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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020
RESENHA
Anotando a China: viagem psicanalítica ao Oriente
Luiz Moreno Guimarães Reino
Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Autor: Fabio Herrmann
Edição crítica: Fernanda Sofio
Editora: Unifesp, 2019, 200 p.
Resenhado por: Luiz Moreno Guimarães Reino
PREPARATIVOS DE VIAGEM. Os fragmentos que seguem talvez componham uma resenha, mas isso não os impede de ser o que são: preparativos de viagem. Anseiam auxiliar o leitor a arrumar a mala para uma passagem pelas brumas e pelos tempos do Oriente. Não resumem o argumento central, nem comentam a tese defendida, até porque não os há. Anotando a China é um livro de fotos e notas, que propõe uma viagem psicanalítica ao Oriente e que solicita apenas a companhia do leitor. Nele Fabio Herrmann leva adiante uma das propostas centrais da Teoria dos Campos: a ampliação temática do horizonte da Psicanálise, a busca pelo lá-fora, pelo Oriente psicanalítico.
A ÚLTIMA PRODUÇÃO DE FABIO. Leda Herrmann nos conta, no prefácio, as circunstâncias em que o trabalho foi feito. Em junho de 2005, o casal iniciou uma viagem de 40 dias, cujo roteiro incluía uma estadia primeira no Japão e depois um período maior na China. Aconteceu, porém, que a viagem, já bastante adiantada, foi interrompida por sintomas que acometeram Fabio. Era grave, exigindo imediato retorno, e em julho de 2006 a doença que ali se anunciava o conduziria ao falecimento. Nesse período de um ano de tratamento, Fabio cuidou das fotos e das anotações da viagem: selecionou as imagens e as transformou em grafismos, retomou as notas e as reescreveu. Enfim, e em fim, elaborou um livro que não chegou a ser publicado em vida.
"O livro seria uma despedida", escreve Leda, "e percorreria pontos-chave de seu pensamento psicanalítico em uma nova linguagem, introduzindo imagens que entremeiam textos" (p. 8). Marcam suas páginas a tenacidade de um autor que, mesmo doente, e mesmo já tendo escrito uma obra original (para dizer o mínimo), se empenha em dar rosto a sua produção final. Mas Fabio era assim mesmo: se dedicava à escrita todos os dias, e seus últimos não haveriam de ser de outro jeito.
FEITO COLETIVO. Como parte de seu projeto de pós-doutorado, Fernanda Sofio preparou uma edição crítica de Anotando a China. O miolo é a composição de Fabio, antecedida pelo prefácio de Leda Herrmann e pela introdução, "A China fala", da própria Fernanda, e sucedida por três textos-comentários: "Futuro do pretérito", de Renato Tardivo, "Fotos são lugares de memória", de Lilia Moritz Schwarcz, e "Anotando a China", de Pedro Meira Monteiro - tudo isso impresso em um bom projeto gráfico, cuidadoso com a qualidade das imagens e a disposição dos textos, resultando num feito coletivo: não só a boa apresentação do material de Fabio, mas também o início de seu estudo.
FOTOGRAFIA PSICANALÍTICA. É esclarecedor como Fernanda Sofio se refere à produção de Fabio: "É uma obra única, uma espécie de 'caso clínico', sendo o próprio livro resultado da relação entre o psicanalista e sua 'paciente-China', que vai se desenvolvendo como fotografia e poesia" (p. 21). Convenhamos que não só o objeto é consideravelmente singular, uma sorte de caso clínico de um país, como a maneira de dispô-lo também, com grafismos e poemas. Requer no mínimo que se altere a maneira de operar a ruptura de campo. É o que ocorre. A ruptura sobrevém pela fina tensão que se estabelece entre uma foto e outra, entre um verso e outro, ou entre foto e anotação.
Uma noção, formulada por Fernanda na introdução, ajuda a absorver tal forma de fazer psicanálise. Metarrepresentação é a representação que perdeu sua função defensiva e já não se ocupa mais em retirar os andaimes (do real e do desejo) que constituem nosso mundo (da realidade e da identidade); pelo contrário, a metarrepresentação visa deixar que surjam os andaimes.
