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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.26 Canoas dez. 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Armadilhas do multiculturalismo: análise psicossocial da integração à francesa dos estrangeiros

 

Traps of multiculturalism: sociopsychological analysis on the french way of foreigners integration

 

 

Toshiaki KozakaiI,II,*; Rafael Pecly WolterII,**

I Universidade Paris 8
II Paris-Descartes. Laboratoire de Psychologie Environnementale

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe um exame crítico do multiculturalismo. Este último está baseado dentro de uma visão errônea da identidade cultural, pois ela é uma caixa vazia onde podemos, em teoria, pôr qualquer conteúdo. A cultura não deve ser vista como uma substância, mas como um conceito relacional. Contudo, o universalismo não está isento de problemas. A própria noção de identidade implica o processo de diferenciação. A forma de integração francesa que não tolera traços das origens cria uma dificuldade estrutural tanto para os estrangeiros que devem abandonar suas culturas quanto para os autóctones que podem ressentir a assimilação dos estrangeiros como uma intrusão dentro da esfera identitária. Tentaremos ultrapassar os debates atuais em torno do multiculturalismo através do deslocamento da lógica da identidade para a lógica da identificação.

Palavras-chave: Aculturação, Identidade cultural, Multiculturalismo, Universalismo, França.


ABSTRACT

This article proposes a critical analysis on multiculturalism. The latter is founded on an erroneous vision of cultural identity, which is in fact an empty box susceptible to receive, in theory, any content. Culture should not be considered as a substance but a relational concept. However, universalism has also its own shortcomings. The notion of identity implies in itself a movement of differentiation. The French way of integration that does not allow the trace of origin has a structural difficulty as well for the immigrants who should abandon their culture as for the natives who risk to feel the assimilation of foreigners as an intrusion into their proper identity. We propose to substitute a logic of identification to the logic of identity in order to surpass the current debate on multiculturalism.

Keywords: Acculturation, Cultural identity, Multiculturalism, Universalism, France.


 

 

Introdução

Os fluxos migratórios dos países em desenvolvimento em direção aos países industrializados parecem impossíveis de cessar entre outros por causa da imigração clandestina, dificilmente controlável, mas também devido a crescente necessidade de mão de obra. Entre 1995 e 1998 o número de imigrantes que entrou na França foi de 39000 por ano. A diminuição da taxa de natalidade e o prolongamento da esperança de vida estão transformando a distribuição entre ativos e inativos nas regiões mais desenvolvidas do planeta. Para manter a mesma relação entre ativos e inativos do nível do ano de 1995, será necessário ter um fluxo migratório 60 vezes mais intenso. Na ausência de imigração os franceses terão que trabalhar ate 74 anos se desejarem manter a mesma relação entre ativos e inativos. Um relatório da ONU (United Nations Population Division, 2000) estima que a França necessite acolher 32,1 milhões de imigrantes entre os anos 2000 e 2025, ou seja, uma média de 1,3 milhões por ano, e 60,9 milhões entre 2025-2050 numa média de 2,4 milhões por ano, para não acrescentar mais encargos aos ativos e manter o mesmo nível de vida. Em 2050, a população francesa será de 187 milhões sendo que 128 milhões, o que corresponde a 68%, serão imigrantes e descendestes de imigrantes que entraram no território francês depois de 1995.

Este cenário catastrófico da evolução demográfica é similar em toda Europa. 15 membros da União Européia analisados nesse relatório deverão acolher 701 milhões de imigrantes não comunitários entre 1995 e 2050, totalizando 12,7 milhões por ano. Se este cenário se confirmar, a população da União Européia ultrapassará 1,2 bilhões de habitantes, sendo que 918 milhões seriam imigrantes e descendestes de imigrantes que se instalaram na Europa depois de 1995. Ademais, os europeus estariam condenados a trabalhar até 76 anos de idade para preservar a mesma relação entre ativos e inativos de 1995. Este cenário é um tanto simplista, pois diferentes soluções conjugadas são previstas. O número real de trabalhadores estrangeiros que se instalarão na Europa certamente será inferior a estes prognósticos alarmantes. Mesmo assim esta não deixa de ser preocupante.

Segundo um censo realizado pela SOFRES em maio de 2000 (Le monde, 30 de maio de 2000), 59% das pessoas estimavam que “a França tem imigrantes demais”, 47% “não se sentem em casa na França” e 73% consideram que “os valores tradicionais não são suficientemente defendidos na França”. O mal-estar das identidades se expressou de forma clara, e a mesma tendência à crispação das identidades se confirma na pesquisa de opinião pública do CSA feita em 2005 para a Commission nationale consultative des droits de l’homme sur la xénophobie: um em cada três franceses se declara racista; este número sobe para 48% nas regiões rurais; 56% dos pesquisados estimam que os estrangeiros são numerosos demais (Relatório da Comissão Nacional consultativa dos Direitos Humanos, 2005).

Este clima de ansiedade interpela os dirigentes políticos, intelectuais e cidadãos sobre a necessidade de revisar a concepção universalista da nação. Frente à percepção de heterogeneidade cada vez mais forte da população francesa, com a constatação da inadequação da máquina republicana para integrar os estrangeiros, sérias interrogações sobre que escolha política adotar estão emergindo. Já faz tempo que se instalou no mundo político e intelectual um enérgico debate. Este debate opõe, de um lado, os que clamam por um multiculturalismo onde se reconhecem publicamente as diferenças de identidade em termos de língua, religião ou cultura, e do outro lado, se encontram os que recusam esta orientação que poderia levar a uma deriva comunitária comparável à dos Estados Unidos, com a imagem dos guetos étnicos isolados uns dos outros. Será necessário, na linhagem herdada da Revolução francesa, construir a nação assimilando os estrangeiros no princípio universalista para transformá-los nos cidadãos de amanhã? Ou será necessário, como nos Estados Unidos e no Canadá, abrir o caminho para o multiculturalismo assumindo publicamente e oficialmente uma variedade de identidades culturais numa mesma nação?

