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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

TEMÁTICOS

 

Pensando os impasses nas entrevistas iniciais de análise: defesas, possibilidades de manejo e atendimento online na pandemia

 

Thinking about the impasses in the initial analysis interviews: defenses, possibilities for handling with the situation and online care in the pandemic time

 

Pensando en los obstáculos de las entrevistas iniciales de análisis: defensas, posibilidades de gestión y atención en línea durante la pandemia

 

Penser les impasses dans les entretiens préliminaires d'analyse : défenses, possibilités de gestion et service en ligne en temps de pandémie

 

 

Clara Kislanov da Costa

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo / clarakis@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A autora busca descrever alguns aspectos associados aos impasses presentes nas primeiras entrevistas clínicas realizadas pelo analista com o paciente. A princípio, faz uma breve exposição sobre as entrevistas iniciais. Em seguida, apresenta questões acerca das defesas que os pacientes podem vir a manifestar nesses primeiros contatos. Para pensar sobre tais mecanismos defensivos, explora os conceitos de implicação e reserva do agente cuidador, propostos por Luís Claudio Figueiredo, além de concepções de Thomas Ogden que possibilitam refletir sobre o contato vivo com os pacientes. Na sequência, aborda esses entraves ou dificuldades com que se defrontam os analistas nos primeiros encontros no contexto da pandemia e dos atendimentos online engendrados por essa nova circunstância, imposta a todos.

Palavras-chave: primeiras entrevistas, impasses na análise, defesas, pandemia, atendimento online


ABSTRACT

This article seeks to describe some aspects associated with the impasses present in the first clinical interviews conducted by the analyst with the patient. Initially, a brief explanation about the initial interviews is carried out. Then, questions regarding the defenses that may be manifested by patients in these first contacts are posed. In order to think about such defensive mechanisms, the concepts of implication and reserve of the caregiver agent, proposed by Luís Claudio Figueiredo, are explored, in addition to the statements of Thomas Ogden that enable us to think about the vivid contact with patients. Further on, these same obstacles or difficulties with which analysts are faced in these first encounters are also specifically addressed in the context of the pandemic and the online care engendered by this new circumstance imposed on everyone.

Keywords: first interviews, impasses in analysis, defenses, pandemic, online care


RESUMEN

Este artículo describe aspectos relacionados a los obstáculos presentes en las primeras entrevistas clínicas realizadas por el analista con el paciente. En primer lugar, se describen, en resumen, las entrevistas iniciales. Luego, se plantean preguntas sobre las defensas que pueden manifestar los pacientes en estos primeros contactos. Para pensar en los mecanismos defensivos, se exploran los conceptos de implicación y reserva del agente cuidador. Estos conceptos, propuestos por Luís Claudio Figueiredo, además las declaraciones de Thomas Ogden, nos permiten pensar en el contacto vivo con los pacientes. En un segundo momento, estos mismos obstáculos, dificultades a los que se enfrentan los analistas en estos primeros encuentros, también se abordan específicamente en el contexto de la pandemia y la atención en línea que genera esta nueva circunstancia que se impone a todos.

Palabras clave: primeras entrevistas, obstáculos de análisis, defensas, pandemia, servicio en línea


RÉSUMÉ

Cet article cherche à décrire certains aspects associés aux impasses présentes dans les premiers entretiens cliniques menés par l'analyste, avec le patient. Dans un premier temps, un bref exposé sur ces premiers entretiens est effectué. Ensuite, des questions sont posées sur les défenses que peuvent manifester les patients lors de ces premiers contacts. Et pour réfléchir encore à de tels mécanismes défensifs, les notions d'implication et de réserve de l'agent soignant, proposées par Luís Claudio Figueiredo, sont explorées, en plus des propos de Thomas Ogden, qui permettent de penser le contact en direct avec les patients. Dans un second moment, ces mêmes obstacles ou difficultés rencontrés par les analystes lors de ces premières rencontres sont aussi spécifiquement abordés dans le contexte de la pandémie et des soins en ligne engendrés par cette nouvelle circonstance imposée à tout le monde.

