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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020
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O eu e o mundo: por uma ética para o século XXI1
The self and the world: for ethics in the 21st century
El yo y el mundo: por una ética para el siglo XXI
Le moi et le monde : pour une éthique pour le XXIe siècle
Jorge Luiz Abrahão
Coordenador do Programa Cidades Sustentáveis. Integrante do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030. Membro do conselho do Global Compact da Organização das Nações Unidas (ONU)
RESUMO
O autor propõe tratar de uma ética para o século XXI. Ressalta a contradição entre as conquistas alcançadas nos últimos 100 anos - como o aumento da expectativa de vida, a diminuição da mortalidade infantil, o aumento da produção de riqueza e o desenvolvimento tecnológico - e a difusão dessas conquistas. Houve avanço na capacidade de gerar riqueza, mas não na capacidade de distribuí-la. Reconhece que avançamos em série, no desenvolvimento econômico, nas condições do trabalho e no cuidado com o ambiente, sem, no entanto, termos uma visão integrada na qual o modo de produção se torne sustentável. Destaca o impacto ambiental deletério causado por um modo de desenvolvimento que não se coloca limites. Propõe, por fim, rever o papel e o perfil das lideranças governamentais, de maneira a levar o homem a compreender a relação entre produção, preservação da natureza e distribuição de riqueza.
Palavras-chave: sustentabilidade, ética, distribuição de riqueza
ABSTRACT
This work aims at covering ethics for the 21st century. It highlights the contradiction between achievements in the last one hundred years, such as the increase of life expectancy, decrease of infant mortality rate, higher production of wealth and the technological development besides its distribution among people and population. There has been an improvement on the ability to create wealth, but not on the way it is distributed. It recognizes that we have progressed as a group, watching the economic development, work conditions and the environment. However, we haven't achieved an integrated vision on sustainable production. It also points out the detrimental impact on the environmental caused by the way development is happening, without limit control. It proposes that governmental leadership roles and profile are reviewed so that people understand the relation among production, nature preservation and wealth distribution.
Keywords: sustainability, ethics, wealth distribution
RESUMEN
El trabajo propone tratar de una ética para el siglo XXI. Destaca la contradicción entre las conquistas alcanzadas en los últimos cien años, tales como el aumento de la esperanza de vida, la disminución de la mortalidad infantil, el aumento de la producción de riqueza y del desarrollo tecnológico, y, su distribución entre las personas. Hubo un avance en la capacidad de generar riqueza, pero no en la capacidad de distribuirla. Reconoce que avanzamos en serie cuidando del desarrollo económico, de las condiciones de trabajo y con el cuidado del ambiente, no obstante, sin una visión integrada, en la que el modo de producción sea sostenible. Destaca el impacto ambiental negativo generado por el desarrollo sin límites. Propone finalmente revisar el papel y el perfil de los líderes gubernamentales de manera que faciliten al hombre a comprender la relación entre producción, preservación de la naturaleza y distribución de riqueza.
Palabras clave: sustentabilidad, ética, distribución de riqueza
RÉSUMÉ
L'auteur propose de discuter d'une éthique pour le XXIe siècle. Il souligne la contradiction entre les progrès atteints pendant les dernières cent ans - telles que l'augmentation de l'espérance de vie, la diminution de la mortalité infantile, l'augmentation de la production de richesses et le développement technologique - et la diffusion de ces réussites. Il y a eu des avancements dans la capacité de générer des richesses, mas pas dans la capacité de les distribuer. Il reconnaît que nous progressons en série, dans le développement économique, dans les conditions du travail et dans la protection de l'environnement, sans pourtant en avoir une vision intégrée dont le processus de production devienne durable. Il met en relief l'impact environnemental délétère provoqué par un mode de développement qui n'établit pas de limites. Pour finir, il propose de revoir le rôle et le profil des responsables gouvernementaux, de façon à mener l'homme à comprendre le rapport entre la production, la préservation de la nature et la répartition des richesses.