Vários pesquisadores já propuseram reflexões sobre o tema: alguns sublinham a separação entre vida pública e vida privada, reservando assim as particularidades identitárias à esfera privada (Schnapper, 1991); os outros são à favor de um multiculturalismo refletido que aceita diferenças e particularidades, não somente na esfera privada mas também em certos espaços públicos e semi-públicos, ao mesmo tempo que preserva a unidade dos cidadão em torno de valores universais, recusando desta forma a segregação comunitária que ocorre no Estados Unidos (Wieviorka, 1997).

Este artigo tem como objetivo acrescentar alguns elementos de resposta a esta problemática da identidade cultural ou nacional e da integração de estrangeiros, sob outro ângulo a partir do exame crítico do postulado de base do multiculturalismo. Em vez de buscar um possível caminho para fazer coabitar diferença e unidade, estes dois momentos aparentemente inconciliáveis, é necessário questionar se realmente existe uma contradição básica. Não se trata de chegar a uma solução que seja um meio termo. Como o problema está mal formulado, a solução não pode vir de uma dosagem sutil e equilibrada dos fatores contraditórios, nem da distribuição refletida destes fatores nas distintas esferas.

Necessidade de uma “fechadura identitária”

Três conceitos de nacionalidade são conhecidos, pelo menos no que é relativo às suas formas ideais ou ideológicas. Elas se baseiam de forma esquemática: 1) No sangue como na Alemanha; 2) No local de nascimento como nos países americanos; 3) Na vontade de pertencer ao Estado como no caso da França (Dumont, 1991; Schnapper, 1991).

Na medida em que os países americanos se concebem como uma comunidade política constituída por diferentes etnias &– essencialmente nos Estados Unidos e Canadá &–, cada etnia recebe um verdadeiro estatuto como na Alemanha. Ao contrário a França evitou, ao menos no discurso ideológico, tal hipóstase das etnias desde a Revolução. Por esta razão, a expressão melting pot parece mais adaptada à França que apaga as marcas exteriores que aos Estados Unidos onde as origens exógenas de seus componentes são aceitas no seio da comunidade nacional.

Como a comunidade humana compõe um sistema organizado, ela possui certos mecanismos de fechadura, estruturais e funcionais, para manter sua identidade. A noção de identidade implica um movimento de diferenciação que cria o “exterior”. Do ponto de vista conceitual, o fechamento identitário como na Alemanha constitui a forma mais clara e simples, mesmo se a aplicação completa destes princípios é complicada: na época da mobilidade das populações e das trocas econômicas intensas, com casamentos internacionais freqüentes, um conceito restrito de nacionalidade tende a criar problemas jurídicos e sociais. Com relação ao conceito multiétnico e multicultural dos Estados-Unidos, os recém chegados são integrados a uma comunidade “federal” que é como um sistema supra-ordenado. Assim os imigrantes se integram guardando sua identidade de origem: de certo modo, eles se encontram juridicamente e socialmente no interior da comunidade ao mesmo tempo em que se mantêm fora da comunidade pela identidade. Este método de integração que evita a assimilação brutal parece ser cada vez mais enfatizado por pesquisadores e associações humanitárias. Contudo, não se deve esquecer o perigo de segregação comunitária como a que ocorre nos guetos nova-iorquinos, pois este fenômeno está intimamente ligado a uma hipótese, ou seja, uma ficção considerada como real pelos grupos étnicos.

Quanto à França, adepta do universalismo, que apaga os vestígios da origem estrangeira dos imigrados, sob que condições a proteção do sistema comunitário e a segurança identitária são garantidas? Como veremos a seguir, o mecanismo identitário é inseparável do movimento de diferenciação. O modelo francês de integração que não tolera a marca de origem deve resguardar uma grande dificuldade no plano identitário tanto para os imigrantes que devem abandonar suas culturas, ao menos parcialmente, quanto para os autóctones que correm o risco de ver a assimilação dos estrangeiros como uma intrusão no interior de sua própria esfera identitária.

Faz tempo que a França acolhe imigrantes, muitos cidadãos franceses de hoje em dia são descendentes de imigrantes do século XIX e da primeira metade do século XX. Dezoito milhões de franceses nascidos entre 1880 e 1980, o que representa mais de um terço da população, são descendentes de imigrantes de primeira, segunda ou terceira geração (Frémy & Frémy, 1999). Logo algumas gerações bastam para que estrangeiros se integrem na sociedade francesa e virem integralmente franceses.

Mesmo que sob formas diferentes, a França é um país de imigração comparável aos Estados-Unidos. Como será que evolui a identidade dos estrangeiros? E consequentemente, para os autóctones, como se sustenta a identidade nacional com a penetração permanente de elementos exógenos no seio de sua comunidade? Que mecanismo permite simultaneamente uma mudança e uma preservação da identidade coletiva? Tais são as questões tratadas por este artigo. A luz do mecanismo de “fechadura identitária”, escondido na concepção aberta de nacionalidade francesa, nós buscaremos expor uma nova faceta da integração dos estrangeiros à francesa.