Mots-clés: premiers entretiens, impasses dans l'analyse, défenses, pandémie, service en ligne


 

 

Introdução

Este artigo pretende explorar os impasses encontrados nas primeiras entrevistas clínicas com pacientes que buscam o atendimento psicanalítico. O desejo de escrevê-lo surgiu após a constatação, bastante comum entre psicanalistas, de que alguns pacientes procuram esse primeiro contato, porém não conseguem seguir adiante, isto é, não podem de fato se comprometer com o início efetivo do processo analítico.

Certamente, há vários aspectos associados a essa não continuidade, e o objetivo deste trabalho não é enumerá-los, até mesmo por serem, em grande parte, inconscientes. De todo modo, é possível identificar questões importantes relacionadas às entrevistas iniciais e que devem ser pensadas com atenção.

Antes de passarmos propriamente às dificuldades inerentes aos primeiros encontros entre analista e analisando, é válido assinalarmos o que é esse contato inicial. Em outras palavras, do que estamos falando quando abordamos as entrevistas em psicanálise?

Segundo Françoise Dolto, no prefácio do livro A primeira entrevista em psicanálise, de Maud Mannoni, a especificidade do psicanalista nesse contexto está na sua escuta. Ao adotar um modo particular de escuta, o analista possibilita que o discurso do analisando ganhe um novo sentido, o que significa que o sujeito fala sobre seu sofrimento como o faria com qualquer pessoa, mas tem na figura do analista uma escuta qualificada para ouvir o que diz. "Por meio do discurso que ele escuta, a sua sensibilidade receptiva permite-lhe entender em vários níveis o sentido emocional subjacente ao discurso do paciente" (Dolto, 1979/2004, p. 12).

Freud (1913/1996f) assinalou a importância de aceitar o paciente inicialmente apenas por um período de algumas semanas, a fim de conhecer o caso e, nas palavras dele, determinar se o eventual analisando se adequaria ao tratamento psicanalítico. Essa atitude cautelosa seria motivada também, à época, por questões associadas ao diagnóstico do paciente. Para Freud, não era possível efetivar o tratamento psicanalítico em pacientes que sofressem das chamadas parafrenias. Da mesma forma, também chegou a não recomendá-lo para indivíduos que tivessem mais de 50 anos ou estivessem prestes a completar tal idade (Freud, (1905/1996e).

Nos tempos atuais, sabemos que os psicanalistas atendem casos de psicose, assim como não deixam de atender determinado paciente apenas pela idade dele. No entanto, permanece firme a ideia freudiana de que é necessário um período experimental, a ser vivenciado pelo analista e pelo paciente, para decidirem se continuarão juntos no processo analítico. Isso significa afirmar que tanto o analista quanto o paciente farão essa opção. Neste artigo, iremos nos deter mais nos aspectos associados ao paciente, mas é importante frisar que tal escolha também parte do analista, já que esse último realiza as entrevistas para poder compreender qual é a demanda que lhe está sendo dirigida e avaliar questões como horário e pagamento.

 

Defesas iniciais

O contato entre analista e paciente já se inicia na primeira ligação ou mensagem telefônica, antes mesmo da chegada ao consultório ou do primeiro atendimento online, como vem ocorrendo durante a pandemia. Nessa breve interlocução, alguns pacientes perguntam sobre como funcionam as sessões e questionam especialmente sobre valores. Já é possível observarmos aqui quaisquer defesas e objeções ao tratamento.

Nos primeiros encontros nos deparamos com outras perguntas frequentes, como "Quanto tempo demorará o processo por completo?". O paciente não sabe (e tampouco o analista) se o tratamento se estenderá por meses, anos ou décadas, pois, sabemos bem, a psicanálise trabalha com aspectos inconscientes.

Freud assinala que a descoberta do inconsciente constituiu o terceiro golpe narcísico sofrido pela humanidade: se até então os seres humanos se consideravam completamente detentores do domínio sobre seus desejos, conhecimentos e necessidades, com essa descoberta veio a constatação de que "o ego não é o senhor de sua própria casa" (1917/1996b, p. 153). Assim, como responder à indagação que o paciente nos faz? Como dizer para ele que não há garantias em relação ao tratamento?