A TRANÇA. Há três linhas de força que percorrem o livro: o caso clínico China, a despedida do autor e a extensão da estilística psicanalítica. É possível reconhecê-las, mas não é possível separá-las. Fascinante é justamente como as três linhas geram uma resultante única, em que ao mesmo tempo o autor analisa, se despede e se amplia.
ANTECEDENTE. Algumas das anotações e fotografias já vieram a público numa homenagem póstuma feita em 2006. Anotando a China: viagem psicanalítica ao Oriente é também um vídeo que, em pouco mais de 20 minutos, realiza um harmônico tributo. Há algo de Teoria dos Campos ali, e não só por trazer o material produzido pelo criador. Arriscaria dizer que o efeito provém da força expressiva da leitura (de João Paulo Lorenzon Schaffa) combinada à suavidade da direção (de Laura Taffarel Faerman); juntos, realizaram uma apropriação artística do material. A força combinada (e não contrastada) com a suavidade - eis a técnica da heurística: "Remaining soft and weak is powerfulness"(Lao Zi, 1993, p. 72). Mais apropriações artísticas como essa pedem para ser feitas.
ORIENTE-SE. Sem pressa, permita que surja o estado de contemplação reflexiva. Prepare um chá, e na preparação já terá iniciado a leitura. Fabio não o compôs em um jato. Nem o leia em uma sentada. Bem o lê quem se limita a uma ou duas anotações por vez, acompanhadas de um punhadinho de fotos, e passa então a refletir sobre elas. Tempere com o tempo. Ao que poderá sentir a potência oculta na simplicidade - do livro e do chá. O grafismo assim se tornará infusão da imagem; e a anotação, cerâmica verbal.
CONCENTRAÇÕES. Aos leitores que conhecem seu pensamento, Fabio deixou uma série de pequenas surpresas. "Esclarecido é quem percebe miudezas" (Laozi, 2016, p. 379). Logo notarão que, em duas ou três linhas, o autor resume, com concisão poética, outras análises suas de várias páginas.
Isso se dá, por exemplo, quando dois versos - "Destruí a casa de meus pais,/ Para fundar seu culto" (Herrmann, 2019, p. 52) - concentram a ideia de "Des/Obede/Serás":1 serás no futuro aquilo a que desobedeceres hoje. Ou quando uma história - a do Pavilhão Dourado - contribui para a renovação da psicopatologia psicanalítica,2 entendida não como a inclusão em conjuntos gerais (nosografia), mas como a intimidade literária da clínica psicanalítica: a busca em tempo longo pela absoluta especificidade. Ou ainda quando alguns versinhos - "Quem?/ Eu?/ Mas quem de mim?" (p. 90) - absorvem a teoria dos múltiplos eus.3 Entre outras leves alusões.
Despediu-se com a lembrança poética da própria obra.
FICÇÃO FREUDIANA. Na noção de ficção freudiana, conserva-se um convite. Caro colega psicanalista, se vamos retomar algo da clínica de Freud (além do uso do divã), por que não decidimos por retomar o gesto heurístico em vez das teorias que dele derivaram? A proposta é simples (o deslocamento da co-memoração), mas com consequências monstruosas. Uma delas é o reposicionamento do campo conceitual. A base da Teoria dos Campos é retirar a teoria da base, não por ser avessa à teorização, mas por querer saber alguma coisa do movimento (logicamente anterior) do qual nascem as teorias. Nesse sentido, a condição primeira da ficção freudiana é ser um exercício de heurística psicanalítica sem a centralidade dos conceitos. Estes podem até aparecer, mas depois, e servem apenas para demonstrar como a ficção alterou a teoria consagrada. Crucial, isto sim, é a prática do método da psicanálise de maneira destilada, e para que isso ocorra basta que o revelado (a teoria) não atrapalhe o revelar (o método).
Dizia Fabio que o avô da Teoria dos Campos, é claro, foi Freud, mas que o bisavô foi Nietzsche. Dizia sem muito explicar o legado transmitido nessa árvore genealógica. Uma possível herança, vinda do bisavô, seria o esforço em criar um saber que pudesse prescindir de noções, uma filosofia sem as garras dos conceitos. E se estes porventura surgem, voltam a ser o que eram: palavras dos homens, tão comuns e enigmáticas como qualquer outra palavra. A Teoria dos Campos vai por aí. Para ela, a teoria está para o analista tal como o passado está para o paciente; ambos vão ser ressignificados no decorrer de uma análise.