As concepções alemã e francesa da nacionalidade

Nos anos 80, dos 40000 turcos nascidos todo ano na Alemanha, em torno de apenas 1000 adquiriram a nacionalidade alemã. No mesmo período na França, dos 30.000 recém-nascidos de origem estrangeira apenas 2000 não obtiveram a nacionalidade francesa (Schnapper, 1991).

Geralmente opomos a concepção organicista da nação: Volk, nascida do romantismo alemão tendo em Herder um representante eminente, à concepção contratualista da nação vinda do Iluminismo e da Revolução francesa. Da mesma forma, comparamos o “Discurso à nação alemã” (1807-1808) de Fichte ao “O que é uma nação” (1882) de Renan. Convém ressaltar que a diferença entre estas duas concepções não é somente a conseqüência de idéias políticas e filosóficas divergentes, mas resulta também de circunstancias históricas concretas. Não poderíamos esquecer que foi sob a ocupação napoleônica que Fichte pronunciou uma serie de conferências para defender a cultura e o povo alemão. E foi em reação à Momsen e Strauss que justificavam o anexado da Alsácia-Lorena que Renan enfatizou o princípio de autonomia dos povos (Roman, 1992).

Através da longa história de diferentes regimes centralizadores, Absolutismo, revolução, Império e República, a França desenvolveu uma concepção racional, contratualista, e artificialista da nação, representada acima de tudo como uma comunidade política baseada na vontade de pertença. Inversamente, na Alemanha visto que a centralização do poder demorou, a idéia de nação se constituiu fora das circunstâncias políticas como uma noção essencialmente cultural e étnica.

A concepção particularmente aberta de nacionalidade na França não pode ser compreendida sem a consideração das condições demográficas. A população alemã foi multiplicada por quatro entre as guerras napoleônicas e a Segunda Guerra, enquanto no mesmo período a população francesa cresceu a metade disto por causa da limitação dos nascimentos que começou um século antes dos outros países europeus. Este estado demográfico dificultou a resposta à demanda crescente de mão-de-obra feita pelas indústrias que estavam em plena expansão, pois estávamos em plena revolução industrial. A França já estava atrasada em termos de proletarização comparativamente à Grã-Bretanha, país industrialmente mais avançado, e a penúria se agravou devido às medidas protecionistas da Terceira República que tentava proteger o meio camponês. A democracia parlamentar se instalou antes das grandes transformações industriais, embora a necessidade de mão-de-obra para as indústrias fosse grande, os eleitos republicanos, que queriam enraizar o novo regime, se viram obrigados a multiplicar as concessões para erradicar o êxodo rural (Noiriel, 1988).

Foi por estas razões que da metade do século XIX até a Segunda Guerra a França diferentemente dos outros países europeus, que enviavam suas populações para o exterior, acolheu imigrantes da Bélgica, Itália, Espanha, Portugal, Polônia, Armênia e África do Norte. O povo alemão ao contrário viveu no temor de um povoamento excessivo. O Estado nunca tentou juntar toda população dispersada nos países vizinhos, Polônia, Tchecoslováquia, Império austro-húngaro. A Alemanha só virou um país de imigração a partir de 1960. Ou seja, a França foi o único país europeu a importar pessoas entre 1850 e 1940. A concepção étnica e culturalista da Alemanha e a concepção assimiladora e universal da França se desenvolveram assim através de condições socioeconômicas distintas (Schnapper, 1991).

Dilema entre multiculturalismo e universalismo

Na medida em que o universalismo é baseado na referência a valores individualistas e igualitários, invoca os direitos humanos e preconiza a mistura das pessoas além das fronteiras nacionais e étnicas, ele corre o risco de legitimar a imposição dos valores dominantes às minorias culturais. O colonialismo em nome da missão civilizadora justificou a assimilação dos povos indígenas. Daí vem a reação identitária das populações de origem estrangeira contra uma inclusão desfavorável na hierarquia social da sociedade acolhedora. Nos anos 80, os militantes anti-racismo franceses defenderam o “direito à diferença” como resposta à tendência assimiladora. Mas este respeito das minorias é uma faca de dois gumes. Ao ver a cultura de forma essencialista, se deixa uma margem à ideologia segregacionista do Front National: pois se os estrangeiros são diferentes dos autóctones, eles não podem ser assimilados pela sociedade que os acolhe; então seria lógico e necessário de enviar os estrangeiros inassimiláveis de volta a seus países de origem (Schnapper, 1991; Taguieff, 1987, 1995).

Desta forma, a vontade de defender a identidade minoritária não pôde evitar um beco sem saída lógico. Contrariamente aos países anglo-saxões, o termo “raça” tem uma má reputação na França e quase ninguém ousa usar esta palavra em público, à exceção de algumas esporádicas provocações da extrema-direita. Contudo, a “cultura”, expressão positivamente conotada, tem uma função similar por ser usada como fronteira identitária inamovível (Poutignat & Streif-Fenard, 1995). As expressões como “multicultural”, “multiétnico” ou “crioulidade” tornam as culturas e populações essencialistas. Reconhecer a mistura e diversidade de todas as culturas como fato histórico ou objetivo da sociedade a ser construída não constitui uma crítica radical contra a concepção substancialista da cultura e do povo. Falar de mistura já implica a existência de raças, etnias e culturas puras. Não basta insistir na evolução usando formas dinâmicas como “diversificação” ou “crioulização”, pois a própria noção de mistura não pode existir sem supor conceitualmente a existência de estados originais puros, sem mistura.