Questões sobre o funcionamento dos atendimentos, o valor das sessões e a duração do processo lembram à dupla analista-paciente que estão lidando com uma empreitada desconhecida e que terá de ser desbravada a dois. No que se refere ao tempo para o fim da análise, Freud admite que não há resposta para tal pergunta. Ao narrar um trecho de uma fábula de Esopo, ele faz uma aproximação com o que acontece em um consultório de psicanálise com pacientes neuróticos:

Quando o caminhante perguntou quanto tempo teria de jornada, o filósofo simplesmente respondeu "Caminha!" e justificou sua resposta aparentemente inútil com o pretexto de que precisava saber a amplitude do passo do caminhante antes de lhe poder dizer quanto tempo a viagem duraria. Este expediente auxilia-nos a superar as primeiras dificuldades, mas a comparação não é boa, pois o neurótico pode facilmente alterar o passo e, às vezes, fazer apenas progresso muito lento. (1913/1996f, p. 143)

Assim, entendemos que as defesas são elementos importantes a serem considerados nesses encontros com o paciente, os quais devemos observar e guardar como material clínico. Já sabemos que nosso aparelho psíquico busca conservar as quantidades de excitação em nível baixo ou ao menos constante, sem grandes elevações, garantindo desse modo a predominância do princípio do prazer (Freud, 1920/1996a). Tendo isso em vista, podemos compreender que, nas primeiras entrevistas, ao falar sobre suas experiências, o paciente se vê em contato com afetos muitas vezes desagradáveis, que podem se tornar intoleráveis para ele, fazendo com que o aparelho psíquico coloque em ação as resistências necessárias para não ensejar grandes modificações.

Recordo uma paciente que realizou duas entrevistas iniciais comigo, antes de optar por não continuar com os atendimentos naquele momento. Contou que já havia feito psicoterapia com orientação psicanalítica por um brevíssimo período de tempo e desejava reiniciar esse processo. Ela encontrava-se em uma fase de vida delicada em termos de saúde, sendo submetida a uma série de tratamentos médicos.

Em nosso primeiro encontro virtual, notei como estava sendo penoso para a paciente abordar sua história de vida, repleta de episódios difíceis e de desamparo. Relatou que não havia conhecido a mãe biológica e que tinha vivenciado um relacionamento afetivo que descreveu como tortuoso. Ao acessar os afetos despertados por tais relatos, me perguntou se poderia fumar, ressaltando que se sentia ansiosa naquele momento, ali comigo.

Eu me indaguei por que a paciente havia me solicitado autorização para fumar, uma vez que estávamos em uma sessão à distância e, portanto, eu não me encontrava exposta ao cigarro que ela segurava em suas mãos. A que tal questionamento poderia remeter? Estaria avaliando a minha tolerância em relação a ela? Haveria características ou hábitos dela dos quais eu poderia não gostar?

Após duas entrevistas seguintes agendadas, às quais a paciente não compareceu, explicando ter se esquecido delas, realizamos o que seria nosso último contato antes da interrupção dos atendimentos. Durante esse encontro, a paciente me disse achar que "a psicanálise é para os fortes". Logo depois, por contato telefônico, me explicou que teria de realizar uma viagem e arcar com os custos de seu tratamento médico e que não conseguiria investir no atendimento psicanalítico.

Após esse segundo contato com a paciente, a frase dita por ela me chamou a atenção. Penso que ela estava em um estado de fragilidade emocional intensificado, no qual se aproximar de suas questões despertaria tensões e dores que não sustentaria na época. A psicanálise é para aqueles que possuem recursos internos para entrar em contato consigo, e devemos considerar que o paciente nem sempre tem tais recursos no momento em que nos procura, embora nem mesmo ele saiba disso.

Outras questões se fazem presentes. Por que o paciente busca o atendimento de orientação psicanalítica? O que ele entende por psicanálise? Se o paciente muitas vezes não reconhece os recursos de que dispõe ou aqueles que lhe faltam para o início do processo de análise, o que será que ele espera quando procura um psicanalista?