Mots-clés: développement durable, éthique, répartition de richesses
Para alcançar alguns dos desafios éticos que temos no século XXI, é importante um olhar sobre nossa trajetória como sociedade desde que Freud escreveu Psicologia das massas e análise do eu, há mais de 100 anos. De alguma maneira, o ambiente que nos envolveu no decorrer desse período atravessa a todos, influenciando-nos individual e coletivamente.
Esse tempo foi pródigo em avanços. Pode haver um olhar de abundância que glorifica as conquistas: a expectativa de vida dobrou nesses 100 anos (1920-2020), a mortalidade infantil foi reduzida em aproximadamente quatro vezes, e a riqueza cresceu exponencialmente. Isso sem falar nos avanços inquestionáveis da tecnologia e da comunicação.
Por outro lado, pode haver um olhar de escassez, que ressalta os problemas. A desigualdade no mundo nunca foi tão grande e tão evidente. A pobreza é dominante no planeta, e especialmente vergonhosa no Brasil. O impacto ambiental do nosso modelo de desenvolvimento, que não coloca limites para o crescimento econômico, faz do enfrentamento ao aquecimento global um tema urgente para nossa sociedade. Nunca tivemos tantas pessoas acometidas por transtornos mentais, outro enorme desafio. As armas nucleares são um risco à nossa existência.
Uma frase dita por cientistas resume nosso comportamento: desenvolvemos muito a habilidade de fazer, e muito pouco a capacidade de compreender. Somos diuturnamente estimulados a fazer, e não paramos para compreender o impacto de nosso modelo de produção e consumo. Esse fato está nos levando aos limites sociais e ambientais.
Na busca dessa compreensão, houve avanços. Sempre tivemos uma visão em série das etapas do desenvolvimento. No início da Revolução Industrial, por mais de um século, nossos esforços se voltaram exclusivamente para a economia, para o resultado financeiro. A preocupação com as questões sociais, a baixa remuneração e a exagerada jornada de trabalho surgiu somente no início do século XX. E as questões ambientais só emergiram na década de 1960. Portanto, avançamos em série, sem uma visão integrada dos processos.
Um olhar mais abrangente e complexo de todo o contexto só surgiu a partir de uma conferência em Estocolmo, Suécia, no ano de 1972. Depois disso, no Rio de Janeiro, em 1992, na Eco-92, foram integrados os temas ambientais e econômicos. E na Rio+20, em 2012, foram plantadas as bases do que se tornaria a Agenda 2030, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ods), anunciados pela Organização das Nações Unidas (onu) em setembro de 2015.
Tal trajetória possibilitou a construção da compreensão e da integração dos nossos desafios. Essa rara agenda comum funciona como diretriz para as nações e a sociedade em geral. Mais de 190 países assinaram a Agenda 2030, comprometendo-se a estabelecer ações para alcançar os ODS em 2030 e com isso encaminhar os principais desafios da humanidade.
Os ODS são um marco, um plano de desenvolvimento para os 15 anos seguintes. Esse momento se compara ao do pós-guerra, quando a ONU surgiu com a missão de evitar novos conflitos. A articulação internacional dos ODS teve significativa participação da diplomacia brasileira, reforçando-se a importância do multilateralismo em um mundo com problemas que não se limitam mais às fronteiras físicas dos países. Apesar de extremamente abrangente, a Agenda 2030 tem um mote simples, que a unifica: "Não deixar ninguém para trás".
No mesmo ano de 2015, outra articulação foi construída, voltada para o enfrentamento da mudança climática: o Acordo de Paris. Este surge para pautar as ações dos governos, das empresas e da sociedade civil, a fim de não deixar o planeta aquecer mais de 2°C até 2100. Para tanto, é necessário zerar as emissões até 2050, e estamos atrasados nessa agenda. Se não conseguirmos evitar o aquecimento, surgirão problemas de desequilíbrios incontroláveis, com consequências trágicas para a humanidade, segundo previsão dos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Em 2015, quando foram lançados os ODS na ONU, o então embaixador do Egito proferiu uma frase marcante e que dá a medida da importância daquele momento: "A ambição da Agenda 2030 é de fazermos em 15 anos o que não conseguimos em 10 mil anos, desde que deixamos de ser nômades e passamos a viver em cidades".