Será realmente um dilema inerente e inevitável e teríamos que buscar uma forma de meio termo, como a adoção do “relativismo relativo” (Schnapper, 1991), para não cair na dupla armadilha do segregacionismo e do assimilacionismo? Wieviorka (1997, p.43), defensor de um multiculturalismo moderado, parece indicar uma via equilibrada entre o universalismo assimilador e o segregacionismo comunitário:

É necessário acabar com as perspectivas maniqueístas que opõem simplesmente dois registros, o universal e o particular, a República e o multiculturalismo, desenvolvendo uma imagem cada vez mais abstrata e irrealista do primeiro, e caricaturando o outro para usá-lo como repelente. [...] Redizendo isto, o problema não está na escolha entre dois termos, entre duas exigências opostas, e sim no fato de aprender ou reaprender a combiná-los [...]

Se fizermos um rodeio e nos interessarmos ao pensamento de Renan (1992) para tentar encontrar uma pista susceptível de resolver o dilema sob um ângulo diferente, veremos a co-presença destes dois ideais da nação em formas contraditórias. Renan geralmente é visto erroneamente como um adepto da concepção contratualista da nação por causa da freqüente citação da formula: “A existência de uma nação é [...] um plebiscito diário” (Renan, 1992, p.55). Na realidade ele não defende totalmente esta concepção política da nação, mas dá muita importância à continuidade com o passado:

Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, para dizer a verdade, são uma coisa, constituem essa alma, este princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no presente. Uma é possessão em comum de um rico legado de lembranças; o outro é o consentimento atual, o desejo de viver juntos, a vontade de continuar a fazer prevalecer a herança recebida. O homem, Senhores, não se improvisa. A nação, como o indivíduo, é o término de um longo passado de esforços, sacrifícios e devotamentos. O culto dos ancestrais é entre todos o mais legítimo; os ancestrais fizeram de nos o que somos. (Reman, 1992, p. 54)

Ao basear a nação na tradição, Renan se orienta para a direção da concepção étnica que reconhece a particularidade de cada cultura, correndo assim o risco de se aproximar, nolens volens, do pólo segregacionista ao questionar a fusão das diferentes populações. Ao mesmo tempo, ao conceber a nacionalidade pela vontade, ele reconhece a universalidade de todos os homens, e tende a flertar com o assimilacionismo, negligenciando as diferenças culturais. Desta forma encontramos o mesmo dilema entre universal e multicultural, assimilação e segregação. A posição de Renan apresenta uma contradição interna, na medida em que ela ressalta a necessidade da determinação permanente do presente e simultaneamente a preservação da continuidade com o passado. Se os homens de hoje em dia escolhem conscientemente e se a decisão artificial do “plebiscito diário” intervém no estado da nação, então a continuidade com o passado deve ser revista. Inversamente, se o presente se produz do passado, tal decisão consciente já não é necessária.

Como Roman (1992), poderíamos explicar esta contradição lógica do texto de Renan, pela aplicação parcial de cada princípio, étnico ou eletivo, multicultural ou universal, em circunstâncias diferentes. Renan invoca a necessidade do consentimento, quando a nação está em debate, para resolver os conflitos e litígios entre Estados, como no exemplo da anexação da Alsácia. Este princípio tem um único valor negativo, pois ele exclui o fato de pertencer sem consentir, não prescrevendo uma determinada pertença: “se houver dúvidas sobre fronteiras, consultem as populações disputadas” (Renan, 1992, p.56). Ao contrário, Renan se apóia no passado, quando pensa a nação na sua dimensão positiva, como princípio de legitimidade interior. Esta interpretação do texto parece ser correta e sabe-se também que o pensamento de Renan evoluiu consideravelmente da posição crítica contra a imagem moderna do Homem de Rousseau e da Revolução francesa. Parece-nos justo situar seu pensamento como um produto transitório, entre as concepções tradicionais e modernas.

Contudo, propomos outra hipótese, fora do texto propriamente dito, em relação à problemática do mecanismo de “fechadura identitária”, para resolver a contradição entre esses dois princípios. De fato, o “passado” de Renan é sensivelmente diferente da concepção substancialista da nação, como atesta sem ambigüidade a célebre frase: “o esquecimento, e até mesmo o erro histórico, são um fator essencial na formação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos históricos geralmente representa um perigo para uma nação”. Aí se encontra a chave do epílogo e a contradição entre os dois princípios de Renan será resolvida no deslocamento da lógica de identidade para a lógica de identificação.

A fundação imaginária da nação

A nação geralmente mantém a crença da filiação, mas essa crença faz parte do registro da ficção social e não da realidade tangível. Quando se forma um sentimento de estar ligado por afiliação, a comunidade política se constitui, e o fato de viver juntos leva ao desenvolvimento progressivo de uma língua, de uma religião e de uma cultura comum. Mas o oposto também é verdadeiro: quando os indivíduos compõem uma comunidade política e se dotam de um destino comum, este corpo político artificialmente construído tem tendência a fabricar à posteriori um mito de filiação através da vida em comum durante gerações. A continuidade étnica é um produto de sucessivas falsificações ideológicas (Weber, 1995).

A nação também não pode ser definida pela continuidade cultural. Os historiadores mostram com exemplos variados que a “tradição ancestral” é na realidade um produto bastante recente (Hobsbawn & Ranger, 1983). O cristianismo certamente constitui o núcleo central das culturas européias atuais. Embora, nas suas origens seja uma religião nascida nos desertos do Oriente Médio. O cristianismo está atualmente quase extinto em sua região de origem onde floresce o Islã, outra religião monoteísta. A cultura evolui sem parar. Desvincular o que é próprio a uma cultura como conteúdo, purificado de influências estrangeira, é um esforço vão: é como descascar uma cebola, ao tirar todas as peles não sobra nada.