Certa vez, um amigo me solicitou a indicação de um profissional para fazer psicoterapia. Disse que já havia feito antes e que gostaria de retomar agora, em seu atual momento de vida, mas que tinha resistência a fazer análise, pois gostaria de um profissional que "falasse bastante", dando a entender que acreditava que psicanalistas não falavam em seus atendimentos.

Para além dos filmes e produtos televisivos clichês em que nos deparamos com cenas de analistas mudos, podemos confirmar que a psicanálise trabalha com a escuta como matéria-prima essencial, mas não devemos esquecer que tal escuta está inserida em uma relação, isto é, faz parte de um vínculo estabelecido entre dois sujeitos.

Freud (1905/1996e) defendeu a psicoterapia fundamentada no método psicanalítico perante médicos que acreditavam à época - nas palavras dele - que ela era "produto do misticismo moderno". Para Freud, era necessário utilizar argumentos a favor da psicanálise em face de seus detratores, que não a consideravam uma ciência.

Assim, ele afirmou que o método psicanalítico consistiria na forma pela qual se alcançariam mudanças mais consistentes nos neuróticos, permitindo ainda o profundo conhecimento sobre a origem das patologias. No entanto, fez a seguinte ressalva:

Por algumas de minhas observações, os senhores terão calculado que o tratamento analítico tem muitas peculiaridades que o distanciam do ideal de uma terapia. ... a investigação e a busca não apontam para a rapidez dos resultados e a menção da resistência deve prepará-lo para esperar por vários transtornos. Sem dúvida, o tratamento psicanalítico faz grandes exigências tanto ao doente quanto ao médico. ... Por isto, considero perfeitamente justificável que se recorra a métodos terapêuticos mais cômodos, desde que haja uma perspectiva de conseguir algo através deles. ... se, com o procedimento mais trabalhoso e prolongado, consegue-se mais do que com o método breve e fácil, justifica-se o uso do primeiro, apesar de tudo. (1905/1996e, p. 249)

Aqui, entende-se que, apesar da observação de que a psicanálise consiste em um método trabalhoso e prolongado, Freud ainda assim a defendeu como um processo confiável e sólido, no qual o analista e o analisando terão que se lançar, tendo o vínculo permanentemente criado e mantido por eles como base para o desenvolvimento do caminho a ser percorrido.

É possível considerar que esse vínculo é criado desde as primeiras entrevistas e pode se constituir também como fator decisivo para transpor os impasses aqui colocados em evidência. O interesse do analista pelo paciente, a genuína curiosidade em relação ao que ele traz e a consequente percepção ou captação disso pelo paciente são seguramente aspectos importantes não só no início do tratamento, mas ao longo dele, e são certamente elementos a serem considerados quando abordamos tais dificuldades iniciais.

Devemos sem dúvida levar em conta os conceitos de transferência e contratransferência, já amplamente estudados e divulgados, quando abordamos a dupla analítica, mas gostaria de me deter nas noções de presença, implicação e reserva descritas por Luís Claudio Figueiredo (2008, 2014) e em seguida em algumas considerações de Thomas Ogden (2013) para abordar os impasses nas primeiras entrevistas clínicas.

Luís Claudio Figueiredo (2014) apresenta os conceitos de implicação e reserva do agente cuidador. Embora o autor estenda a ideia de agente cuidador a todo sujeito que exerce a função de cuidado - incluindo o psicanalista, ao longo de todo o trabalho de análise com os pacientes -, enfatizo que tais noções são úteis para examinarmos especificamente as entrevistas iniciais. No que se refere à implicação, segundo o autor, as funções de sustentar e conter, reconhecer e interpelar/convocar/despertar são tarefas essenciais do agente de cuidados. No entanto, também destaca a importância da presença em reserva do agente de cuidados/analista em relação ao objeto de cuidados/paciente.

