem ser desmascarados a qualquer momento, gerando-se mais problemas na relação. Surgem igualmente defesas como desvio de atenção, recalque, repressão, esquecimento e atitudes de descaso.
Tem-se observado ainda, como consequência desse convívio exacerbado, o aumento das situações de violência. Podemos pensar que na enorme maioria dos casos a violência já existia, porém agora ficou mais escancarada e frequente. Precisamos nos deter nas famílias de baixa renda que vivem em comunidades que não têm água nem sistema de esgoto, muito menos máscaras ou álcool em gel. Essa situação também é certamente um tipo de violência. Nesta pandemia, não é necessária uma análise social microscópica para perceber que as condições de vida têm um papel muito importante (antes da pandemia também!). Só acrescentamos que um barraco de 20 metros quadrados, onde convivem muitas pessoas, aumenta os riscos da doença e da violência - em um ambiente familiar maior, melhoram-se as condições sanitárias, mas ainda assim pode ocorrer a violência.
Novamente nos apoiamos em Roudinesco, que afirma: "A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá pôr termo a isso" (2016).
Utopias de cunho maníaco
Com uma frequência exasperante aparece a noção de que o pós- -pandemia significará o surgimento de um "novo normal", como se uma transformação quase mágica, pela experiência dolorosa, fosse mudar o homem para melhor.
Há séculos a história mostra que a passagem de tempos sociais terríveis, como a peste negra, a gripe espanhola, as duas guerras mundiais, o genocídio nazista, a fome na África, o ebola e a aids, não fez muita diferença nas sociedades que atravessaram essas experiências. Fernando Savater (2020), filósofo espanhol contemporâneo, em entrevista ao jornal argentino La Nación, opina que os seres humanos continuarão os mesmos, e alguns serão até piores. A pandemia não constituirá um ponto de inflexão para a humanidade; nada mudará em profundidade, nem para melhor, como alguns afirmam. Apesar dessas vivências, não podemos tirar o valor da utopia.
Ela está no horizonte - diz Fernando Birri -. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para caminhar. (Galeano, 2007, p. 310)
Aparecimento dos mitos pandêmicos
Cabe agora falar de algo que está acontecendo no Brasil em relação à criação de um mito. O mito é uma ideia falsa que disfarça o que não corresponde à realidade; uma pessoa valorizada pela imaginação popular; algo fictício, irreal ou fabulado. De certa forma, é perigoso pelo negacionismo, que vem junto com a deturpação da ciência. De início, era apenas uma gripezinha, mas que se tornou mortal para milhares de brasileiros. Decidiu-se usar medicação que as autoridades sanitárias (após verificação de testes) desaconselharam, por não serem úteis contra o vírus e por oferecerem efeitos colaterais para o usuário. Foram assumidas posturas xenófobas, criando-se assim teorias da conspiração (sem provas). Tudo isso mostra o problema dos limites de quem dirige um país. Em geral temos uma má relação com as fronteiras, e sem reflexão sobre o seu significado, elas acabam sendo vistas como obstáculos, quando na realidade o limite é o que dá à luz o pensamento. Definitivamente, vivemos entre a esperança e a incerteza, e entre o desejo e o medo.
Sociedade líquido-moderna
Segundo Zygmunt Bauman (2011), observam-se mudanças e até o abandono dos valores civilizatórios, como a ética, a verdade, a justiça e a liberdade, os quais ficam absolutamente banalizados. O autor descreve com muita precisão a sociedade líquido-moderna, que é outro empecilho para as famílias que estão enfrentando os efeitos da pandemia. Precisamos de alicerces onde não existe alicerce algum. Hoje o velho está morrendo, e o novo ainda não nasceu. Com isso aparece uma crise em que há dúvidas, dificuldades de escolha e paralisias. O consumo desenfreado valoriza o ter em detrimento do ser. O egoísmo e os privilégios brilham intensamente. Nessa sociedade inóspita, seria necessário o esforço de governos e de cada cidadão para tentar uma mudança. Todos, governantes e cidadãos, sabem o que é necessário para sair deste atoleiro social. Só falta disposição e disponibilidade para pôr em prática a teoria. Se concordarmos que o nosso mundo está fora de ordem, teremos de lembrar que não somos "o que os outros fazem de nós", mas "o que fazemos com aquilo que os outros fazem de nós" (Sartre, citado por Bauman, 2013).
Referências
Bauman, Z. (2011). 44 cartas do mundo líquido moderno (V. Pereira, Trad.). Zahar. [ Links ]
Bauman, Z. (2013). Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo (C. A. Medeiros, Trad.). Zahar. https://amzn.to/37hOPLA [ Links ]
Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 17, pp. 13-123). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1926) [ Links ]
Galeano, E. (2007). As palavras andantes (E. Nepomuceno, Trad.). L&PM. [ Links ]
Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1991). Vocabulário da psicanálise (P. Tamen, Trad.). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1967) [ Links ]
Roudinesco, E. (2003). A família em desordem (A. Telles, Trad.). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 2002) [ Links ]
Roudinesco, E. (2016, 1º de agosto). A derrota do sujeito. Fronteiras do Pensamento. https://bit.ly/3pNeYuj [ Links ]
Roudinesco, E. (2020, 1.º de julho). Psicanálise em tempos de pandemia [Entrevista com Hector Pavon]. Fronteiras do Pensamento. https://bit.ly/38TYdHP [ Links ]
Savater, F. (2020). Coronavirus. Fernando Savater: "Vamos a seguir siendo lo mismo, pero un poco peor" [Entrevista com Hugo Alconada Mon]. La Nación. https://bit.ly/3fJsCKA [ Links ]
Correspondência:
Leonardo Posternak
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Tel.: 11 3023-5296
posternak@uol.com.br
Recebido em 20/7/2020
Aceito em 6/10/2020