Notamos assim que não há contradição, do ponto de vista psicossocial entre os dois pontos de vista de Renan: a introdução da noção de rompimento pelas decisões conscientes e artificiais de um lado e a impressão de continuidade com o passado do outro. Mas se a identidade étnica, nacional e cultural não tem um conteúdo próprio, de onde vem essa impressão de continuidade de uma entidade coletiva mesmo com as constantes mudanças de seus aspetos?

Os etnólogos se esforçaram em vão para definir a etnia com vários critérios: língua, religião, costume, autonomia econômica, estrutura política, proximidade geográfica, nome da etnia, etc. Mas sempre que se tenta classificar os indivíduos a partir de certos critérios, se cai em contradições entre classificações usando critérios diferentes: dois indivíduos podem ser próximos do ponto de vista lingüístico e não pertencer à mesma religião ou fazer parte de organizações econômicas ou políticas distintas (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995). Já que existe um número infinito de critérios de classificação, é impossível categorizar os indivíduos de forma estritamente objetiva. Se quisermos compreender um fenômeno étnico, devemos levar em conta a maneira subjetiva como os indivíduos se distinguem uns dos outros. Ou seja, a etnia não é uma taxonomia objetiva, mas um produto da construção social.

É necessária uma mudança de perspectiva: a identidade étnica não pode ser compreendida a partir do conteúdo cultural, mas é um fenômeno ligado a construção da fronteira entre os diferentes grupos étnicos (Barth, 1969). É a relação que produz os termos, e não o contrário. À maneira de Saussure em lingüística, Barth propõe uma perspectiva relacional: o grupo étnico não se define pelo conteúdo cultural próprio, mas pela fronteira que os membros e não membros do grupo percebem entre o grupo e o outro grupo. Não é a presença de populações distintas e culturalmente homogêneas que conduz naturalmente ao estabelecimento da fronteira étnica. É, ao contrário, o movimento de diferenciação arbitrário &– no sentido em que ele não leva em conta dados culturais internos mesmo se ele é historicamente determinado &– que provoca a percepção da fronteira. Somente em seguida, os indivíduos enclausurados no interior desta fronteira simbólica, construída de maneira contingente e até mesmo artificial, são progressivamente notados e se vêem como uma etnia. Isto ocorre simultaneamente à progressão da homogeneização cultural através do estabelecimento da comunicação lingüística e a participação nas mesmas atividades econômicas e políticas.

Um grupo étnico pode adotar certos traços culturais de outro grupo como a língua e a religião e continuar sendo visto, e se vendo, como distinto do outro grupo. Já que os atores sociais atraídos pelas diferenças emblemáticas não dão importância às similaridades, é possível que a diversidade cultural entre grupos diminua ao mesmo tempo em que a distinção étnica se reforça (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995). Aliás, observamos nos Estados-Unidos, uma intensificação recente da identificação étnica em função da origem, apesar da redução objetiva das diferenças culturais, devido à perda da língua de origem, da conversão religiosa e dos casamentos entre etnias (Nagel, 1994). Uma tendência similar pode ser observada em Israel: enquanto as diferenças culturais diminuem entre judeus asquenaze e sefardi, eles ressaltam cada vez mais suas respectivas diferenças originárias (Weingrod, 1979).

Dozon (1994) esclarece esse ponto graças à sua análise minuciosa da identidade étnica dos Bété da Costa do Marfim. Eles habitam o sul deste país e formam o grupo étnico mais importante, somando 20% da população. Contrariamente à versão oficial da administração colonial francesa, que afirma que os Bété seriam originários da Libéria, este grupo étnico é na verdade um produto recente, devido a circunstâncias particulares, de populações oriundas de diferentes regiões. Antes do período colonial a região dos Bété não possuía uma população homogênea. A região não era unificada do ponto de vista comercial e econômico. Vários sistemas de parentesco coexistiam, os recortes lingüísticos não correspondiam às fronteiras étnicas tais quais elas são concebidas atualmente. Além disto, uma parte da população vivia da caça coletiva com uma grande rede &– esta última agia como um marcador identitário e era assimilado a um ser vivo que encarnava o coletivo da linhagem &–, enquanto outros habitantes não tinham muitas ligações com a caça. Ou seja, vários fatores diferenciavam os Bétés em diferentes grupos, alguns sendo até mais próximos das populações vizinhas não Bété. Deste modo as populações que compunham o país Bété não notavam uma identidade comum.

A administração colonial introduziu algumas medidas para transformar socioeconomicamente a região: obrigação de pagar impostos, de cultivar e vender produtos para que sejam taxados e trabalho forçado para melhorar as infra-estruturas. As populações africanas ficaram um pouco reticentes contra o dispositivo colonial. O trabalho forçado e o recrutamento nas forças armadas para a guerra na Europa provocaram inúmeras fugas. Essa resistência foi fundamental para o nascimento da identidade Bété, pois ela criou uma relação entre estes habitantes e as cidades economicamente mais desenvolvidas. Estes emigrantes se encontraram em baixo da escala social destas cidades e foram tratados e estigmatizados como mão-de-obra barata pelos franceses e pelas populações locais.

Fora esses primórdios de consciência identitária constituído no exterior do país Bété, a situação interior começou a oferecer um campo propício à consolidação da identidade Bété. As plantações precisavam de mão de obra; consequentemente, vários emigrantes africanos entraram no país. A relação complementar entre autóctones e emigrantes progressivamente se transformou em concorrência mútua. Este contexto antagonista naturalmente intensificou a consciência identitária dos Bété, e acarretou na reivindicação política das terras pegas pelos emigrantes. Ao mesmo tempo, brotou ao nível ideológico o mito fundador da etnia: os ancestrais Bété seriam os verdadeiros autóctones originários da Costa do Marfim.