Nas primeiras entrevistas em análise, é possível assinalar que a função de sustentação e continência do analista se faz essencial diante de alguém que o procura em face de algum sofrimento, porém vale destacar com ênfase a necessidade da presença reservada do profissional nesses primeiros atendimentos, a fim de lidar com possíveis impasses e inquietações advindos do paciente. Luís Claudio Figueiredo afirma:

Basicamente, a presença em reserva significa a espera e aposta no objeto de cuidados, uma espécie de confiança que o cuidador deposita de antemão nas capacidades do outro, na sua possibilidade de vir a participar como agente do circuito de trocas e compartilhamento. (2014, p. 15)

Como indicado antes, o processo inicial dos atendimentos pode vir a ser permeado por defesas acirradas por parte dos pacientes - não podemos deixar de reconhecer que por vezes pode ser penoso entrar em contato com determinados pensamentos e sentimentos, que em muitos casos não haviam encontrado até então espaço, interno sobretudo, para serem pensados e sentidos. Além disso, não está ainda minimamente claro para o analista quais forças e dinâmicas transferenciais e contratransferenciais estão atuando na dupla analítica nesse momento. Assim, a postura expectante e a concepção de uma aposta no que vem do paciente parecem ser condutas, a princípio, mais condizentes com esse período inicial.

Nesse mesmo sentido, Figueiredo (2008), ao retomar as recomendações sobre a técnica expostas por Freud entre 1911 e 1915, assinala a ineficácia de interpretações apressadas do analista, as quais, mais do que pouco proveitosas, poderiam mesmo acentuar as resistências do paciente. O autor ressalta que o contato vivo com o analisando é mais importante do que o uso dessas interpretações, correndo-se o risco de perder tal vivacidade, na medida em que se incorre em observações que não acrescentam e que podem mesmo atrapalhar o processo analítico. Mais uma vez, vale frisar que essas pontuações se tornam ainda mais indispensáveis quando estamos pensando no momento inicial de uma análise.

Ogden também nos recorda o quão essencial é estabelecermos um contato vivo com o paciente. O autor observa que "há grande exigência pessoal para não nos deixarmos levar por configurações fixas de antemão, para estarmos abertos ao experimento" (2013, p. 26). Assim, cabe lembrar que o uso de perguntas pré-formatadas em forma de anamnese rígida, de modo similar ao que ocorre com as interpretações fervorosas, também tende a não auxiliar no processo de encontros e descobertas entre analista e paciente, pois nunca sabemos quem é aquele que chega para fazer análise conosco.

Além do mais, como afirma Ogden, "é preciso estar disponível para ser inconscientemente objeto do experimento inconsciente do outro" (2013, p. 26). Tendo essa assertiva em vista, podemos nos questionar em que lugar cada paciente nos coloca. Nas primeiras entrevistas, alguns pacientes costumam me questionar sobre meu sotaque, o que denuncia que eu não vim do mesmo lugar que eles, isto é, tenho outra origem. Avalio que aí já está posto algo sobre nosso vínculo, sobre nosso contato vivo e também sobre possíveis defesas.

Eu me coloco alguns questionamentos acerca desse episódio, que ocorre vez por outra. Os pacientes estão me conhecendo nesse momento. Qual será sua fantasia quando me fazem essa pergunta? A de que sou uma pessoa diferente deles? A de que estou de passagem e, sendo assim, não poderei acompanhá-los por muito tempo? Eles estão seguros comigo e podem confiar em mim? Acredito haver uma pergunta central que permeia todas as outras mencionadas: poderei ajudá-los?

Certa vez, uma criança, no início do processo analítico, me contou de uma viagem que havia feito para o Rio de Janeiro, a qual não tinha sido muito boa porque os pais tinham se desentendido bastante durante o passeio. Fiquei com a seguinte questão depois de ela ter me transmitido essa lembrança: e a nossa viagem ali, seria boa ou também seria plena de desencontros?

Por fim e considerando ainda as possibilidades acerca do estabelecimento de um contato vivo entre a dupla analítica, gostaria de tecer breves considerações sobre o que poderia ser considerado um impasse (ou não) nas primeiras entrevistas realizadas à distância, no modo online, que se tornaram tão comuns em tempos de pandemia.