Diante de um problema psicanalítico, tente responder com ficção freudiana. Em O divã a passeio (Herrmann, 2001b), escreve mais ou menos assim. Imagine que está nadando em alto-mar, em Fernando de Noronha (ou em qualquer outro lugar), quando vê, à meia distância e à flor d'água, uma barbatana em crescente assustador - pronto: a análise dessa sensação é suficiente para tecer um bom estudo sobre a paranoia, que tende a ser mais proveitoso do que o recenseamento do termo na obra de um grande autor psicanalítico; sobretudo se a barbatana é de um golfinho, que não é um tubarão, mas adora brincar de pegador. "Inventar uma ficção acerca de algo apreende frequentemente melhor esse algo, que a repetição do conhecimento comum que sobre ele temos" (Herrmann, 1999, p. 162). A ficção opõe-se à repetição, e é um recurso clínico e literário para rompê-la.
Anotando a China agudiza a ficção freudiana. Além de estender sua estilística (com a fotografia e a poesia), há a brutal ausência de qualquer teorização. Nele não há teoria de partida nem de chegada - só há ruptura. Daí ser comum, durante a leitura, surgir a sensação: "Opa! Ocorreu algo de analítico aqui, ainda que eu não saiba dizer o que foi".
TAOVEZ. Considero o livro em apreço a continuação das duas páginas que concluem a trilogia Andaimes do real (Herrmann, 2006, pp. 190-191). Ali também o autor analisa, se despede e se amplia... indo para o Oriente. Parte da seguinte questão: como representar a ruptura de campo? - isto é, como representar aquilo que põe em crise a representação? Inventa então um encontro ficcional de dois autores tão díspares que dali poderia surgir alguma resposta. A meu ver, Fabio na China tornou-se esse encontro.
Tomando em consideração a maneira como o autor-em-fim olhou para a própria obra, fiz um resumo dessas duas páginas finais - esquemático, é verdade, mas levemente poético, taovez.
HOMERO | LAO TZÉ |
A autoria discutível que criou o mundo ocidental de representações; | A autoria discutível que criou o caminho para deixar o mundo para trás; |
ao nomear a sequência geradora (uma ação gera outra, que gera outra, que gera...); | ao desnomear o campo gerador (as coisas nascem de Algo, e o Algo, do Nada); |
ao projetar a visibilidade total do mundo; | ao sublimar o vazio e a contradição livremente assumida; |
ao manter a clareza meridiana votada ao delírio; | ao conservar a penumbra contemplativa votada à inação; |
por fim, forjou o escudo representacional e a pausa para a representação: | por fim, delineou o manual antidelirante e a pausa para a crise da representação: |
Mímese. | Tao. |
Referências
Herrmann, F. (1999). A psique e o eu. Hepsyché [ Links ].
Herrmann, F. (2001a). Andaimes do real: psicanálise do quotidiano. Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1985) [ Links ]
Herrmann, F. (2001b). O divã a passeio: à procura da psicanálise onde não parece estar. Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, F. (2006). Andaimes do real: psicanálise da crença. Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, F. (2015). Sobre os fundamentos da psicanálise. Karnac. [ Links ]
Laozi (1993). The book of Lao Zi (H. Guanghu et al., Trads.). Foreign Languages Press. [ Links ]
Laozi (2016). Dao De Jing (G. Sinedino, Trad.). Unesp. [ Links ]
Correspondência:
Luiz Moreno Guimarães Reino
Alameda Joaquim Eugênio de Lima, 881, conj. 1007
01403-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 97159-6180
luizmorenog@gmail.com
1 Capítulo 6 de Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, publicado inicialmente em 1985.
2 Esforço constante da Teoria dos Campos, presente em diversos textos, principalmente em Sobre os fundamentos da psicanálise, de 2015.
3 Teoria criada ao longo de A psique e o eu, de 1999.