Deste modo a ficção identitária Bété foi fabricada em apenas uma década, em conseqüência a uma política artificialmente imposta pelo colonialismo francês. A concepção ingênua define o grupo étnico ou nacional a partir de suas propriedades internas que seriam específicas. O grupo repousa em si. Opostamente, a concepção relacional propõe considerar que um grupo étnico nos aparece e se produz por causa da categorização arbitrária que praticamos. Em outras palavras, esta posição, relacional e construtivista, afirma que as propriedades que nos parecem ser específicas a determinado grupo são produzidas pela reificação da relação. Ou seja, é uma ficção coletivamente elaborada. Não é por que existem grandes diferenças objetivas entre dois grupos que os consideramos como distintos, mas pelo contrário, pelo fato de serem categorizados como grupos diferentes, cada grupo adquire sua “essência” homogênea e uma diferença “objetiva” brota. O que é geneticamente inicial, não é a identidade própria, mas a dinâmica de identificação. A identidade está simplesmente no que nos identificamos e no que nos identificam.

O mecanismo de fabricação identitária

De onde vem nossa impressão da continuidade identitária? Para responder a esta pergunta, imaginemos um pequeno barco de madeira. Todo dia usamos este barco para pescar. Com os anos o barco começa a ficar usado. Às vezes o barco se avaria nas pedras. Devemos então trocar algumas peças de vez em quando. Cedo ou tarde, todas as peças são trocadas. Não sobra nada do barco original. Então vem a questão crucial: Será que é o mesmo barco? Com certeza temos a impressão que é o mesmo barco por usá-lo todos os dias.

Mas não é por que o barco manteve a mesma forma que sua identidade foi conservada. O que ocorreria se, ao invés de concertar o barco sucessivamente, ele fosse destruído e depois reconstruído com novas peças? Desta vez, certamente teríamos a impressão de que é uma cópia, outro barco, mesmo conservando a mesma forma e respeitando totalmente o plano de construção. Entretanto, substituir todos os elementos em um instante ou progressivamente durante um século, não altera nada ao nível lógico pelo fato que todos os elementos do barco foram renovados. Contudo, do ponto de vista psicológico, as duas situações são radicalmente diferentes. A impressão de conservação da identidade provém do fato da modificação ser progressiva e imperceptível. Ou seja, é uma ilusão de ótica.

Imaginemos com Hobbes uma situação um pouco mais complexa para insistir na natureza psicológica da identidade (Ferret, 1998, p. 113-114). Os componentes do barco são substituídos, como no exemplo anterior, na medida em que ele se deteriora. Mas ao invés de jogar fora os elementos avariados, eles são guardados em local seguro, e que, no momento em que a totalidade das peças forem substituídas por peças novas, o barco seja reconstruído com as antigas peças respeitando o plano de construção original. Teremos então três barcos conceptualmente distintos: o barco inicial (A); o barco reparado com peças novas (B); o barco reconstruído com os componentes antigos (C). Se logo após cada concerto, jogarmos fora todas as peças deterioradas e não tivermos a possibilidade de ver o barco C acreditaremos que existe uma continuidade natural entre o barco A e o barco C. Contudo, quando o barco C aparecer a nossa frente nossa convicção sobre a continuidade entre o barco A e o barco B irá por água abaixo. A simples percepção do barco C, velho e avariado, basta para relegarmos o barco C ao status de simples cópia não autêntica.

O respeito, mesmo que rigoroso, da planilha de construção não garante a preservação do sentimento de identidade. É necessário algo mais. Ora, este elemento essencial não está no barco, na sua forma ou na sua matéria, ele é externo. Se imaginarmos, como Hume (1969), que uma massa de matéria possuindo partes contíguas e conectadas, apareça na nossa frente. Se todas as partes permanecer iguais de maneira ininterrupta e invariável, naturalmente atribuiremos uma identidade a esta massa. E se supormos agora que uma pequena parte, ínfima, seja acrescentada ou subtraída. A identidade do conjunto da matéria em questão foi destruída de um ponto de vista estrito. Mas raramente raciocinamos com tanto rigor, pois continuamos a crer que estamos frente à mesma massa. Se a mudança ocorre progressivamente e insensivelmente, não notamos a cessação da identidade. Com outras palavras, a identidade que um objeto mantém no tempo, tal qual ela nos é dada, não é imanente ao objeto, mas é uma representação produzida por uma série de identificações sucessivas dos aspetos deste “objeto” feitas pelo sujeito exterior que o observa. Não é a preservação de um substrato qualquer possuidor da essência do objeto que garante a identidade através do tempo, mas a crença do observador exterior na imutabilidade deste objeto, sendo verdadeiro ou não. A identidade temporal não é um estado intrínseco do objeto, mas um fenômeno psicossociológico que produz um movimento de identificação subjetiva.

Como no exemplo da identidade do barco onde os materiais eram renovados constantemente, as gerações da comunidade étnica ou nacional devem ser renovadas parte por parte para que a comunidade mantenha aos nossos olhos a sua identidade. A grande maioria das pessoas que vivem juntas num preciso momento continuam a existir no instante seguinte, somente uma ínfima porção de pessoas é substituída pelos recém-nascidos. A passagem de um estado a outro ocorre assim sem solução de continuidade. É importante que entre dois instantes a proporção de indivíduos ficando na comunidade seja bem superior à proporção de indivíduos mudando. Em menos de cem anos, a quase-totalidade da população francesa é renovada e, alguns anos depois este ciclo de substituição termina completamente. Como a substituição ocorre lentamente e progressivamente é possível ter um sentimento de continuidade identitária. A França tem um pouco menos que cinqüenta e nove milhões de habitantes, 780 000 nascem e 540 000 morrem todo ano, o que equivale a uma taxa de substituição de 0,003% por dia. Além disso, a ausência de período reprodutivo na espécie humana facilita o esquecimento destas incontáveis rupturas da comunidade que ocorrem inevitavelmente; jamais podemos fixar o determinado momento onde uma nova geração começa.