 

A pandemia e os impasses nas primeiras entrevistas no atendimento online

Com o início dos tempos pandêmicos, muitas dificuldades se apresentaram em relação a como fazer a transposição do atendimento presencial para o modo online. Até então, parte considerável dos analistas não fazia uso de computadores e celulares para o atendimento, e muitos inclusive não viam com bons olhos essa forma de acesso aos pacientes. Da mesma maneira, alguns analisandos resistiram a realizar suas sessões nesse novo modus operandi, que se impôs sem aviso prévio.

Dito isso, se essa travessia já foi difícil para os pacientes que vinham em processo de análise, vinculados a seus analistas, o que dizer daqueles que buscaram a análise durante a pandemia? Nesses casos específicos há um novo desafio: como conhecer um paciente e iniciar uma análise com ele por meio da tela do computador ou pelo aparelho celular?

Para essa questão, certamente há mais de uma resposta. Alguns analistas preferiram realizar as primeiras entrevistas ao vivo, para depois dar continuidade ao atendimento no modo online, já tendo estado em contato pessoalmente com o paciente. Outros, porém, optaram por iniciar o processo diretamente por meios virtuais, sem estabelecer qualquer contato pessoal prévio.

Podemos nos questionar então se existem de fato impasses na realização das primeiras entrevistas no modo online. Por que alguns analistas preferiram realizar o contato inicial pessoalmente? O encontro inicial online pode atrapalhar o andamento do processo analítico?

Não é possível falar em contato ao vivo nos consultórios sem abarcar a ideia de que há nessa situação uma espécie de relação também corporal. Mas podemos questionar o que é estar de fato de corpo presente nesses primeiros atendimentos. Estar de corpo presente implica necessariamente a presença real do corpo?

Sabemos que o contato corporal, pele a pele, é imprescindível nos primórdios do desenvolvimento humano e compreendemos também que o mesmo corpo se faz presente no setting analítico desde os primeiros atendimentos, sendo parte intrínseca do modelo relacional estabelecido entre analista e paciente. Como considerar os efeitos da ausência corporal na dupla analítica nesses encontros iniciais?

Recordemos que, para Freud, o ego é antes de tudo um ego corporal, ou seja, "deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo" (1923/1996c, p. 39). Em 1915, ele também define a pulsão como um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático e localiza a fonte da pulsão no corpo (Freud, 1915/1996d).

Já em Winnicott, destaco aqui a função materna nomeada por ele de handling (manipulação), essencial nos estágios iniciais do desenvolvimento do bebê, e o processo de personalização vivenciado pela criança, também indispensável para o desenvolvimento regular do indivíduo.

De acordo com Winnicott, a manipulação do bebê pela mãe ou cuidador facilita o estabelecimento do que ele designa como uma parceria psicossomática na criança. Em sentido contrário, as falhas nessa função materna podem ocasionar problemas no desenvolvimento do tônus muscular, na coordenação e mesmo na capacidade da criança de "gozar a experiência do funcionamento corporal e de ser" (1965/2011, p. 27).

Quanto ao processo de personalização vivenciado pelo bebê, Winnicott esclarece que se relaciona ao "desenvolvimento do sentimento de que se está dentro do próprio corpo. De novo, é a experiência pulsional e as repetidas e tranquilas experiências de cuidado corporal que gradualmente constroem o que se pode chamar uma personalização satisfatória" (1945/1978, p. 276).

Do mesmo modo, autores como Frances Tustin, Esther Bick e Donald Meltzer exploraram a forma pela qual falhas significativas nas experiências primitivas de bebês podem representar entraves para o seu desenvolvimento afetivo. Bick (1991) destacou a importância da formação de uma pele psíquica continente, que possa manter unidas as partes da personalidade do bebê, as quais, primitivamente, não são experimentadas como tendo uma força de ligação que as mantenha unidas por si só. Todos esses estudiosos frisaram que uma separação brusca entre os bebês e seus cuidadores (afastamento inclusive corporal) pode vir a gerar perturbações graves na constituição psíquica desses sujeitos, ocasionando, entre outras patologias, os quadros incluídos no espectro autista. Nesse sentido, Tustin assinala:

O trabalho clínico com crianças autistas psicogênicas, nas quais não pode ser detectado qualquer dano cerebral, ... indica que elas desenvolveram, quando bebês, uma formação maciça de reações de evitação a fim de lidar com uma consciência traumática de separação física da mãe. Isso invadiu suas consciências antes que seus aparatos psíquicos estivessem prontos para suportar a tensão. (1990, p. 26)

Esses psicanalistas relataram experiências com pacientes que apresentavam uma espécie de encapsulamento autístico, com posturas enrijecidas, curvadas, formando conchas musculares. A separação abrupta da mãe, antes que a criança tivesse estabelecido um senso seguro de continuar a ser, ocasionou essas reações de encapsulamento autístico, desviando a atenção de um mundo objetivo e que contém ameaças aterrorizadoras em direção a um mundo pleno de sensações autoprovocadas e, por isso mesmo, controláveis e acessíveis a qualquer momento.

Se entendemos, após esse conciso apanhado teórico, que há uma relevância do corpo (simbólico, mas também biológico/orgânico) na formação do psiquismo humano, corpo esse que é fundamental nas relações iniciais que o bebê estabelece para que haja um desenvolvimento emocional considerado saudável, podemos nos indagar se o mesmo contato corporal não seria também essencial nos encontros iniciais entre o analista e o analisando para que o processo analítico venha a se desenvolver e se constituir.

Penso que, a título de estímulo para reflexões posteriores, podemos discriminar situações em que é possível começar o atendimento pelo modo virtual - sem que isso seja um fator importante para o desencadeamento de bloqueios ou dificuldades - de outros casos em que o contato corporal é essencial desde o primeiro dia do processo analítico, pois são pacientes que não tiveram um ego corporal devidamente constituído nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, que não puderam contar com a formação de uma pele psíquica continente, que sofreram uma separação abrupta e aterrorizadora de seu cuidador nos estágios mais primitivos de sua constituição psíquica.

Para esses indivíduos falta ainda, portanto, uma capacidade de simbolização que comece a ser estabelecida por meio do corpo (Fontes, 2011). Não são somente os pacientes associados aos chamados quadros do espectro autista, mas também os casos em que há a presença de organizações mais narcísicas na clínica atual. Fontes enumera tais casos como "os casos-limite, as personalidades aditivas, os somatizantes e certos quadros de depressão" (2011, p. 84).

No entanto, vale salientar que, mesmo quando nos referimos aos indivíduos com os quais é possível realizar os primeiros atendimentos no modo online, o corpo não perde totalmente a sua importância. Podemos fazer as sessões no modo virtual nesses casos, sem que nos esqueçamos de que haverá perdas ou ao menos a constatação de que falta algo. Em artigo recente, publicado já a partir da experiência com atendimentos virtuais durante a pandemia, o psicanalista italiano Riccardo Lombardi (2021) assinala que as condições essenciais do processo analítico não desaparecem com a teleanálise, uma vez que o enquadre analítico é mantido e que o analista traz consigo para o trabalho à distância seu próprio corpo e seus afetos. Por outro lado, o autor ressalta que a forma de trabalhar imposta em tempos pandêmicos não está livre de ser atingida pelos efeitos do distanciamento, havendo risco de dissociação corpo-mente.

 

Considerações finais

Com este artigo, busquei traçar algumas ideias sobre possíveis impasses no trabalho inicial com pacientes na clínica psicanalítica, isto é, eventuais entraves ou dificuldades que podem vir a ser enfrentados nas primeiras entrevistas, nos primeiros encontros com os pacientes.

São muitas as questões, e não pretendi esgotá-las aqui, mas apenas iniciar uma reflexão acerca da existência desses impasses. Entende-se que cada encontro é singular, e o manejo dele nas entrevistas iniciais também será único. Os impasses fazem parte da clínica e são relevantes para que possamos pensá-la de modo menos enrijecido e mais em consonância com os tempos atuais.

 

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Recebido em 13/7/2021
Aceito em 5/8/2021

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