Mas, para que essa agenda avance, é fundamental que tenhamos recursos para investir. Estima-se que tais compromissos necessitem de, no mínimo, 3 trilhões de dólares ao ano durante esses 15 anos. A ONU criou um fundo com 100 bilhões de dólares - 1/30 do que seria necessário para atender os países. Para que se tenha noção, somente a indústria bélica no mundo investe 2 trilhões de dólares por ano. Essa redefinição de prioridades ainda não fomos capazes de fazer.
Também é importante lembrar que a riqueza no mundo é estimada em 300 trilhões de dólares. Portanto, o investimento em uma agenda que resolveria os problemas essenciais da humanidade é da ordem de 1% da riqueza total, concentrada na mão de muito poucos, os super-ricos do planeta. Sobram recursos, mas falta coragem para acioná-los.
A pandemia só veio comprovar toda a fragilidade de nosso modelo e a necessidade dessas agendas. As mortes em países como Brasil e Estados Unidos ocorreram majoritariamente na população mais vulnerável. Os óbitos provocados pelo coronavírus tiveram um recorte social e racial. No Brasil a maior comorbidade foi o cep - o local onde se vive -, e os números atestam essa realidade que precisamos enfrentar.
Diante desse contexto, o desafio de combater a desigualdade é prioritário. Fomos capazes de gerar riquezas, mas incapazes de distribuí-las. O Brasil é uma das 10 economias do mundo, mas somos por outro lado um dos 10 países mais desiguais do planeta. A desigualdade provoca desconforto social, frustração, violência, e por isso todas as sociedades deveriam enfrentá-la como prioridade.
Além disso, precisamos lembrar o que Silvio Almeida diz: "Não há democracia se não enfrentarmos o racismo". O racismo vem se agravando, assim como a violência de gênero e a homofobia. Precisamos entender a relevância desses temas para construir uma sociedade mais justa e harmoniosa.
A questão ambiental é muito importante, e o grande desafio é nos entendermos como parte da natureza. A vida nas cidades nos separou, e não nos sentimos mais parte da natureza, encarando-a somente como provedora de recursos. O desafio é nos sentirmos parte dela, como efetivamente somos, preservando as florestas, a biodiversidade, e reconhecendo as necessidades dos povos que cuidam das florestas - indígenas, quilombolas e povos ribeirinhos.
Bruno Latour, um dos mais importantes pensadores da atualidade nessa área, diz que os impactos que geramos como país, ou mesmo como cidades, vão muito além dos nossos limites territoriais. A Dinamarca, por exemplo, somente alcança a excelência em diversos indicadores sociais e de consumo per capita porque tem um quinhão de exploração da natureza em outros países do mundo, o qual não é levado em conta. Essa ação externa ao território, mas que a beneficia, deve ser considerada como impacto do país sobre o planeta, e não só as ações internas.
São Paulo, por sua vez, tem um impacto muito grande na Amazônia, e no Instituto Cidades Sustentáveis há um projeto específico para essa questão. A conexão entre as grandes cidades e a Amazônia precisa ser explicitada. Nosso consumo de carne, madeira, produtos oriundos da soja e manufaturados dependentes do extrativismo impacta diretamente a Amazônia. E as compras públicas do governo também. Um olhar inovador para a questão ambiental é urgente.
A política e a democracia são outro desafio fundamental. As mulheres e a população negra são sub-representadas na política - na Câmara dos Deputados, no Senado, nas assembleias e nas câmaras de vereadores. Os trabalhadores, da mesma forma, são sub-representados. A participação social está longe da necessária para enfrentarmos desafios tão complexos. E a desinformação e a disseminação de fake news nas redes sociais são desafios ligados à política e à qualidade da democracia.