Dos artifícios úteis para a preservação da identidade de um objeto, Hume (1969) cita a existência, ou melhor, a percepção subjetiva de um fim comum. Se um barco continua a aparecer sob a mesma identidade embora tenha sofrido importantes modificações devido a freqüentes reparos, é porque as partes estão em estado de interdependência e que o fim comum para qual tendem as partes é idêntico, mesmo após as variações. E ela (a identidade) facilita a transição da imaginação de um estado do corpo a outro. Este autor usa também o exemplo de uma igreja para mostrar que a continuidade identitária é garantida graças à percepção de um objetivo ou de um destino que une os elementos, mesmo que a matéria mude totalmente. Imaginemos agora que uma igreja de tijolos esteja em ruínas e que ela seja reconstruída em pedra, seguindo os moldes da arquitetura moderna. Ele salienta que neste caso, nem os materiais nem a forma são idênticas e não há nada em comum entre estes dois objetos além de suas relações com os membros da comunidade. A identidade das relações que os habitantes atribuem à estas duas igrejas basta para que a continuidade da igreja seja mantida. Além disso, é interessante observar neste exemplo que a percepção da identidade é facilitada pelo fato que o antigo objeto já desapareceu quando o novo aparece na consciência do sujeito, ou seja, os dois objetos nunca aparecem simultaneamente aos olhos do observador, como no exemplo dos três barcos conceptuais.

O papel do desconhecimento

O esquecer da diversidade e das reais mudanças é a preciosa fonte do estabelecimento de algumas formas de defesa identitária. O modelo republicano e universalista francês deveria integrar cada estrangeiro individualmente, contrariamente aos Estados-Unidos onde a comunidade estrangeira como um todo se integra. Na realidade, até na França, a integração dos imigrantes é realizada com o auxílio das microcomunidades. É o caso, por exemplo, dos italianos, poloneses, portugueses ou ainda dos asiáticos do Sudeste da Ásia. A presença da estrutura comunitária fornece aos recém-chegados uma segurança identitária e não os deixa jogados frente a um ambiente totalmente desconhecido (Milza, 1998). Opostamente, se certos jovens magrebinos se integram com dificuldade na sociedade francesa, em parte isso se deve porque eles geralmente estão desorganizados e nus do ponto de vista identitário. Contráriamente à imagem estereotipada que associa estes jovens ao Islã, na realidade eles estão fortemente atomizados por causa da insuficiente segurança identitária de suas comunidades culturais e da exclusão que sofrem por parte da sociedade francesa (Khosrokhavar, 1997; Tribalat, 1996). Memmi (1966, p.260, mês italiques) descreve o mesmo mecanismo identitário nos judeus:

Paradoxalmente, até mesmo a assimilação, como eu disse, será enfim possível. Na opressão não era possível; não somente por causa da recusa dos outros, mas também, por causa do insuportável mal estar que ela suscitava no próprio judeu: como abandonar os seus numa tal tristeza? Não se abandona, sem uma dor insuportável, o lado dos perdedores. De agora em diante, a possível referência do seu povo ao solo, a um Estado, a uma cultura, absolve o assimilado. Sendo um homem livre, o judeu ganha ao mesmo tempo a liberdade de não mais ser judeu [...].
[...] a assimilação deve poder ser legítima para todo judeu que a deseja. Esta liberdade de escolher seu destino deve igualmente ser restituída ao judeu. A confirmação de sua pertença ou a escolha de outra comunidade deve virar finalmente, uma simples questão de temperamento ou interesse. Por que deixá-lo sem um direito reconhecido a todos os homens? Em quê é diferente de italianos que se assimilam aos franceses ou de alemãs que se assimilam aos americanos? Mas deve ser visto, aqui também, que é a existência de uma nação judia que permitirá finalmente o esvaecimento indolor da judeidade.

Deve ser visto uma complementaridade entre o trancamento identitário e a abertura cultural: não é apesar, mas graças a uma dose de trancamento identitário que aceitamos os valores alheios. A identidade é uma ficção social. Para integrar estrangeiros, a sociedade deve dispor de um mecanismo de defesa coletivo eficaz. A identidade é constantemente quebrada pela introdução de elementos exógenos. O sucesso da integração dos estrangeiros depende da eficácia deste dispositivo coletivo que permite o desconhecimento das rupturas identitárias reais e permanentes.

A realidade do modelo francês de assimilação

Neste quadro parece possível interpretar uma passagem paradoxal de Todd (1994) sobre a homogeneidade cultural mais avançada nos Estados-Unidos multiculturalistas do que na França universalista em termos de estrutura familial, de religião e de hábitos alimentares. Porque a ideologia assimilacionista francesa preserva uma diversidade cultural mais importante que a ideologia comunitarista americana que demonstra deliberadamente a coabitação das diferenças?

Para desvendar este enigma, devemos relembrar que uma mudança (reforço ou desaparição) que ocorre no nível das fronteiras de um lado, e do outro lado uma mudança de conteúdo cultural de um grupo étnico, constituem dois fenômenos de registros psicossociológicos distintos. Então parece possível que um sentimento identitário aumente embora haja uma homogeneização cultural importante. A identidade é um estado psicológico produzido pela categorização (Barth, 1969; Tajfel, 1972, 1978). De modo geral, quando os indivíduos ou objetos são categorizados em dois conjuntos 1 e B, ocorre uma ilusão que exagera as diferenças entre as categorias e minimiza a diversidade dos membros no interior de cada categoria. A diferença notada entre os membros da categoria A e da categoria B é maior que a diferença real; e a similaridade notada entre os membros no interior de cada categoria também é maior que a similaridade real (Doise, Deschamps & Meyer, 1979; Tajfel & Wilkes, 1953). Este processo psicossocial pode ser aplicado a uma comparação franco-americana.

Dentro de um sistema multicultural ou multiétnico, os cidadãos se vêem através de categorias culturais ou étnicas. Eles tendem então a se dar a ilusão de uma diversidade grande, maior que a diversidade real. Além disto, como a identidade se baseia no duplo processo de identificação intracategorial e de diferenciação intercategorial, o multiculturalismo contribui a alimentar o sentimento identitário, o que por sua vez facilita a aceitação dos valores das outras categorias culturais e étnicas. Com a segurança ou ilusão psicológica que o núcleo central de suas identidades não se altera, os membros de tal sistema aceitam com mais facilidade uma metamorfose.

Ao contrário, dentro do sistema universalista onde todos os seres humanos devem ser essencialmente similares, a divergência real tende a ser subestimada ou ignorada, pois é secundária ou acidental. Por outro lado, o duplo processo de identificação-diferenciação não se compromete de maneira tão acentuada quanto no ambiente multiculturalista, a incorporação de valores de outros cidadãos apresenta o risco de comprometer o sentimento identitário. A ameaça sobre a identidade é ainda mais grave quando os termos de comparação são próximos. Esta citação de Serge Moscovici é bem pertinente sobre este assunto:

[...] adquirimos a convicção que o racismo é ao contrário um problema de similaridade. Sim, geralmente, é naquele que tem algo em comum comigo, que deveria estar de acordo e compartilhar suas crenças, que os mínimos desvios me magoam. Eles me parecem mais graves do que são na realidade, pois eu os exagero e dou demasiada importância. Sinto-me traído. Daí uma reação bem mais violenta. Enquanto que, na pessoa realmente diferente que não tem nada a ver comigo, mal notaria desvios bem mais acentuados. [...] Resumindo, não são nossas diferenças que temos dificuldades a suportar, mas nossas semelhanças e ligações. (Moscovici, 1985, p.185)

Paradoxalmente o universalismo dificulta mais a aculturação que o multiculturalismo. O primeiro tolera o conteúdo heterogêneo do objeto introduzido enquanto apara os vestígios originais, enquanto o segundo homogeneíza o objeto incorporado ao mesmo tempo em que impede a fusão entre interior e exterior. O segredo deste paradoxo se esconde no próprio coração do mecanismo de fundação identitária (Kozakaï, 2000, 2005).

 

Conclusão

A identidade cultural é um fenômeno social em movimento e o limite &– sempre provisório &– de sua evolução é colocado unicamente pelo contexto social e o peso da história. A integração dos estrangeiros tradicionalmente é conceitualizada dentro de uma perspectiva normativa e funcionalista. Nesta corrente de pensamento só existem duas possibilidades na integração: se a integração ocorreu, o estrangeiro se assimila à sociedade acolhedora; ou em caso de não integração o indivíduo que não aceita a norma dominante da sociedade é marginalizado e excluído (para uma síntese da corrente funcionalista, Manco, 1999). Este modelo é lacunar. Em vez de haver uma absorção de uma cultura pela outra, a aculturação é um processo de evolução mútua para os autóctones e estrangeiros.

O comunitarismo baseia seu fundamento numa visão errônea da identidade cultural, pois ela é vista como uma caixa vazia na qual podemos pôr, em teoria, qualquer conteúdo. O universalismo não comete erros na sua análise da identidade cultural, mas se alça sobre um menosprezo da natureza humana. É verdade que a concepção eletiva da nação francesa não é um simples voto humanitário e idealista; de um ponto de vista antropológico, ela é dotada de um verdadeiro fundamento. Mas, os mecanismos da fabricação social de uma identidade graças ao processo de identificação devem ser ocultados e desconhecidos dos atores cidadãos (Kozakaï, 2000, 2005; Renan, 1992; Weber, 1995). O mundo humano se constrói a todos os níveis sobre uma infinidade de ficções sociais. Sem estes auto-enganos coletivos a fundação de uma comunidade seria impossível. Ou seja, não é apesar, mas graças às ficções sociais que a realidade se faz possível. A realidade e a ficção são consubstanciais.

Estamos dentro de uma evolução permanente. O importante não é de saber se é ou não é necessário mudar, se é preciso manter a tradição ou evoluir aceitando os valores da sociedade acolhedora. O verdadeiro problema está no fato de ser obrigado a ser o que não se deseja ser, e que não é possível tornar-se o que se deseja tornar. A identidade não possui um conteúdo próprio, mas é o resultado do movimento de identificação.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: kozakai@club-internet.fr

Recebido em maio de 2007
Aceito em agosto de 2007

 

 

* Toshiaki Kozakai: doutor em Psicologia Social (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales); professor na Universidade Paris 8; pesquisador associado de Paris-Descartes no Laboratoire de Psychologie Environnementale.
** Rafael Pecly Wolter: mestre em Psicologia Social (Paris-Descartes); doutorando em Psicologia Social (Paris-Descartes); pesquisador no Laboratoire de Psychologie Environnementale.

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