Para o enfrentamento de todas essas questões, precisamos de lideranças. Nossos problemas são globais e não respeitam fronteiras. A pandemia, as mudanças climáticas e a poluição não se circunscrevem às fronteiras físicas. E os nossos atuais líderes não estão conseguindo ampliar o foco e olhar para o planeta como um todo. Na política, a visão limitada das lideranças é um problema.
Os líderes empresariais também não têm visão mais alargada do mundo e da sociedade, preocupados que estão em entregar o maior resultado financeiro no menor tempo possível aos acionistas. Mais do que nunca, é necessário rever o papel e o perfil das nossas lideranças. Poucas são as que pensam o mundo nos dias de hoje: o papa Francisco, o dalai-lama e António Guterres, atual secretário-geral da ONU - um número reduzido para tamanhos desafios.
Todos esses desafios aterrizam nas cidades.
No Instituto Cidades Sustentáveis nosso objetivo é tornar as cidades mais democráticas, justas, inclusivas e verdes. Para tanto, foram criados indicadores que permitem a elaboração de um diagnóstico da cidade nos 17 ODS. Além disso, são feitas pesquisas de percepção que contribuem para a formulação de políticas públicas municipais e mapas da desigualdade, que revelam as diferenças entre os distritos de uma mesma cidade.
Um dos dados que mais impressionam nesses mapas é o indicador de idade média ao morrer em São Paulo. O levantamento de 2020 mostra que há 23 anos de diferença na idade média ao morrer entre dois distritos da cidade: 81 anos no Jardim Paulista, mais rico, e 58 anos no Jardim Ângela, mais pobre. A distância entre esses dois distritos é de 23 quilômetros, e tudo se passa como se perdêssemos um ano de vida a cada quilômetro percorrido entre os distritos.
Como isso é possível na cidade mais rica da América Latina? Que tipo de ética nós temos e o que precisamos para transformar essa realidade? As causas dessa desigualdade podem ser explicadas por uma combinação de fatores: a baixa qualidade nos serviços de saúde, saneamento, habitação e educação, a violência e a mortalidade infantil, formando uma cesta de indicadores lúgubres, que fazem com que a idade média ao morrer seja tão mais baixa nas áreas mais pobres.
A partir dessas ferramentas, estamos buscando comprometer gestores e estimular a participação da sociedade para avançar. E isso é possível. Tenho quase certeza de que podemos avançar. As eleições municipais que ocorreram em várias partes do mundo mostram que são possíveis transformações a partir da política.
Vivemos um processo cíclico, e o desafio atual no Brasil é o de preservar conquistas da sociedade que envolveram muitas gerações. A pandemia de covid-19 só reforçou a importância do Estado, sobretudo em países desiguais como o nosso. Acentuou-se a necessidade de uma renda básica, que gere um patamar mínimo de dignidade para todos, assim como investimentos na saúde, na educação, na ciência e na infraestrutura como mínimos denominadores comuns para almejarmos uma ética do comum, em que o acesso a bens e serviços básicos seja de fato para todos, e não visto como privilégio.
Enquanto o abismo da desigualdade social for experimentado diuturnamente pela população das cidades, será difícil avançarmos em elementos como empatia, comunidade, confiança e, por que não, democracia. É necessário inverter prioridades e buscar recursos com os super-ricos. Esses temas exigem uma coragem dos políticos até hoje não demonstrada.
Correspondência:
Jorge Luiz Abrahão
jorge.abrahao1@gmail.com
Recebido em 9/2/2021
Aceito em 16/2/2021
1 Comunicação apresentada no evento preparatório para o XXVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, organizado por Silvana Rea, diretora científica da SBPSP, em novembro de 2020, com o tema "Por uma ética para o século XXI".